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Acabou a época do crédito fácil e barato

Fernando Martins da Silva

A crise financeira, que ainda não acabou, trará mudanças que ainda não são visíveis, como um papel mais importante do Estado e de organizações internacionais na regulamentação e no controle dos mercados.

O problema em 2009 será a economia, com a recessão que está chegando. Essas e outras questões são abordadas por Fernando Martins da Silva, chefe da política de investimentos do BCV, segundo maior banco cantonal suíço.

swissinfo: Como o senhor se sente depois das medidas anunciadas na Europa e nos Estados Unidos?

Fernando Martins da Silva: Sinto-me melhor porque os mercados reagiram às medidas de salvamento da economia mundial.

Se houver alguns dias de euforia nas bolsas, a crise será esquecida?

Não, a crise vai continuar. Simplesmente penso que passamos o ponto culminante no meio financeiro, mas a crise vai continuar agora na economia. Já se sente uma certa precaução dos investidores e, por outro lado, o acesso ao crédito é mais limitado do que no passado. Penso que vamos evitar uma recessão grave, mas teremos um clima que estará mais perto da recessão do que da expansão em 2009. As decisões coordenadas de injeção de capitais, sobretudo no nível europeu, vão aliviar a recessão, mas não evitá-la.

A crise financeira teve dois grandes defeitos: dificultou o acesso ao crédito para as empresas e para os particulares e o custo do crédito está muito elevado. Ora, as taxas de juro sempre têm muito impacto na economia. Não estamos diante de uma catástrofe e sim no fim de um ciclo como tem ocorrido regulamente nos últimos 40 anos.

A crise veio dos Estados Unidos, mas o primeiro esboço de solução foi da Europa?

É verdade, e os Estados Unidos adaptaram o plano inicial para se aproximar das medidas tomadas na União Européia e na Inglaterra para a recapitalização do setor bancário. Mesmo assim, certos bancos europeus e norte-americanos não estão suficientemente capitalizados. A entrada no Estado nesse processo vai permitir aos bancos voltar ao seu papel inicial, que é de colocar óleo nas engrenagens da economia.

Como foi possível permitir chegar a uma situação dessas antes de intervir?

Essa situação é resultante de muitos anos de política errada das autoridades. Houve um conjunto de vários fatores e vários responsáveis. As raízes dessa crise começam em 2001, quando houve os atentados de setembro nos Estados Unidos e a crise dos valores tecnológicos, que foi das ações e não do crédito como agora. Nessa época, a Reserva Federal, – que é Banco Central dos Estados Unidos – baixou as taxas de juros de maneira impressionante (de mais de 5% para 1%), para justamente evitar uma recessão. O crédito era praticamente gratuito e o governo Bush, com a mesma intenção, baixou muito os impostos. Mesmo assim, houve uma queda no crescimento nos Estados Unidos devido à falta de investimentos, mas o consumo continuou positivo. Agora estamos assistindo à primeira recessão do consumidor nos Estados Unidos desde 1990, e o consumo representa 70% da economia. Foi então a queda dos juros que fomentou a especulação no setor imobiliário.

A partir de 2004, o Banco Central começou a subir as taxas de juros, mas não conseguiu dominar as taxas de longo prazo porque, entretanto, houve uma afluência de capitais asiáticos e dos países produtores de petróleo, que mantiveram as taxas de juros a médio prazo relativamente baixas. E a maior parte dos empréstimos imobiliários são feitos justamente a médio prazo. O consumidor norte-americano já tem uma certa propensão a se endividar e a bolha financeira foi crescendo. Devido à concorrência entre eles, os bancos começaram a elaborar produtos tão opacos que, mesmo eu como profissional, não consegui compreender todos esses produtos e suas montagens financeiras. Penso também que as autoridades foram completamente ultrapassadas. Temos então um triângulo em que todos cometeram erros: o consumidor, os bancos e as autoridades. Certos países europeus também se endividaram, especialmente os mediterrâneos, como Portugal, Grécia e Espanha, em que as pessoas se endividaram além de suas possibilidades.

Houve ainda a intervenção um pouco demorada dos bancos centrais. Para eles, a prioridade é combater a inflação, elevando as taxas de juros, ignorando que o setor financeiro tem um papel cada vez mais importante na economia. Em plena crise, a Reserva Federal norte-americana e o Banco Central Europeu subiram as taxas de juros.

E depois de anos e anos de liberalismo desenfreado recorre-se ao Estado salvador?

Eu sou um pouco filósofo a propósito disso. É próprio do ser humano progredir e se comparar, com uma certa tendência para o exagero. Isso também vale para as instituições. O princípio liberal de fazer tudo sozinho, motivado por essa concorrência, também tem seus limites. Uma lição do que se passa agora é que qualquer sistema tem seus limites e pontos de ruptura. A liberalização muito forte dos mercados financeiros e de produção tive um impacto muito positivo sobre a economia mundial. Mas novamente as novas tecnologias que possibilitaram a globalização dos mercados levaram a exageros. Então, é preciso redefinir as regras com bastante firmeza para que o sistema se torne mais estável, e isso tem de ser feito pelo Estado.

Redefinidas as regras, quem vai controlar quem futuramente?

Penso que vai haver um conjunto de institutos internacionais, alguns já existem, como o Banco Internacional de Compensações Financeiras (BIS, na sigla em inglês) em Basiléia, Suíça, e que vão redefinir essas regras e controlar. Na Europa, geralmente há divisões em tudo, mas viu-se uma espécie de governo europeu neste momento de crise. Em matéria de controle, certas coisas serão possíveis, mas não poderão ser excessivas. Será como ocorria no passado, quando se aumentava a potência do canhão e, do outro lado, tinha-se que aumentar a couraça do navio. Durante um certo tempo, o setor financeiro vai ficar mais educado e mais calmo, mas não se poderá evitar outros exageros dentro de 15 ou 20 anos.

Até esta semana, a Suíça parecia muito calma, fora dessa confusão toda.

É típico da Suíça haver menos confusão. A Suíça tem uma posição privilegiada na medida em que tem uma balança de pagamentos positiva, uma taxa de poupança elevada e uma situação financeira boa. Viu-se novamente que as divisas procuradas em situação de crise são o iene japonês e o franco suíço. A Suíça não pode escapar ao arrefecimento da economia mundial, mas tem possibilidades de se recuperar mais rapidamente do que os Estados Unidos e certos países europeus com forte endividamento.

Seu eu bem compreendi, a discrição das autoridades suíças era para não provocar pânico. As medidas anunciadas até agora na Europa e nos Estados Unidos dividem-se em duas partes: algumas são destinadas a dissipar o receio dos clientes de perder suas economias na falência do banco. Na Suíça, as sondagens indicam que esse receio praticamente não existe. Há mais de 300 bancos na Suíça e só dois ou três estão expostos aos créditos imobiliários nos Estados Unidos.

O outro aspecto é a capitalização dos bancos. O plano anunciado quinta-feira para o UBS engloba os dois aspectos, mesmo se o receio de falência aqui é muito fraco. Mas o que vai se notar em toda parte nos próximos cinco anos é que o crédito fácil e barato acabou.

Houve realmente movimento muito grande de capital dos grandes bancos para os bancos cantonais (estaduais) e os bancos menores, inclusive para o banco para o qual o senhor trabalha?

Eu não tenho os dados em mão, mas isso ocorre nesta época de incertezas. O cantão (estado) de Vaud tem 67% do capital do BCV e isso é uma garantia. Mas posso confirmar que os bancos cantonais e os Correios (PostFinance) se beneficiaram de clientes ansiosos.

A Organização Mundial do Comércio vai reunir alguns grandes bancos para tentar evitar um colapso do comércio internacional, já que mais de 90% do comércio mundial é financiado.

Penso que a crise puramente financeira não vai passar repentinamente, mas estamos a ultrapassar o ponto culminante. A ânsia financeira vai diminuir progressivamente, mas o problema agora será mais econômico e essa preocupação da OMC é compreensível porque a atividade já está diminuindo em vários países e vai acontecer o mesmo com as transações comerciais internacionais.

O que o senhor tem a dizer ao pequeno poupador nesta época de turbulências?

Para quem tem está investindo nos mercados, penso que há duas coisas a fazer: primeiro, é preciso continuar porque as cotações estão relativamente baixas. É possível que ainda haja correções, mas é difícil imaginar que poderíamos cair ainda muito mais. Precisa ter uma certa distância porque vai haver muita volatilidade e seria um erro vender nestes níveis. Segundo, o investidor precisa diversificar porque a crise financeira vai diminuir, mas os problemas econômicos vão aumentar em 2009, como a cada 9 ou 10 anos. Não é o fim do mundo, mas há soluções para uma boa diversificação.

Várias pessoas têm prognosticado que, depois dessa crise, o mundo não será mais como antes. O senhor acredita nisso?

Talvez o mundo não seja mais como antes, mas o preto não ficar branco e o branco não vai ficar preto, se me permitem a expressão. Vão ocorrer certas mudanças, e eu penso que a mudança principal é que acabou o crédito barato e fácil. Vai haver uma fase de presença mais forte do Estado e de organismos internacionais na regulação dos mercados, embora o excesso de regulamentação também seja nefasto como o excesso de liberdade, e provavelmente também mais soluções coletivas de países e menos individuais. Penso ainda que os Estados Unidos serão obrigados a ser mais coletivos, com a nova administração, e menos sozinhos contra tudo e todos.

A crise vai provocar uma concentração de bancos?

Penso que vai haver fusões porque há ainda muita fragmentação, sobretudo nos Estados Unidos.

Não houve uma redistribuição do poder financeiro?

Este é um dos aspectos desta crise financeira. Ela marca a passagem de uma parte do poder econômico dos Estados Unidos para a Ásia, principalmente para a China. Há algumas discussões quase filosóficas acerca do declínio do império americano, mas o império chinês ainda não tem os meios de substituir o império americano. Portanto, haverá provavelmente a necessidade de soluções mais concertadas entre os Estados Unidos e o resto do mundo. O poder americano não vai ser suficientemente forte para fazer obstrução ao resto do mundo.

swissinfo, Claudinê Gonçalves

Fernando Martins da Silva trabalha no Banco Cantonal (estadual) de Vaud, oeste da Suíça, desde 1986, quando foi contratado como analista financeiro.

Foi posteriormente nomeado responsável pelo Departamento de Análise Financeira em 1995.

Desde 2001 é chefe do Departamento de Política de Investimentos.

É formado em engenharia civil pela Escola Politécnica Federal de Lausanne (EFPL) e detentor de um MBA, Master em administração de negócios pelo INSEAD, em Fontainebleau, França.

O Banco Cantonal de Vaud (BCV) foi fundado em 1845 e 67% do capital pertencem ao cantão (estado).

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