
Universidade de Berna analisa gelo de 1,2 milhão de anos na Antártida

Pesquisadores da Universidade de Berna estudam uma das amostras de gelo mais antigas do planeta através de uma técnica revolucionária. Seu objetivo é esclarecer um dos principais mistérios do clima da Terra.
Florian Krauss tem pressa. Não pode perder tempo, pois está carregando uma bolsa térmica com um fragmento de gelo do tamanho de um sabonete. O gelo é valioso demais para ser comprometido: uma amostra única, com mais de 1,2 milhão de anos. “Não posso errar, mas é emocionante trabalhar com algo tão especial”, afirma.
O pesquisador retirou a amostra de uma câmara mantida a -50 °C no Instituto de Física Climática e Ambiental. É a única sala dessa temperatura na Europa para armazenar núcleos de gelo antigos e frágeis.
Ali estão guardadas amostras extraídas na Antártida em janeiro passado, a mais de 2.500 metros de profundidade. A pesquisa é parte do projeto europeu Beyond EPICA – Oldest IceLink externo, cujo objetivo é estudar o gelo formado há mais de um milhão de anos para entender melhor as mudanças climáticas e avaliar com mais precisão o impacto humano.
>> O gelo analisado pela Universidade de Berna foi extraído a grandes profundidades:

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Prevendo o clima do futuro com o pedaço de gelo mais antigo do planeta
Krauss descontaminou o fragmento e o levou ao laboratório. Lá ele irá analisar as microbolhas de ar presas no gelo para medir concentrações de CO2 e outros gases de efeito estufa, o que permitirá compreender a composição atmosférica do passado. Assim espera resolver um dos grandes enigmas da paleoclimatologia e descobrir o que tornou os ciclos glaciais e interglaciais tão longos e intensos.
A ciência já reconstruiu o clima dos últimos 800 mil anos com amostras anteriores. “Mas ainda não sabemos por que, há cerca de um milhão de anos, o ritmo das glaciações mudou”, explica Krauss. Os novos fragmentos podem fornecer pistas cruciais, úteis tanto para entender o passado quanto para aprimorar previsões climáticas futuras.

Laser para extrair o ar do gelo
No laboratório, Florian Krauss coloca gelo em um recipiente cilíndrico dourado no centro de um dispositivo de metal conectado a dezenas de tubos e cabos. E nele que a mágica acontece”, conta.
Dentro do cilindro, que é mantido no vácuo, um feixe de luz infravermelha irradia a amostra de gelo de cima para baixo. O laser transforma o gelo de um estado sólido em um estado gasoso (vapor), sem passar pela fase líquida. Esse processo, chamado de sublimação, libera o ar preso nas bolhas microscópicas presentes nas amostras mais antigas.
Em comparação com os métodos mecânicos tradicionais – que envolvem a trituração ou o corte do gelo em seções finas – a sublimação tem a vantagem de uma eficiência de extração de 100%. “Recuperamos todo o ar preso no gelo, sem contaminá-lo com o ar ambiente”, explica Krauss. “Além disso, a ausência de uma fase líquida impede que o CO2 liberado se dissolva na água, o que poderia alterar os resultados.”
Uma vez liberado, o ar é imediatamente congelado a cerca de -258 °C. Isso permite que seja armazenado e analisado posteriormente com um espectrômetro para determinar a concentração de CO2, metano (CH4) e óxido nitroso (N2O), bem como a composição isotópica do dióxido de carbono, que é útil para reconstruir o clima passado.
Técnica desenvolvida na Suíça
A Universidade de Berna tem sido ativa no estudo de núcleos de gelo desde a década de 1960. Seu novo método para analisar o gelo da Antártica é revolucionário e únicoLink externo. Ele foi desenvolvido em colaboração com os Laboratórios Federais Suíços de Ciência e Tecnologia de Materiais (Empa) para analisar com precisão as amostras mais antigas.
O gelo de mais de 1,2 milhão de anos está tão comprimido que as bolhas de ar não são mais visíveis. Mais de 10 mil anos de história climática estão concentrados em apenas um metro de gelo. Para poder analisar as mudanças nos gases de efeito estufa dentro dele, é necessária uma medição contínua e de alta resolução, que somente a nova técnica de sublimação pode garantir.
Outra vantagem desse método é a possibilidade de reutilizar o ar extraído para outras análises. “É a reciclagem perfeita”, diz Hubertus Fischer, professor de física climática experimental e chefe do grupo de pesquisa. “Para um núcleo de gelo comum, uma abordagem tão complexa não seria justificável. Mas é quando você tem uma quantidade muito limitada de gelo antigo disponível”, diz.
Detalhes fazem a diferença
Laboratórios dos EUA e Austrália tentam desenvolver tecnologias similares, mas os suíços são pioneiros. “Posso até mostrar o funcionamento aos colegas”, diz Fischer. “Mas é um sistema complexo. O diabo está nos detalhes.”
Sublimação é “extremamente difícil de realizar”, afirmouLink externo Christo Buizert (COLDEX) em 2023. Ele é responsável pela análise do gelo para o COLDEX (Centro de Exploração do Gelo Mais Antigo), o equivalente norte-americano do projeto europeu Beyond EPICA. “O fato de terem conseguido fazê-la funcionar é realmente impressionante”, disse.

Os pesquisadores em Berna também desenvolveram uma nova técnicaLink externo para medir gases nobres, como argônio e criptônio, que ajudam a determinar temperaturas oceânicas passadas.
História climática no gelo da Antártica
A Universidade de Berna é um dos 12 institutos de uma dezena de países que participam do projeto Beyond EPICA, lançado em 2009. Cada um tem sua própria especialização.
A universidade suíça está entre as que trabalham com a análise de gases de efeito estufa e componentes químicos dissolvidos no gelo. Grupos de pesquisa em outros países estudam, por exemplo, a evolução da temperatura, as cinzas vulcânicas contidas no gelo ou sua estrutura cristalográfica.
O objetivo é reconstruir a história climática da Terra por meio da análise de núcleos de gelo extraídos na Antártica. Nessa região polar, a neve se acumula ano após ano, compacta-se e forma camadas de gelo mais profundas e mais antigas.
Depois de um projeto anterior que recuperou cerca de 800 mil anos de gelo há 20 anos, o Beyond EPICA recentemente extraiu gelo a uma profundidade de 2.500 metros, com o objetivo de estender o arquivo climático de 1,2 a 1,5 milhão de anos.

Mistério da ciência do clima
Com essas novas amostras, os pesquisadores esperam descobrir por que o sistema climático mudou tão profundamente durante o Pleistoceno Médio. Durante esse período, entre 900 mil e 1,2 milhão de anos atrás, a extensão das calotas polares no hemisfério norte mudou drasticamente, com um impacto profundo no clima.
O intervalo entre um período glacial frio e um período interglacial quente aumentou de cerca de 40 mil para 100 mil anos, e a quantidade de gelo na Terra durante as eras glaciais aumentou drasticamente. O motivo dessa mudança é, de acordo com a Universidade de Berna, “um dos mistérios mais complexos da ciência climática”.
A alternância entre períodos glaciais e quentes está ligada aos ciclos orbitais da Terra ao redor do Sol. Entretanto, a variação desses parâmetros não mudou nos últimos dois milhões de anos. Portanto, o Sol não pode explicar a mudança na frequência das eras glaciais, explica Hubertus Fischer. “Suspeitamos que as variações na concentração de gases de efeito estufa na atmosfera estejam na origem e a única maneira de verificar isso é analisar as bolhas de ar no gelo”. Os núcleos de gelo também são cruciais para aprimorar os modelos climáticos e prever a evolução futura do clima.
Internacionalmente, há uma competição científica saudável para extrair as amostras de gelo mais antigas, diz Fischer. “Mas o projeto europeu é o único que já perfurou um núcleo de gelo contínuo e completo, enquanto os institutos japonês e australiano acabaram de iniciar seus programas de perfuração de vários anos.”
Metade do CO2 atual
Até o momento, Florian Krauss analisou apenas uma pequena parte das amostras de gelo da Antártica. “É muito cedo para tirar conclusões definitivas”, afirma.
No entanto, o pesquisador tem certeza de que as concentrações de dióxido de carbono nas bolhas de ar são cerca de metade dos níveis atuais encontrados na atmosfera, onde o CO2 aumentou drasticamente devido ao uso de combustíveis fósseis e ao desmatamento. “Ao analisar os núcleos de gelo, o impacto humano sobre a atmosfera e o clima se torna evidente”, diz Krauss. Os primeiros resultados serão publicados na primavera de 2026.
Edição: Gabe Bullard/Vdv
Adaptação: Alexander Thoele

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