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Por que o herói Guilherme Tell é tão importante para a Suíça

Tell Denkmal in Altdorf.
O monumento a Guilherme Tell e seu filho Walther fica na praça da prefeitura em Altdorf. Hoje, o herói nacional suíço é considerado uma lenda inventada. Eva Hirschi

Os mitos históricos desempenharam um papel fundamental na formação da identidade nacional suíça até o século XX. Seus efeitos ainda são sentidos hoje em dia. Uma trilha para caminhadas, uma exposição e um museu nas terras do coração do país proporcionam uma visão da alma mítica da Suíça.  

“Toda nação precisa de seus mitos e lendas”, diz Monika Schmidig Römer, acadêmica do Fórum de História da Suíça em Schwyz. Ela está na trilha de caminhada chamada “O Caminho da Suíça”, uma das rotas históricas mais conhecidas do país. Do Rütli a Brunnen, os circuitos de trilha de 35 quilômetros à margem do Lago Uri, o braço mais ao sul do Lago dos Quatro Cantões. Ela permite aos visitantes descobrir lendas da Suíça em várias paradas, desde o monte Rütli, onde se diz que três heróis fizeram o juramento de formar uma confederação, até a Pedra Schiller e a capela dos Confederados em Brunnen. 

Orientierungsstein auf dem Weg der Schweiz.
A ordem dos cantões no caminho corresponde ao ano de entrada de cada um deles na Confederação. Eva Hirschi

Em frente à capela Tell, entre Sisikon e Flüelen, na margem do lago, Schmidig Römer pára e aponta. “Os murais aqui mostram Tell, Gessler e o Juramento do Rütli – os símbolos marcantes da Suíça”. No entanto, não há nenhuma evidência histórica para eles. “Guilherme Tell foi mencionado pela primeira vez em 1472 no Livro Branco de Sarnen”, explica Schmidig Römer, “mas nos arquivos não há vestígios de ninguém com esse nome”. Mesmo a famosa história de atirar na maçã na cabeça de seu filho não é uma invenção suíça. Ela ocorre em uma variedade de contos populares europeus, como a balada inglesa de Adam Bell (The Three Outlaws), e parece ter tido origem em conexão com o herói dinamarquês Toko.

A trilha histórica “Caminho da Suíça” foi um presente dos cantões para o povo suíço por ocasião do 700º aniversário da Confederação em 1991. A trilha é dividida em 26 seções cantonais; cada cantão recebeu uma seção deste caminho para construir, em proporção à sua população. Dada a população da época, cada homem, mulher e criança recebeu um simbólico 5 milímetros. Toda a trilha pode ser percorrida em quatro dias e tem numerosas conexões com barco, ônibus e trem. Mais informações: weg-der-Schweiz.chLink externo  

A atual exposição sobre “Os Alpes na Lenda” continua até 2 de outubro de 2022 no Fórum de História da Suíça em Schwyz, que faz parte do Museu Nacional Suíço. A exposição permanente “Origens da Suíça do século XII ao XIV” aponta os fatores que levaram ao início da Confederação. O Museu abre de terça-feira a domingo, das 10 às 17 horas. Mais informações: forumschwyz.chLink externo  

Atualmente, o Museu da Carta Federal em Schwyz se vê como um museu de história moderna que informa o público sobre o desenvolvimento da antiga Confederação e da Carta Federal de 1291 – e trata de fatos, assim como de mitos. O Museu está aberto de terça-feira a domingo, das 10 às 17 horas. Mais informações: bundesbrief.chLink externo 

Quem conta um conto aumenta um ponto

No entanto, em nenhum país uma fábula faz parte de um mito nacional fundador como na Suíça. Entretanto, Guilherme Tell ficou conhecido fora do país em 1804 como o herói da peça do mesmo nome pelo grande dramaturgo alemão Friedrich Schiller. É por isso que este último é homenageado pelo que é conhecido como a Pedra Schiller – um pedaço de rocha que se ergue a 20 metros do lago perto de onde passa o “Caminho da Suíça”. Ela ostenta a inscrição: “Para o autor de Tell/F. Schiller/os cantões centrais da Suíça/1859”. 

Schiller nunca visitou a Suíça em sua vida. Ele pegou a história em segunda mão de seu amigo e colega escritor alemão Goethe. Mais tarde, sua peça foi transformada em ópera por Rossini, incluindo a famosa “galop”, a melodia que os falantes de inglês associam a Guilherme Tell. 

Então a história de Guilherme Tell é apenas fruto da imaginação literária e musical de estrangeiros sem substância suíça real? Não é bem assim. Os contos populares diferem dos contos de fadas na medida em que eles têm pelo menos alguma base na realidade. “O mais importante das lendas não é sua exatidão histórica ou a falta dela, mas a mensagem que elas transmitem”, diz Schmidig Römer. “E Guilherme Tell tornou-se um símbolo [para os suíços] se identificarem – um grande defensor da liberdade”. 

Fazer parte da nova federação 

Por que tais lendas eram uma parte pouco controversa do ensino da história suíça até recentemente? “Temos que considerar os contos e lendas em seu contexto histórico”, diz Schmidig Römer. Até o século XVI, as lendas eram transmitidas de boca em boca. O humanista Aegidius Tschudi, no século XVI, foi um dos primeiros neste país a coletar e escrever tais histórias. Seu objetivo era estudar as origens históricas da Suíça. Ele coletou as lendas sobre Guilherme Tell e o Juramento do Rütli e preencheu as datas em falta (ele acreditava que estava apenas tornando-as mais precisas). De acordo com seus cálculos, então, a Suíça foi fundada em 8 de novembro de 1307. “É assim que as histórias se tornam História”, comenta Schmidig Römer.  

Schild, das auf den Rütlischwur hinweist
No monte Rütli, uma pequena placa indica o local onde foi feito o juramento dos pais fundadores. Eva Hirschi

Particularmente no século XIX, quando a Suíça moderna estava tomando forma, os governantes estavam tentando encontrar uma história comum para esta colcha de retalhos de um país que criaria um sentimento de unidade nacional e de pertencimento. Após a guerra civil abortada de 1847, Arnold Winkelried, outra figura heróica do passado da Suíça, tornou-se um símbolo patriótico fundamental. De acordo com a lenda, Winkelried lutou na batalha de Sempach em 1386. Ele entrou na batalha abraçando as lanças austríacas, morrendo para abrir uma brecha nas linhas inimigas para os confederados suíços. Não se sabe se este Winkelried realmente existiu. “Para a unidade nacional na recém-fundada república federal, ele e Guilherme Tell foram cruciais”, aponta Schmidig Römer.

Moral e edificante 

Um exemplo deste mito é o grande monumento a Guilherme Tell erguido em Altdorf em 1895. Este monumento ainda atrai os turistas, da Suíça e do exterior. A pose esculpida do herói suíço é imediatamente reconhecível e ainda é muito utilizada. Guilherme Tell é frequentemente visto adornando cartazes políticos suíços, mais recentemente para o referendo sobre o apoio do Estado à mídia. Sua história também continua a ser interpretada de novas maneiras, como no concurso anual Guilherme Tell em Interlaken, ou no romance recém publicado em março deste ano por Joachim B. Schmidt intitulado simplesmente “Tell”. No passado, Guilherme Tell podia ser visto em todos os lugares, como mostra a atual exposição no Fórum de História em Schwyz. Ele enfeitava facas e cadernos, cartões postais e pinturas. Até mesmo a suposta besta que Guilherme Tell usava está em exposição aqui.  

Esta exposição trata também de outros folclores, como a imagem do pesadelo de Toggeli, conhecida no centro da Suíça, ou a pedra do dragão de Lucerna do Monte Pilatus. Nas estações de áudio, os visitantes podem ouvir os contos folclóricos contados nas quatro línguas nacionais. “Antigamente não havia Google, então as pessoas encontravam suas próprias formas de explicar os fenômenos desconcertantes”, diz Schmidig Römer. Os contos populares não tinham apenas um propósito histórico, mas também um propósito edificante moral ou religioso. O romance de horror “A Aranha Negra” do autor suíço Jeremias Gotthelf, do século XIX, é um conto que expressa os ideais cristãos do bem contra o mal, tradição, costume, decência e o modo de vida temente a Deus.   

Função política 

Não apenas os contos populares, mas a idealização do solo e sua história caracterizam a Suíça e sua construção de identidade. Há o mito dos Alpes como o núcleo do país, a “nação por escolha”, e a autopercepção suíça como uma nação de povo camponês resistente. Há valores como democracia direta, neutralidade armada e tradição humanitária. Outra joia da coroa da identidade nacional é a Carta Federal de 1291. Este documento ficou esquecido durante 500 anos, mas na época do 600º aniversário da confederação no ano de 1891, o governo da época o ressuscitou e o declarou triunfantemente como sendo o documento fundador da Suíça. Esta, aliás, foi a primeira vez que houve um feriado nacional no dia primeiro de agosto.  

Bootsanlegestelle beim Rütli.
O Rütli atrai muitos turistas, tanto de dentro da Suíça como do exterior. Eva Hirschi

“Para um país que não tem fronteiras territoriais ou linguísticas reais, nem uma denominação religiosa comum, nem uma cultura comum, existe a necessidade de encontrar algo em comum. Temos buscado nossas raízes comuns na História”, diz Annina Michel, diretora do Museu da Carta Federal. Este museu foi construído em 1936. A Carta Federal em sua vitrine tornou-se uma espécie de Arca da Aliança, representando uma Suíça baseada na liberdade e independência. Ela era considerada como a primeira constituição suíça. 

Tais símbolos tinham uma função política definida, e faziam parte dos esforços ideológicos para manter a moral doméstica durante a guerra. Em tempos de ameaça do exterior, os suíços se voltavam para ideais de unidade interior. O Museu da Carta Federal desempenhou seu papel. Ali se dizia que a Carta Federal era “colocada no Altar da Pátria”. O museu ainda pode ser visitado, a apenas alguns minutos a pé do Fórum para a História da Suíça em Schwyz.  

Bundesbriefmuseum
O Museu da Carta Federal também tem outras exposições. Eva Hirschi

Valor do mito 

Na década de 1970, pesquisas históricas começaram a revelar que a Carta Federal não era um documento fundador, mas apenas um acordo para manter a paz entre os vales de Uri, Schwyz e Nidwalden. Nos anos 70 e 80, até mesmo as histórias de Guilherme Tell e o Juramento do Rütli passaram a ser consideradas reacionárias e uma barreira ao progresso, se não mesmo descartadas completamente como contos de fadas. 

No entanto, Michel acredita que estas lendas ainda têm seu propósito.  

“No discurso erudito de hoje, a função de apoio do Estado aos mitos, especialmente no século XIX, não está mais em dúvida. Os mitos em si não podem ser historicamente autenticados. Parece que o Juramento do Rütli nunca aconteceu de fato. Mas isso não significa que os mitos não tenham valor”. 

Esses mitos, como todos os historiadores concordam, têm sido de grande importância para o desenvolvimento de uma identidade nacional suíça.  

“Eles não são mais glorificados hoje, mas o papel que eles desempenharam é reconhecido”, afirma Michel.  

Para explicar o efeito e o significado desses mitos, o Museu da Carta Federal ainda está em funcionamento – mesmo que ele não apresente mais a Carta Federal como uma espécie de Escrito Sagrado deitado sobre um altar. Agora é apenas uma exposição entre muitas outras.

Adaptação: Fernando Hirschy


Adaptação: Fernando Hirschy

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