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Tendência internacional: sexo não consentido é estupro

Demonstrierende Frauen
Protesto contra violência sexual frente ao Parlamento federal em Berna, em 21 de maio de 2019. © Keystone / Anthony Anex

Cada vez mais países definem estupro como sexo sem consentimento - sem o uso da força. Isto poderia ter um impacto na revisão do direito penal da Suíça.

Um homem teve relações sexuais com sua ex-namorada – contra a vontade dela. Ele foi absolvidoLink externo da acusação de estupro. De acordo com os tribunais suíços, teria sido no mínimo razoável que a mulher tivesse se defendido.

Como em muitos outros países, as relações sexuais só são consideradas estupro na Suíça se forem realizadas pela força, ameaça ou pressão psicológica. China, Rússia, França e Espanha, para citar apenas alguns países, têm regulamentações semelhantes.

Sexo sem consentimento deve ser punido

Na Espanha, no entanto, as coisas estão mudando. O código penal deve ser adaptado à Convenção de IstambulLink externo sobre prevenção e combate à violência contra as mulheres. Este acordo comum do Conselho Europeu, que entrou em vigor para a Suíça em 2018, exige, entre outras coisas, que o sexo não consensual seja punível.

O debate na Espanha foi alimentado por um caso específico: um grupo de homens molestou uma jovem mulher, filmou o ato e divulgou o vídeo através do WhatsApp. Embora os homens se orgulhassem publicamente do ato, eles saíram com penas relativamente brandas – a vítima não tinha se defendido fisicamente, portanto a agressão não foi considerada estupro.

O que está sendo debatido na Espanha, Dinamarca, Holanda e Finlândia já é uma realidade na Suécia, Reino Unido, Irlanda, Alemanha, Grécia, Bélgica, Luxemburgo, Islândia, Áustria, Austrália, África do Sul e Chipre: sexo sem consentimento é estupro.

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Um grito pela igualdade

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Debate em países muçulmanos

Em alguns países árabes, tais como Tunísia ou Egito, as relações sexuais com uma mulher sem seu consentimento são puníveis; se houver ainda violência ou ameaças, a pena é maior.

O debate, portanto, gira em torno de aspectos diferentes dos da Europa: em alguns países árabes como Egito, Jordânia, Líbano, Marrocos, Argélia e Síria, por exemplo, a eliminação da regra segundo a qual um estuprador fica impune se casar com a vítima está sendo discutida.Link externo

Outro tema da mesma forma discutido se trata de uma disposição da lei da xaria, pela qual uma vítima de estupro que não pode provar a agressão com quatro testemunhas masculinas ou uma confissão do perpetrador pode ser condenada por “fornicação”. Esta disposição, supostamente destinada a proteger contra denúncias injustificadas,Link externo é a lei em alguns países (por exemplo, Qatar, Estados do Golfo, Nigéria).

Na maioria dos países muçulmanos, as penas por estupro são muito mais severas do que na Suíça. Penas de prisão longas são a regra, e em alguns países a pena de morte também pode ser imposta.

“O debate tem sido frequentemente desencadeado por casos específicos, como na Espanha”, diz Nora ScheideggerLink externo, pós-doutoranda do Instituto Max Planck em Freiburg im Breisgau, que escreveu uma dissertaçãLink externoo sobre direito penal sexual. “É um debate originalmente feminista, que se inflamou aqui no país já nos anos 80”, diz Scheidegger. “Depois disso, o debate adormeceu até a chegada da Convenção de Istambul e o movimento #MeToo, que lhe deu um novo impulso.”

ONGs pedem uma regulamentação semelhante na Suíça

Na Suíça, uma revisão do direito penal está sendo discutida atualmente. Organizações não-governamentais como a Anistia Internacional ou o coletivo feminista e ‘mulheres*em greve’ estão solicitando que na revisão seja introduzido o conceito de consentimento.

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“Sim quer dizer sim” ou “Não quer dizer não”?

A regra do “Não quer dizer não” = Se a vítima diz explicitamente ‘não’ ou demonstra sua relutância e o sexo ainda assim ocorre, isso é considerado estupro. A Alemanha e a Áustria, por exemplo, têm esta regra (como uma infração penal à parte).

A regra do “Sim quer dizer sim” = Se o parceiro não consentiu o sexo explícita ou implicitamente – isto é, sem palavras, mas devido a comportamento ou circunstâncias – é estupro. A Islândia e a Suécia têm uma regra correspondente.

“Não importa qual regra é aplicada, mas a vontade da pessoa. E em ambas as versões, a vontade é levada a sério”, diz o professor de direito Martino Mona, da Universidade de Berna. “O termo ‘sim quer dizer sim’ é infeliz porque parece que a pessoa consente, o que claramente é um absurdo.” É por isso que ele pessoalmente prefere a regra do “não quer dizer não”, mesmo que tenha o mesmo efeito no final. O que é relevante, diz ele, é se a vontade foi discernível com base na conduta ou nas circunstâncias. Com o “sim quer dizer sim”, criam-se adversários políticos desnecessários.

A secretária-geral do Conselho Europeu, Marija Pejčinović Burić, também pediu aos Estados membros que revisassem a definição de estupro. O Departamento Federal de Justiça está atualmente esclarecendo se é preciso fazer uma reforma na Suíça.

O governo federal da Suíça inicialmente não havia visto nenhuma necessidade. Afinal, na Suíça, qualquer pessoa que desconsidere um “não” não fica impune, mas pode ser multadaLink externo por esse “assédio sexual” mediante queixa.

Proposta: introdução de um novo delito

Como isto é muito brando e impreciso para sexo não desejado, Scheidegger propõe em sua tese de doutorado que se introduza um novo delito de “agressão sexual”. Uma proposta que foi aceita por um membro do parlamento, e que agora pode se tornar realidade.

Mas qual é a vantagem de um ‘novo delito’? Outros países simplesmente expandiram o delito de estupro.

“O conceito de estupro é emocionalmente carregado. Ele é considerado um dos piores crimes que existe”, diz Scheidegger. “Desde que seja esse o caso, faz sentido reservar o delito de estupro para as violações mais graves.” A coerção para o sexo é, de fato, um ato ilícito agravado. Mas violar a autodeterminação sexual também é um grande erro.

A visão psicológica: o terapeuta de casais Klaus Heer sobre a regra “sim quer dizer sim”

swissinfo.ch: Que perigos o senhor vê se o delito de estupro fosse estendido na Suíça, ou se um terceiro delito de “agressão sexual” fosse introduzido?

Klaus Heer: Se houver uma maior consciência da agressão sexual, tornando-a visível e tangível no direito penal, não é um ‘perigo’. Pelo contrário. Isso mostra que os tempos em os homens podiam se utilizar das mulheres a fim de liberar seu excesso de pressão sexual estão gradualmente terminando. É uma barbaridade que não haja uma punição clara quando o ‘não’ de uma mulher é deliberadamente mal interpretado como um ‘sim’ particularmente requintado. E para as mulheres torna-se da mesma forma crucial que elas não deixem o homem acreditar que “por fraqueza” ele pode desconsiderar seus limites – porque ele precisa “disso” como um homem.

Tenho quase certeza: entre quatro paredes, a ‘cultura do estupro’, ou cultura subliminar do estupro, é muito mais difundida do que se supõe. Muitas mulheres não têm a poderosa capacidade de dizer um ‘não’ inequivocamente, e de impor esse ‘não’ de uma forma sustentável. Isto é prostituição conjugal, praticada por homem e mulher juntos. Ou, dito de outra forma: a emancipação da mulher muitas vezes fica presa à beira do leito matrimonial. Até hoje, no século XXI da supostamente civilizada Europa Central.

swissinfo.ch: Que impacto social ou psicológico o senhor acha que uma regulamentação desse tipo teria? Isso poderia levar a uma situação em que, por exemplo, as pessoas deveriam declarar seu consentimento mútuo antes de um encontro do Tinder – na melhor das hipóteses diretamente no aplicativo ou via selfie? Ou que as pessoas ficariam, de certa forma, um pouco paranoicas?

“Ficar” apenas por uma noite é arriscado de qualquer forma, com ou sem o Tinder. Não há como saber com quem você vai lidar, quando se faz isso de forma ‘descartável’. Uma declaração de consentimento por escrito provavelmente não mudaria tanto as coisas. No caso de um conflito, a espessura legal se tornaria ainda mais impenetrável do que é agora, pois a interpretação e as provas se tornariam muito mais confusas em detalhes.

O sexo casual é aventureiro em todos os sentidos: um capricho, do qual se deve estar ciente antes de se envolver nele. Especialmente como mulher. Precauções burocráticas desanuviam a caminhada por uma linha tênue só de forma aparente.

Segundo o professor de direito penal da Universidade de Berna, Martino MonaLink externo, a ‘coerção pela necessidade’ tem razões históricas: “No século 19, uma vítima de estupro corria o risco de ser processada por relações sexuais ilegítimas; a coerção servia como prova para a mulher de que ela não havia consentido.” Isso não é mais relevante hoje, pois estamos em um contexto social diferente. Portanto, é irritante que o direito penal ainda se baseie em um entendimento ultrapassado de decoro e de sexualidade.

Medo de falsas acusações

No debate parlamentar são apresentados dois argumentos contra o conceito de consentimento: Há um medo de que a pessoa acusada tenha que provar após o fato que houve consentimento, o que equivaleria a uma inversão do ônus da prova e não seria possível no Estado de Direito.

Em segundo lugar, teme-se que a vítima possa simplesmente alegar que não tinha consentido, o que poderia criar um incentivo para se fazer falsas acusações. O fenômeno da falsa acusação ou invenção de estupro já ocorre hoje em dia, mas não existem dados confiáveis para estes casos na Suíça.

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As falsas acusações aumentaram nos países onde o sexo sem consentimento é considerado estupro? No Reino Unido, por exemplo, a penetração sem consentimento é considerada estupro. A vítima não tem que resistir fisicamente. O que importa é que ela não consentiu com o sexo.

De acordo com Jonathan Herring, professor de direito da Universidade de Oxford, a Grã-Bretanha não tem problemas com falsas acusações. De acordo com as pesquisas, estas são muito raras. Por outro lado, ainda há poucas condenações por estupro, porque é difícil provar que a vítima não consentiu. “O problema é que os jurados ainda acreditam em ‘mitos de estupro’. Por exemplo, que uma vítima que está bêbada ou vai a um clube consinta com sexo.”

Scheidegger também diz que não se deve dar falsas esperanças às vítimas: “Os problemas com as evidências permanecem.” É mais difícil provar que alguém disse “não” do que que teve relações sexuais com sinais visíveis de violência.

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