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Impérios sem vigilância: quem controla as fundações milionárias de Genebra?

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Doadores abastados de todo o mundo criam suas fundações sem fins lucrativos em Genebra. SWI swissinfo.ch / Helen James

Doadores abastados de todo o mundo criam suas fundações sem fins lucrativos em Genebra, onde se beneficiam de uma estrutura jurídica flexível. De onde vem e para onde vai esse dinheiro? Descobrir isso é tarefa das autoridades responsáveis pela fiscalização, mas os filantropos de Genebra conseguem escapar com facilidade através das muitas brechas do sistema. 

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Parte 2: Quem monitora as fundações de Genebra e por que isso importa? 

Em Genebra, dois órgãos são responsáveis pelo monitoramento das fundações: a Autoridade de Supervisão Federal e a Autoridade de Supervisão Cantonal. Cada fundação fica submetida a uma ou à outra instância, dependendo da área em que atua. Estruturas que operam em nível nacional ou internacional estão submetidas à autoridade federal, enquanto aquelas que operam localmente devem se reportar ao cantão. No entanto, as metas declaradas pelas fundações são flexíveis, e essa lógica pode ser manipulada para melhor servir aos interesses dos doadores. “Por exemplo, algumas fundações declaram um escopo nacional ou internacional em suas metas, porque planejam se expandir, mas acabam trabalhando apenas em Genebra. Ainda assim, prestam contas à autoridade federal”, diz Jean Pirrotta, diretor da Autoridade de Supervisão Cantonal de Genebra.

As duas Autoridades seguem procedimentos e requisitos legais distintos. Não há coordenação e praticamente nenhuma comunicação entre elas. Esse cenário fragmentado cria lacunas perfeitas para as fundações que desejam subverter o sistema. “Algumas podem contratar advogados especializados para aconselhá-las sobre qual Autoridade propõe um processo de supervisão mais fácil”, diz Laurent Crémieux, especialista do Depto. Federal de Auditoria.

“Você poderia operar um negócio e fazê-lo passar por uma organização sem fins lucrativos”

Em 2021, Crémieux supervisionou uma auditoria da Autoridade Federal de Supervisão, cuja tarefa era monitorar as 791 organizações sem fins lucrativos de Genebra que movimentam juntas 17 bilhões de francos. A situação é, como ele descreve, alarmante. “As autoridades federais operam principalmente com verificações formais e raramente monitoram as atividades de uma fundação para além das declarações de seus fundadores. Se todos os documentos estiverem em ordem, a fundação recebe sinal verde”, diz Crémieux. “Você poderia operar um negócio e fazê-lo passar por uma organização sem fins lucrativos, e isso passaria despercebido”, completa.

Outra questão são os muitos anos de atraso no processamento da documentação de uma fundação. Apesar da expansão da equipe de supervisão, um aumento constante no número de fundações a serem supervisionadas significa que, em longo prazo, o acúmulo de funções permanece. Enquanto isso, as fundações não monitoradas têm liberdade para continuar com suas atividades.

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gráfico SWI / Kai Reusser

Desde a auditoria anterior, que havia sinalizado a maioria desses problemas já em 2017, Crémieux vem lamentando que muito pouco tenha mudado na esfera federal. Uma das únicas áreas de melhoria nos últimos cinco anos foi a criação de um sistema digital para processar os envios. Até 2022, as fundações tinham que enviar sua documentação pelos Correios.

Órgãos competentes se recusam a supervisionar

Enquanto o sistema federal está sobrecarregado, as atividades de monitoramento parecem funcionar sem maiores percalços em nível cantonal. Jean Pirrotta, diretor da Autoridade de Supervisão Cantonal de Genebra, gerencia uma equipe de 14 pessoas que supervisiona 600 fundações e 200 fundos de pensão. Ele assegura que não há atrasos nos procedimentos e observa que sua equipe costuma realizar checagens meticulosas, mas não invasivas. “Não podemos efetuar investigações aprofundadas em todas as fundações, mas, quando surge um risco, investigamos”, garante.

O Tribunal de Contas de Genebra, cuja função é controlar a administração cantonal, discorda. Em 2011, o Tribunal declarou que a documentação recebida pela Autoridade “é insuficiente para entender a atividade e a operação das fundações e para monitorá-las adequadamente”. Uma avaliação que o diretor entende e na qual tem trabalhado. “As coisas mudaram desde então”, argumenta Pirrotta. Ao ser questionado sobre o que poderia melhorar em seu trabalho em Genebra, ele responde: “Nada”. Para Pirrotta, o risco de que as fundações administrem mal seu patrimônio é amplamente superestimado. O setor de fundações em Genebra é, a seu ver, “saudável”, com “raros” casos de abuso.

Mas será que a fraude é realmente rara ou apenas raramente detectada? Pirrotta admite: “Se notamos algo suspeito, não vamos manter a fundação sob nossa vigilância. Tivemos o caso de uma fundação criada por investidores de países estrangeiros e suspeitamos de evasão fiscal, por isso não assumimos [a supervisão]”, explica. “Não nos consideramos competentes nesse contexto”, completa. Quando questionado a respeito do que acontece com as organizações sem fins lucrativos cuja fiscalização é rejeitada, Pirrotta cita o exemplo de uma fundação que ficou sem supervisão durante 20 anos, pois todas as autoridades se recusaram a monitorá-la.

Sistema desarticulado

A insuficiência das autoridades de supervisão é ainda mais grave em função da incapacidade desses órgãos de se comunicar com outros especialistas vinculados ao Estado que estejam envolvidos com as fundações. Por exemplo: não há comunicação entre os órgãos de supervisão e o departamento responsável pelas finanças. “No caso de suspeita de lavagem de dinheiro, os serviços de monitoramento não têm permissão para consultar as autoridades competentes”, explica Crémieux.

Essa opacidade na comunicação entre os especialistas no combate à lavagem de dinheiro e seus colegas de supervisão impede as autoridades responsáveis pelo monitoramento de saberem mais sobre as práticas ilícitas que podem enfrentar. “Se você for um especialista jurídico, sem conhecimento aprofundado sobre desfalque, lavagem de dinheiro, otimização de impostos ou gestão de ativos, você não vai conseguir identificar facilmente essas violações”, lamenta Crémieux.

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gráfico SWI / Kai Reusser

A mesma separação acontece entre a Autoridade Federal de Supervisão e a instância tributária do cantão – o único órgão responsável pela decisão sobre a utilidade pública de uma fundação e a possível isenção de impostos da mesma. “Isso se deve ao sigilo fiscal, um valor que superior a qualquer outro tipo de informação na Suíça e em Genebra”, completa Crémieux.

E o sigilo se estende ao próprio Depto. Federal de Auditoria. Em 2021, Crémieux e sua equipe pediram para consultar as informações fiscais do cantão, mas o acesso foi negado. “Assim, não pudemos verificar se as prescrições legais em termos de isenções fiscais foram aplicadas de forma adequada e homogênea em todo o país”, explica ele.

Esse sistema desarticulado permite lacunas regulatórias que complicam a supervisão e permitem abusos.

Avaliação de risco

Não surpreende que, como mostram os dados, as autoridades de supervisão não costumem tomar medidas repressivas contra as fundações.

Seis pessoas entrevistadas pela swissinfo.ch para essa reportagem argumentam que a ausência relatada de abusos é um sinal de que as fundações são idôneas. Para Crémieux, contudo, é difícil avaliar a probabilidade de as fundações abusarem de seus privilégios. “É essa a dificuldade com a avaliação de risco. Se você não tiver uma análise de risco, é difícil saber se o risco é alto ou não”, analisa.

Na auditoria que sua equipe conduziu, dois casos problemáticos vieram à tona: uma fundação criada por uma empresa farmacêutica, com o objetivo de aumentar a conscientização sobre uma determinada enfermidade, levou os auditores a suspeitarem de que ela não passava de um disfarce para promover e vender seu próprio medicamento. A auditoria apontou ainda outra fundação, que recebeu doações de milhões de libras de um único doador, sem que essas doações fossem investigadas. “Esses casos são reais”, reforça Crémieux.

No entanto, para a Swiss Foundations, uma instituição guarda-chuva que representa 220 fundações na Suíça, o atual alcance da supervisão das fundações é “satisfatório”. Patricia Legler, diretora jurídica e política da organização, aponta o perigo de haver muitas restrições impostas a fundações que não representam risco: “Um controle excessivo significa que as fundações vão gastar dinheiro e recursos tentando responder às solicitações de vigilância em vez de se dedicarem a seu trabalho filantrópico”.

No momento, a balança da supervisão parece mais inclinada para a liberdade do que para a responsabilidade das fundações filantrópicas suíças, embora isso possa mudar no futuro. Quando contatada, a Autoridade Federal de Supervisão anunciou que havia iniciado um processo de reorganização em termos de recursos humanos e procedimentos, seguindo as recomendações do relatório do Depto. Federal de Auditoria de 2022.

Edição: Virginie Mangin/ds

Adaptação: Soraia Vilela

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