
China e países do Golfo ganham espaço com recuo de doadores globais

A saída de EUA e Europa da ajuda humanitária global expôs um sistema dependente de poucos países e deixou um rombo bilionário. China e países do Golfo surgem como possíveis substitutos, mas fora da ONU e com outras prioridades.
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A retirada maciça empreendida pelos Estados Unidos desde o início do segundo mandato de Donald Trump revelou uma vulnerabilidade no setor humanitário que tem sido uma preocupação para seus atores há muitos anos. Ou seja, uma grande maioria da ajuda internacional, da qual dependem cerca de 190 milhões de pessoas em todo o mundo, depende de um punhado de países doadores extremamente influentes.
Este artigo é o segundo de uma série de três sobre o futuro da ajuda humanitária à medida que os Estados Unidos e os principais doadores ocidentais se afastam do campo. O primeiro examinou as consequências dos cortes orçamentários sobre o trabalho das agências humanitárias. O terceiro aborda a história da ajuda americana e como o país consolidou seu domínio no setor.
Os Estados Unidos, a Alemanha, a União Europeia e o Reino Unido juntos financiam quase 65% da ajuda humanitária globaLink externol. Mas a decisão do governo Trump de cortar 83% dos programas da principal provedora de ajuda do país, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), acelerou uma tendência de longa data de declínio das contribuições da maioria dos doadores tradicionais.
No final de fevereiro, o Reino Unido anunciou uma redução em seus gastos com ajuda, que cairão de 0,5% do Produto Nacional Bruto para 0,3%. Em março, durante as negociações de coalizão, o novo governo alemão planejou abandonar sua meta de alocar 0,7% do produto interno bruto para ajuda externa.
E nos últimos meses e anos, outros países, incluindo Bélgica, França, Suécia e Suíça anunciaram cortes na cooperação internacional. Os motivos incluem os orçamentos nacionais prejudicados pela pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia, o que levou a um aumento acentuado nos gastos com defesa, com a ameaça russa aumentando os temores pela segurança europeia.
Nesse contexto, a Noruega foi um dos poucos países a aumentar seu programa de ajuda, principalmente para a Ucrânia e para organizações não governamentais (ONGs) afetadas pelos cortes americanos. Mas isso não será suficiente para compensar os bilhões perdidos.
+ Saiba mais sobre o impacto que os cortes nos EUA estão causando, principalmente nos programas para mulheres e HIV: escute o nosso podcast Inside Geneve.
“É muito preocupante ver que outros doadores não estão se esforçando para preencher a lacuna”, diz Eileen Morrow, chefe de políticas e promoção da ICVA, uma rede de ONGs sediada em Genebra.
Quem substituirá Washington?
A maioria dos especialistas entrevistados pela swissinfo.ch acredita que somente a China, líder econômica do BRICS (um grupo de dez grandes economias emergentes, incluindo Brasil, Rússia e Índia) ou certos países do Golfo, como Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, seriam capazes de compensar a perda de financiamento americano.

“Os países do BRICS buscam reconhecimento, expansão e independência”, disse Tammam Aloudat, diretor executivo do meio de comunicação The New Humanitarian, sediado em Genebra. Nesse contexto, a ajuda humanitária pode servir como uma ferramenta de “soft power”, permitindo que os estados doadores projetem uma imagem positiva de si mesmos, aumentem sua influência e ganhem o apoio dos países receptores, por exemplo, durante votações na ONU.
“Nada disso é novo”, enfatiza Tammam Aloudat, que ressalta que isso é o que os Estados Unidos sempre fizeram. No período pós-guerra, por exemplo, os americanos usaram a ajuda para combater o comunismo e desenvolver novos mercados de exportação.
Desde o encerramento de milhares de projetos financiados pela USAID, a mídia internacional tem relatado que a China se ofereceu para investir em programas semelhantes, por exemplo, no CambojaLink externo, em RuandaLink externo e no NepalLink externo.
Mas a capacidade do país de substituir os Estados Unidos pode ser limitada devido às dificuldades econômicas que enfrenta, especialmente em seu mercado imobiliário, um motor de crescimento em crise desde 2021. E não é certo que Pequim verá algum interesse em contribuir mais para o sistema de ajuda da ONU.

Sistema tendencioso
“O sistema multilateral é tão tendencioso em favor do Ocidente que não vejo por que os países BRICS decidiriam investir mais nele”, diz Tammam Aloudat.
Esse viés é parcialmente explicado por razões históricas. Quando as Nações Unidas foram criadas após a Segunda Guerra Mundial, a maioria dos chamados estados do Sul Global ainda eram colonizados. Portanto, eles não tinham nenhuma influência sobre o funcionamento dos órgãos.
E várias agências da ONU são chefiadas por autoridades ocidentais, reforçando percepções de preconceito. O Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (BCAH) é tradicionalmente chefiado por um britânico, enquanto o Programa Mundial de Alimentos (PMA) é historicamente chefiado por um americano.
Apesar disso, vários estados do Golfo, particularmente a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, têm regularmente estado já há vários anos entre os dez principais contribuintes para as agências humanitárias da ONU.
No entanto, esses países tendem a alocar a maior parte de sua ajuda aos países da Liga Árabe e da Organização de Cooperação Islâmica, principalmente o Iêmen.
Preferência pela abordagem bilateral
“O sistema de ajuda da ONU é um mecanismo caro e inflexível que oferece pouca visibilidade aos seus principais participantes”, diz Bertrand Taithe, professor da Universidade de Manchester. “É possível que alguns países busquem aumentar sua influência, mas é mais provável que intervenham bilateralmente, o que lhes permite desenvolver redes, diplomacia e visibilidade em escala continental.”
É o caso da China, que, apesar de seu poder econômico, financiou programas humanitários da ONU apenas em torno de 8 milhões de dólares em 2024. Uma gota no oceano em comparação aos quase 10 bilhões pagos pelos Estados Unidos.
Pequim fornece assistência por meio de sua iniciativa das novas Rotas da Seda (Belt and Road Initiative, em inglês), por meio da qual financia projetos de infraestrutura, especialmente na África, principalmente na forma de empréstimos em vez de doações. Em 2024, os contratos concluídos por meio desse programa somaram US$ 122 bilhões, de acordo com um estudoLink externo da Universidade Fudan, em Xangai.
Com foco principal no desenvolvimento, essa ajuda se insere em uma lógica de intensificação do comércio e da influência geopolítica do país. E, diferentemente da ajuda ocidental, a ajuda da China geralmente não vem com condições vinculadas, por exemplo, ao respeito aos direitos humanos.
Renegociação de princípios
Para Valérie Gorin, do Centro de Estudos Humanitários de Genebra, o aumento da participação dos chamados atores emergentes implica uma renegociação dos valores humanitários.
O princípio da imparcialidade, que exige que a ajuda vá para aqueles que mais precisam, independentemente, por exemplo, de sua nacionalidade, religião ou gênero, pode estar em desacordo com a abordagem desses países, que se concentram em sua região.
“Estamos vendo uma reversão das coisas com antigos Estados colonizados que agora estão renegociando as maneiras de operar em um ambiente humanitário que incorporou uma forma de colonialismo e imperialismo ocidental”, explica Valérie Gorin.
Segundo ela, não devemos esperar que os BRICS ou os países do Golfo simplesmente retomem programas abandonados pelos países ocidentais. E muito menos as condições impostas à concessão desta ajuda em termos de respeito pelos direitos humanos, pelo ambiente, pelo clima ou pela democracia.
“Essa condicionalidade da ajuda ocidental às vezes é muito questionável”, acrescenta Valérie Gorin. Por exemplo, quando programas de ajuda impõem normas ou práticas que vão contra as tradições locais. Uma maior influência dos países do Sul é bem-vinda nesse sentido, mas a pesquisadora teme que isso seja em detrimento das minorias e dos ecossistemas protegidos.
E o setor privado?
Cada vez mais, os humanitários estão voltando sua atenção para o setor privado, cujos recursos às vezes excedem os de países inteiros.
A Fundação Gates, por exemplo, cresceu nos últimos anos e se tornou o segundo maior contribuinte para a Organização Mundial da Saúde (OMS), e está muito à frente dos estados europeus. Uma influência que foi criticada.
De acordo com a organização Development Initiatives, a parcela do financiamento humanitário global proveniente de fontes privadas como fundações, empresas e indivíduos aumentou de 13% em 2016 para 18% em 2022. E, de acordo com Valérie Gorin, há uma grande margem para uma progressão, já que as empresas encontram nisso uma maneira de melhorar sua imagem ao demonstrar sua “responsabilidade social”.
Essa mudança também poderia ser acompanhada por uma flexibilização dos princípios éticos do humanitarismo, haja vista que será uma questão de determinar quais doações são aceitáveis com base nas atividades das empresas doadoras.
Tammam Aloudat é muito cético. Segundo ele, o setor privado não tem interesse em investir em certos contextos, principalmente aqueles onde há guerra e o potencial de lucro é baixo. “Quem ajudará o povo da Somália, do Sudão ou da República Democrática do Congo? Esses são lugares onde o setor privado não pode gerar lucros.”
Edição: Virginie Mangin/sj
Adaptação: DvSperling

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