Acordo de eletricidade entre a Suíça e a UE: tudo o que você precisa saber

Os reservatórios suíços podem passar para mãos europeias? Essa e outras são questões que o texto do acordo de energia busca responder.
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Durante muito tempo, os Alpes suíços não passavam de um obstáculo com encostas íngremes, maciças e intransitáveis. Até que chegou o ano de 1872, quando a Suíça lançou a base para dois desenvolvimentos marcantes: a construção do túnel de Gotardo e, no mesmo ano, a primeira represa de concreto.
Para entender por que a Suíça e a União Europeia firmaram um acordo energético, é essencial revisitar esse passado.
O túnel de Gotardo nivelou os Alpes e transformou a Suíça em um portal entre o norte e o sul da Europa. Por um bom tempo, não havia caminho mais rápido que não passasse pelo pequeno país no centro do continente.
Com a construção de represas, a Suíça transformou seus declives em eletricidade. Criou reservatórios que logo se tornariam os “armazéns de energia” da Europa. Assim, assumiu ela o papel de guardiã do mercado energético europeu. A Suíça fez do seu obstáculo uma vantagem.
O início foi modesto. A primeira represa de concreto da Europa foi construída por um engenheiro suíço de 34 anos no cantão de Friburgo. Inicialmente, ela fornecia água para a cidade vizinha e energia mecânica equivalente a 300 cavalos para algumas fábricas.
Mas a eletrificação avançou rapidamente. Logo, mais e mais vales foram inundados por reservatórios, garantindo o fornecimento de energia do país. Hoje, a Suíça tem a maior densidade de reservatórios do mundo.
Eletricidade para Milão, Munique, Estrasburgo
Logo se percebeu que os reservatórios tinham outra qualidade imbatível além de gerar energia: eles também a armazenavam.
A partir dos anos 1960, a Suíça se tornou a “bateria da Europa”. Quando os países vizinhos precisavam de mais energia do que conseguiam produzir, a Suíça fornecia eletricidade para as indústrias de Milão e Munique, ou para os fogões de Stuttgart e Estrasburgo.
A rede elétrica era um componente essencial. Com os reservatórios situados em áreas remotas, era preciso desde o início transportar a eletricidade por longas distâncias. Isso levou a mais um feito pioneiro. Em 1958, a Suíça conectou sua própria rede de alta tensão às da Alemanha e da França.

Foi o nascimento da rede elétrica europeia. O “Estrela de Laufenburg”, um grande centro de distribuição próximo à fronteira alemã, foi essencial para o fornecimento seguro e estável de energia na Europa no pós-guerra.
Quanto mais ampla e interligada for uma rede, mais estável ela é, pois as cargas se distribuem de maneira uniforme. Isso é especialmente importante em redes elétricas, onde desequilíbrios podem causar apagões.
Atualmente, a Suíça está conectada a redes de alta tensão dos países vizinhos por meio de 41 pontos de interligação. E, como em 1958, a Swissgrid, que opera a rede de alta tensão suíça, continua a gerir os fluxos de eletricidade europeus que atravessam o território suíço.
Acordo energético: acesso ao mercado europeu
Para a Swissgrid, o acordo de energia traz a vantagem de maior integração com a gestão elétrica dos parceiros europeus. Isso significa que, no futuro, a empresa enfrentará menos surpresas causadas por fluxos inesperados de eletricidade vindos da Europa, que hoje precisam ser compensados no sistema suíço.
Esses fluxos são resultado do comércio internacional de energia e, segundo o acordo, a Suíça também poderá participar ativamente desse mercado.
“O que já acontece fisicamente passará a ter uma representação econômica e respaldo jurídico”, afirma Jürg Grossen, presidente do Partido Verde Liberal. Segundo o governo federal, “O acordo energético deve reforçar a segurança do abastecimento e contribuir para a estabilidade da rede.”
Ainda não se conhece todos os detalhes do acordo. Ele não chegará ao Parlamento antes de 2026, e até o momento há apenas um primeiro informativo sobre o tema. O texto completo está previsto para ser divulgado em meados de junho.
Acordo perfeito entre montanha e planície
Os reservatórios, no início, não foram criados pensando na Europa. O objetivo era atender à demanda da indústria suíça e das cidades das planícies. Era lá também que se concentravam o conhecimento técnico e os recursos financeiros necessários para construir usinas e barragens.
Mas isso exigiu um pacto entre montanha e planície, entre pobres e ricos. Empresas de eletricidade, principalmente cantonais e municipais, construíram a infraestrutura com turbinas, barragens, estradas e linhas de transmissão. Em troca, as comunidades montanhosas cederam seus vales e rios e, às vezes, até aldeias inteiras.

O acordo era justo. Firmou-se contratos de uso, chamados concessões, geralmente com duração entre 50 e 80 anos, o que previa tempo suficiente para as empresas amortizarem seus investimentos. Depois desse período, a infraestrutura construída deveria retornar às comunidades locais. Por isso, o momento em que uma concessão expira é chamado de reversão.
Esses contratos atravessaram gerações. Para que as comunidades locais também se beneficiassem no presente, foram incluídas as chamadas taxas de uso da água. As empresas de eletricidade tinham que compensar continuamente os municípios pela água que transformavam em energia. Assim, vilarejos pobres enriqueceram sem esforço próprio, e as empresas de energia lucraram ainda mais. Um verdadeiro ganho para ambos os lados.
O que acontece depois das reversões?
Agora que Suíça e União Europeia firmaram um acordo de energia, é preciso levar em conta essa dimensão histórica. A maioria dos mais de 220 reservatórios suíços foi construída entre 1950 e 1970. Ou seja: chegou a hora das reversões, e isso traz uma das grandes incertezas do acordo.
Quando os municípios ou cantões puderem redistribuir as concessões, surge a pergunta: quem poderá participar? Uma empresa elétrica europeia, por exemplo, poderia administrar um reservatório suíço?
Essa é a principal dúvida levantada por especialistas quanto ao texto do tratado. E é uma questão que certamente ganharia destaque em uma eventual campanha de referendo sobre o acordo.
Outra questão diz respeito às taxas de uso da água. A União Europeia poderia vê-las como distorções da concorrência? Chegaria ela a interferir nesse acordo histórico suíço? Segundo o informativo do governo federal, *o acordo energético não contém disposições sobre as taxas de água ou a concessão de usinas hidrelétricas. A prática atual pode ser mantida.”
Ainda assim, os críticos da UE seguem desconfiados. Afinal, com o acordo, a Suíça deverá liberalizar seu mercado elétrico. Em princípio, isso garante a entrada de fornecedores europeus no mercado suíço.
A partir dos anos 1990, os fornecedores de energia e operadores de rede foram sendo parcialmente privatizados na Suíça. Mas em 90% dos casos, os principais acionistas continuam sendo entidades públicas, como cantões ou municípios.
Em 2002, 52,6% da população votante rejeitou a liberalização total do mercado elétrico suíço.
Em 2009, o mercado foi parcialmente aberto, e empresas com consumo superior a 100.000 kWh por ano puderam escolher seu fornecedor de energia. Isso representa apenas 0,8% de todos os usuários da rede. Famílias e pequenas empresas continuam como “clientes cativos”, obrigadas a comprar energia do fornecedor local.
A partir dos anos 1970, a Suíça passou a investir em energia nuclear, e os reservatórios passaram a ter uma função complementar. Usinas nucleares produzem energia de forma contínua, dia e noite, mas o consumo humano varia ao longo do dia. O que fazer com a energia gerada à noite?

Reservatórios se tornam recarregáveis
A resposta veio com as usinas de bombeamento reversível. Elas tornam os reservatórios recarregáveis. Assim como as represas normais, eles liberam água quando a demanda é alta e o preço, elevado, o que geralmente ocorre ao meio-dia. À noite, elas utilizam energia barata para bombear a água de volta aos lagos. Comprar barato, vender caro: o modelo de negócio ideal.
Após o desastre nuclear de Fukushima, em 2011, veio a transição energética, e os reservatórios voltaram a ganhar destaque. Com a geração solar e eólica, a produção elétrica na Europa tornou-se instável, com picos e quedas abruptas. Os reservatórios ajudam a suavizar essa flutuação diária.
Há também uma variação sazonal, uma vez que no inverno, a natureza fornece pouca energia, e no verão, há energia em abundância. Por isso, os reservatórios devem estar cheios no inverno. Desde 2023, o governo federal determina as reservas de inverno, o que constituiu uma resposta à guerra de agressão russa e seus impactos no fornecimento energético europeu. O governo suíço assegura que haverá energia suficiente no fim do inverno. Essa medida interfere na liberdade econômica das empresas do setor mediante compensação, mas com certo tom de planejamento central.
Resta então a última grande pergunta que o texto do acordo precisa responder: a União Europeia poderá, no futuro, determinar qual deve ser o nível da água nos reservatórios suíços no início do inverno? Este será mais um motivo para debates intensos.
Os lagos de tom azul profundo estão prestes a se tornar o centro de uma batalha épica sobre a posição da Suíça frente à União Europeia.
Não se trata apenas do abastecimento energético seguro do país. Os reservatórios são símbolos poderosos. Eles representam valores fundamentais como força, pureza e clareza, e também toda uma série de acordos perfeitos.
Editiert von Marc Leutenegger
Adaptação: DvSperling

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