
Cego suíço e fisioterapeuta dá lição de vida na Itália

A estrada sinuosa e estreita termina no vilarejo de Quorle, nenhuma rua ou calçada, e poucas casas rústicas e uma igreja de pedra.
Dali em diante existem apenas trilhas e picadas no meio dos bosques. Aqui começa o mundo de Wolfgang Fasser, o suíço que dilata o tempo.
Do parapeito da antiga canônica, onde vive, ele debruça-se sobre uma janela aberta para um vale na região da Toscana, entre as cidades de Poppi e Arezzo, e com um horizonte estendido até os confins meridionais do continente africano, em Lesotho.
Este suíço nascido em Glarus, 55 anos atrás, dos quais os últimos 40 sem poder ver o que ouve, toca, come e cheira, não conhece fronteiras e exerce a profissão de fisioterapeuta e músico-terapeuta na Europa e na África. A perda da visão, por causa de uma doença anunciada e progressiva, aguçou os outros sentidos e abriu novos caminhos para uma rica existência concentrada em ajudar o próximo.
A voz afável, lenta e mansa não esconde o tom determinado e firme em dirigir os trabalhos de criação de uma horta no terreno vizinho à igreja. Grupos de voluntários escavam o terreno, preparam as estacas, esticam os fios de arame seguindo as instruções de Wolfgang Fasser, que não deixa passar um detalhe em branco.
“Acho que este buraco tem que ter 40 centímetros, este ainda está raso”, diz ele, enquanto pega uma picareta e aumenta a profundidade, medida com os palmos da mão. Pessoas de todas as idades e de diferentes regiões da Itália viajam para desfrutar alguns dias em compania de Wolfgang Fasser.
“Esta é a minha primeira vez aqui. Sabia que iria encontrar um ambiente familiar e de trabalho. Estou gostando muito”, diz Elena, funcionária administrativa numa empresa em Sesto Fiorentino.
Longe de ser um guru, o suíço ajuda homens e mulheres, estressados e pressionados por uma vida acelerada e urbana, a reencontrarem um equílibrio interior através do contato com a natureza e, ao final, com eles próprios.
“Quando entram nesta experiência, se dão conta do conceito de tempo dilatado, ou seja, aprendem a saber de novo a esperar”, afirma Wolfgang Fasser. A mudança de marcha no ritmo da vida também contribui para o visitante recuperar alguns sentidos do corpo pouco usados pelo caminho. Por isso, o terapeuta suíço propõe passeios noturnos pelos bosques das redondezas, além de refeições e concertos musicais no escuro.
Uma pequena, fluida e dinâmica comunidade rural contribui a dar sentido a vida de quem vive no isolamento da cidade. “Aqui chegam pessoas que mal conhecem os vizinhos, que não se sentem úteis nem valorizadas como seres humanos. Tantas pessoas chegam aqui da cidade, trabalham em escritório e se sentem sozinhoa…aqui elas seguem estas atividades para sentirem-se em grupo, fazerem juntas algo que faça sentido para o outro”, diz Wolfgang Fasser.
Novos caminhos
As trilhas foram batidas à exaustão por Wolfgang Fasser desde a sua chegada em Quorle. “ Eu cheguei aqui com um grupo de alunos da universidade de Zurique. Eu era professor de fisioterapia e ele me convidaram para fazer uma viagem. Eu gostei muito dos sons e dos perfumes da natureza em Quorle e decidi ficar para morar de vez”, disse ele. Com a ajuda de dois cães labradores adestrados, seus companheiros de vida ao longo dos últimos 20 anos, Wolfgang Fasser foi adquirindo o conhecimento necessário para passear sózinho pelo bosque.
Explorador de si próprio assim como dos terrenos vizinhos e de terras distantes, o suíço foi expandindo a fronteira do seu mundo, a 360 graus. Trilhas seculares, engolidas pelas árvores e arbustos e usadas para o transporte de grãos dos antigos lavradores e camponeses, foram limpas e reabertas com o trabalho braçal de Wolfgang Fasser e a colaboração de alguns amigos. Hoje, ele conhece toda a região como a palma da mão.
À luz do dia, fitas penduradas nos troncos indicam o caminho a seguir para aqueles que se aventuram de olhos bem abertos, mas temem se perder durante o passeio e não encontrar o caminho de volta. Wolfgang Fasser usa outras sensações e sentidos para se orientar e memorizar trajetórias, perfis e obstáculos. Ele capta indicações praticamente invisíveis a olho nu e, por isso mesmo ignoradas pelas pessoas que se concentram apenas na visão para memorizar uma trajetória.
O latir de um cão à distância, a inclinação do terreno, o desenho de um ramo mais baixo decifrado com o tato, as rochas nas margens das trilhas, o som do riacho, a direção da luz do sol que esquenta a face do rosto e por aí vai, a lista de referências físicas, mais ou menos abstratas, parece não ter fim…Wolfgang Fasser não se perde e, durante a noite, leva pelas mãos os visitantes para a descoberta dos prazeres da vida lenta e condicionada pelo paladar, pela audição, pelo olfato e pelo tato. Na escuridão total é ele quem guia o grupo.
O contato com a natureza sempre foi uma constante na vida de Wolfgang Fasser. Já era assim quando o pequeno Wolfgang se impressionava com o silêncio das catedrais, com o som da avalanche de neve, dos desmoranamentos das rochas, do rumor dos pingos da chuva e dos assovios dos ventos que se ouve na montanha…o pai era diretor de escola, amante da música, a mãe adorava as pedras e a arte figurativa e cuidava dos cinco filhos. Ambos transmitiram a Wolfgang o amor e o respeito pela natureza e pela cultura. “Eu sou uma criança da natureza, quando cheguei aqui era engraçado…cerca de 15 anos atrás eu saia com o meu cachorro e com um gravador para registrar os sons da natureza e me chamavam de maluco”, lembra Wolfganga Fasser à swissinfo.
Como toda criança, antes de privilegiar a visão em detrimento dos outros sentidos, Wolfgang Fasser usava todos eles de igual para igual. Na época da sua infância a televisão era quase ficção científica. A família ouvia os programas trasmitidos pelo rádio. Ao invés de “ver” as estórias ele podia apenas imaginá-las atrás dos espessos óculos que escondiam os olhos verdes.
A sonoplastia dava os contornos musicais das narrações. As primeiras noções de flauta começaram quando Wolfgang conseguia ler as notas, mais tarde elas prosseguiriam no saxafone, já através do método Braile. Continuidade é uma das palavras chaves de Wolfgang Fasser.
Equilíbrio
A criação da horta no terreno baldio de Quorle é obra da sua perseverança. Aos poucos ele vai construindo o futuro deste vilarejo rumo a auto-suficiência, uma metáfora real da autonomia conquistada por ele próprio, com sacrifício e determinação, sem dar descontos a nada e a ninguém.
Visionário, Wolfgang Fasser, antes da chegada dos visitantes, demarcou o terreno com passadas largas e decididas, tais como tomou as rédeas de sua vida quando a vista apagou lentamente, depois de oito anos de longa agonia, num dia de sol de primavera, no meio de uma escalada que marcou também o final do processo da retinite pigmentosa. Lá em cima, na parede do Todi, quintal da sua casa de infância, por volta dos 3.600 metros de altitude, tudo ficou opaco, para sempre.
Ali ele se despediu dos óculos, do mundo visual, mas não o da imaginação que, com a ajuda da memória o auxilia a construir e a reconstruir as cenas já vistas e aquelas que ele nunca irá ver. Aqui embaixo, em Quorle, Wolfgang Fasser se move pelo terreno acidentado com a intimidade de quem somente o poderia conhecer de olhos fechados. Os outros tropeçam no cascalho irregular, acostumados a caminhar sobre as calçadas planas e não esburacadas das cidades bem cuidadas.
O vilarejo ganhou uma nova vida desde a chegada de Wolfgang Fasser que virou o embaixador honorário desta localidade de origem humilde e camponesa, com menos de 30 habitantes. Através do trabalho de fisioterapeuta ele atende a pessoas com dificuldades neurológicas, musculares, ósseas e psicossomáticas. Os exercícios e os jogos recreativos e didáticos, com a música e com a voz, em grupo ou individual, são realizados junto à instituição Trillo, em Becarino, perto de Quorle. As mesmas atividades são desenvolvidas no seu estúdio, em Zurique.
Já em Lesotho, na África do Sul, Wolfgang Fasser supervisiona a formação de fisioterapeutas. Ele usa a sua experiência para ensinar os jovens profissionais africanos. Mas também aprende e adquire conhecimento numa troca única de impressões e sabedoria. “Eles vivem a tragédia da Aids, tantas pessoas morrem, homens de 40 e 50 não existem mais, então os jovens tentam criar um mundo melhor, e quando você fala de um projeto, “podemos fazer assim, assado”, me respondem, ok, não tem problema, vamos fazer e existe tanta liberdade nesta ação…aqui não, se discute de tudo, por tudo, para no final, debater para não fazer”, constata o suíço.
Assim, Wolfgang Fasser se torna uma espécie de elo entre dois mundos tão distantes entre si, mas unidos pela necessidade individual de tantos habitantes de ter um tratamento especial por causa das doenças do corpo e da alma. Fasser respeita ao máximo a cultura tradicional e entra em ação sem conflito com os curandeiros locais de Lesotho.
E de terapia em terapia, Wolfgang Fassser louva de viva voz o lugar escolhido como moradia.
Documentário
Nas horas vagas, o suíço exerce a profissão de documentarista, escritor e autor de artigos e publicações sobre as terapias através da música e do toque, como divide os seus conhecimentos. Com um gravador nas mãos, ele registra os cantos da fauna de Quorle. O microfone de Fasser registra o gorjeio de aves e pássaros endêmicos ou migratórios, diurnos ou noturnos, além dos animais comuns das redondezas como vacas, bois, galinhas, javalis, porcos-espinhos, cervos. O material serve para o trabalho de terapia com os pacientes portadores de graves deficiências fisicas e para “ilustrar” os passeios com os visitantes.
O suíço “interfere” nos sons da natureza ao criar composições a partir das notas musicais emitidas pelos “habitantes” dos bosques. Trilhas sonoras permeiam o silêncio imposto pelo isolamento do lugar e criam um diálogo insusitado e harmonioso, entre o homem e o meio-ambiente.
O amor pelo cinema o levou a se transformar não apenas em técnico sonoro, mas também em protagonista de um filme. Projetado na tela grande, com o biográfico “O Jardim dos Sons”, Wolfgang Fasser ganhou uma inesperada notoriedade. O documentário, do diretor Nicola Belluci, recebeu o prêmio de melhor filme no 45° Festival de Cinema suíço de Solothur. A película soube transmitir o amor pela vida e a sensibilidade e a solidariedade deste suíço, exemplo de tenacidade e perseverança.
As primeiras verduras da horta de Wolfgang Fasser deverão nascer ainda nesta primavera, em Quorle. As sementes já foram lançadas na terra e no céu, onde irão germinar na forma de plantas e e de nuvens….a criatividade de Wolfgang Fasser é um território fértil. Ele vai continuar plantando hoje para colher amanhã, cuidando de um belo jardim para atrair as borboletas, ao invés de correr atrás delas.
Guilherme Aquino, Qorle, swissinfo.ch
“Invisível aos Olhos” é um livro que Wolfgang Fasser escreveu junto com o autor Massimo Orlandi.
Wolfgang Fasser aprendeu os caminhos e as trilhas de Quorle graças aos dois cachorros que o guiaram pelos bosques das redondezas durante mais de uma década.
Todos os anos, Wolfgang Fasser viaja para Lesotho, país africano muito pobre, para ensinar e supervisionar os fisioterapeutas locais, além de atender pacientes.
Wolfgang Fasser, além da horta, está reformando as instalações da Igreja de Quorle para receber novos visitantes.
Wolfgang Fasser pensa grande, sempre.

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