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O lado obscuro do mundo dourado do futebol

Treino em uma escolinha de futebol em Abidjan; Na Costa do Marfim existem quase 300 escolinhas. Keystone Archive

Drogba, Eto'o, Adebayor... Para dezenas de milhares de jovens africanos, o sonho é representado por uma bola. Todo ano, centenas deles procuram fazer fortuna da Europa e na Suíça.

Para a grande maioria, porém, o sonho se transforma em pesadelo. Entrevista com Raffale Poli, especialista suíço da migração no mundo do futebol.

“50 milhões de euros por Samuel Eto’o”: é a cifra que semanas atrás o Milan estava disposto a desenvolsar para contratar o atacante camaronês do Barcelona.
É muito dinheiro mas a cifra não é considerada exagerada no futebol europeu.

Há alguns anos, Raffaele Poli, pesquisador no Centro Internacional de Estudos do Esporte de Neuchâtel (oeste da Suíça) se interessa pelo fenômeno que denomina os emigrantes “com bola”. Para a grande maioria deles, as luzes dos refletores dos grandes estádios continuam sendo uma quimera.

swissinfo: O mundo do futebol que o sr. descreve como uma nova forma de escravidão é longe do ideal esportivo que se vê por aí. O sr. não exagera um pouco?

Raffaele Poli: Realmente são termos fortes, a serem usados com parcimônia. Porém, quando se observa de perto o funcionamento real desse mercado, pois trata-se de um verdadeiro mercado, esses termos não são sempre exagerados.

swissinfo: O sr. pode dar um exemplo?

R.P.: Os mecanismos são fáceis de descrever. Uma pessoa geralmente baseada na Europa vai a países africanos para descobrir novos talentos e convida-os para um breve período de testes no exterior. Se o resultado é negativo, os jovens são abandonados aos seu destino e se tornam ilegais.

O pretexto do futebol também é utilizado para convencer as famílias desses jovens a gastar milhares de euros par obter a autorização necessária à emigração.

swissinfo: Estrelas como Drogba, Eto’o, e Adebayor são uma minoria. É possível traçar o percurso dos jogadores que fazem menos sucesso?

R.P.: A maiori parte deles chega à Europa menores de idade, sem contrato e com visto de turista de três a seis meses no máximo. Durante esse período, eles fazem vários testes. O problema surge quando acaba o prazo do visto e os jogadores não conseguiram encontrar um clube para contratá-los. Aí surge o dilema: voltar para o país ou ficar na Europa?

O regresso à África é visto como uma vergonha. A família e os amigos pensam que é fácil assinar um contrato na Europa e que a culpa do fracasso cabe, portanto, ao jogador. Esses jovens tendem então a ficar e tornam-se clandestinos.

swissinfo: O que representa esse mercado? É possível quantificar o fenômeno?

R.P.: Estes problemas ligados ao tráfico de vistos são difíceis de quantificar. Uma ong francesa (Culture Foot Solidaire) que se ocupa desses casos nos últimos seis anos encontrou mais de 600 jogadores vítimas de abusos.

Os que são transferidos legalmente para clubes europeus, envolvem somas em torno de 100 mil euros ou menos. Os jogadores africanos representam 20% dos estrangeiros nas ligas profissionais européias. Alguns dos mais conhecidos nutrem os sonhos de milhões de jovens na África.

O percentual dos que realmente conseguem fama, sucesso e riqueza é muito baixo. Segundo minhas estatísticas, 60% dos jogadores africanos que jogam na Europa e que têm um contrato, após algumas temporadas são excluídos do futebol profissional ou entram em decadência.

swissinfo: O primeiro jogador africano chegou em 1984. Hoje todos os times têm jogadores africanos. O que mudou?

R.P.: Mudou tudo. A economia do futebol europeu sofreu uma forte polarização. Os grandes campeonatos tornaram-se ainda mais ricos, graças aos direitos de televisão, e os pequenos campeonatos como na Suíça devem contentar-se com cifras derrisórias.

Os clubes suíços têm grande dificuldade em contratar grandes jogadoes e passaram a formar novos talentos na Suíça e a comprar jogadores mais baratos na África e na América Latina.

O campeonato suíço funciona um pouco com um trampolim ou uma vitrina. Os jogadores que vêm de longe devem se habituar ao futebol europeu e fazer o possível para agradar empresários e dirigentes dos países vizinhos que têm um campeonato mais competitivo. É o que ocorre na Suíça, na Bélgica e na Holanda, por exemplo. Mas Bélgica e Holanda adotaram um salário mínimo para os jogadores estrangeiros.

swissinfo: Essa forte presença de estrangeiros “baratos” influencia os jogadores suíços?

R.P.: Como ocorre em outros setores da economia, o jogador que vem do estrangeiro pressiona os salários. Nas minhas entrevistas, constatei que muitos jogadores ganham menos de 1.000 francos por mês.

Cria-se então um mecanismo de dummping salarial. O governo e os inspetores do mercado de trabalho têm meios de intervir mas não o fazem porque têm muitas outras prioridades.

swissinfo: As autoridades suíças e europeus são conscientes do problema?

R.P.: Existe uma certa consciência através da mídia. No entanto, quando se trata de agir, a questão é abandonada facilmente porque são problemas complicados e transnacionais.

Mas não precisa ir muito longe para ver que os efeitos dessa “migração com bola” são devastadores, especialmente na África onde milhões garotos abandonam a escola e sua família para tentar uma carreira que continua muito utópica.

swissinfo, entrevista de Daniele Mariani

Na temporada 1992/1993, os clubes suíços contrataram dois jogadores de origem africana. Dez anos depois, eles são mais de 50 nos clubes suíços.
A idade média dos jogadores estrangeiros no futebol suíço era de mais de 29 anos no final dos anos 70 e de 22 anos na temporada 2002/03.
Entre 1977 e 1982, quase 90% dos jogodores estrangeiros na Suíça vinham de países europeus.
Na temporada 2002/03, essa porcentagem caiu para 29%. 34% dos jogadores eram provenientes da América Latina e 33% da África. Os 4% restantes vinham de outros continentes.

Em março deste ano, o Parlamento europeu aprovou um relatório sobre o futuro do futebol profissional na Europa.

O documento prevê reformas importantes, em particular quanto à proteção dos jovens jogadores, a transparência financeira dos clubes e o controle dos empresários de jogadores.

O relatório preconiza a criação de um fundo de solidariedade para financiar programas de formação nos países de origem dos jogadores estrangeiros e reconhece, pela primeira vez, que a presença de adolescentes no mercado é um grande problema.

A bola agora está no campo da FIFA e da União Européia de Futebol (UEFA). As duas entidades levaram em consideração o relatório em suas próximas reformas.

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