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Mujica, um político que desperta devoção e críticas

O ex-presidente uruguaio José Mujica conversa em 12 de dezembro de 2016 com o cineasta sérvio Emir Kusturica (D) em Montevidéu afp_tickers

O ex-presidente do Uruguai José Mujica deixou sua cadeira no Senado para se dedicar à “batalha das ideias”, um objetivo que é aplaudido no exterior, enquanto muitos em seu país criticam a sua gestão de governo.

A estreia no Festival de Veneza do documentário biográfico “El Pepe, una vida suprema”, do cineasta sérvio Emir Kusturica, colocará novamente o ex-presidente sob os holofotes internacionais e provavelmente dividirá as pessoas que acompanham a sua trajetória.

Aos 83 anos, o ex-guerrilheiro que presidiu o Uruguai entre 2010 e 2015 talvez tenha perdido algo da fama que o acompanhou pelo mundo em seus anos como presidente. Mas mantém intacto o carisma que atrai multidões ao filosofar sobre o futuro de uma humanidade consumista que contrasta com a sua vida austera.

No Uruguai continua sendo uma figura determinante na política pelo peso de sua bancada parlamentar. Seu nome soa, inclusive, como possível candidato a presidente em 2019.

– Gestão questionada –

Antes de terminar seu mandato, Mujica disse que deixaria “dois ou três pacotinhos” para quem o sucedesse. Fazia alusão a projetos a seguir, mas a frase alimenta seus críticos, que consideram que deixou vários problemas, como um elevado déficit fiscal, um engrossamento do Estado e uma dívida eterna em termos de educação.

Seus resultados macroeconômicos “foram ruins. Seu governo terminou com um déficit fiscal de 3,5% do PIB, que colocou a dívida pública em um caminho insustentável”, opinou o economista liberal Javier de Haedo à AFP.

“Mas seu estilo de governo foi ainda pior do que seus números, (…) sem controle sobre o investimento público. Piorou a educação, ou seja, a igualdade de amanhã, e a infraestrutura, e não avançamos na integração necessária ao mundo”.

O jovem deputado do Movimento de Participação Popular (MPP) de Mujica, Sebastián Sabini, tem uma leitura oposta. Se olhar para os índices econômicos “retrospectivamente” verá que “houve uma importante geração de emprego, a diminuição da desigualdade e a melhora no nível de renda”. “Devem colocar tudo na balança para julgar a gestão econômica”, argumentou.

– Direitos e dívidas –

Embora continue sendo popular, no Uruguai muitos veem com receio a possibilidade de um Mujica candidato. Um tenso cenário econômico pesa tanto na equação como a proximidade do político com o chavismo venezuelano.

Quem o aplaude destaca o seu papel na promoção dos direitos individuais.

“É inegável a contribuição do governo de Mujica em termos de direitos humanos”, considerou Sabini ao se referir à legalização do aborto, ao casamento igualitário e à regulação do mercado da cannabis, que habilita a venda de maconha legal nas farmácias, todas essas medidas aprovadas durante o mandato de Mujica.

O país avançou na regulação do trabalho doméstico, nas oito horas para os trabalhadores rurais, buscando melhorar a situação de “setores desprotegidos”, enfatizou.

O cientista político e colunista Francisco Faig opinou que Mujica deixou dívidas importantes durante a sua gestão e longa vida política.

“Mujica chegou com uma legitimidade dentro da Frente Ampla, com uma circunstância econômica e prestígio internacional que lhe teriam permitido liderar mudanças substanciais” no Uruguai, mas levou o país a uma maior corrupção estatal, maior clientelismo. “Nenhuma reforma a sério foi levada à frente nos temas importantes do país”, considerou Faig.

E a principal promessa de Mujica ao assumir a presidência – “educação, educação, educação” – nunca chegou.

– Sobrevivente –

Mujica é um sobrevivente humano e político. Esteve preso desde antes do início da ditadura no Uruguai, em 1973, quando a guerrilha que integrava, o Movimento de Libertação Nacional (MLN-Tupamaros), foi desarticulada após vários anos de ações violentas, assaltos, sequestros e assassinatos.

Afirma que 14 anos de prisão em condições subumanas na ditadura lhe deram tempo para introspecção e definiram quem ele é. Hoje, para este ex-guerrilheiro, “nada vale mais que a vida”.

Em seu país, a crítica ao MLN por ter pego em armas contra um governo eleito é sempre parte do debate. Mujica “ainda não assume as enormes responsabilidades do MLN na queda da democracia”, recriminou Faig.

Na política, no entanto, Mujica se adaptou. Saiu da prisão em 1985 ao começar o primeiro governo democrático de Julio Maria Sanguinetti, mas foi apenas em 1995 que teve um papel ativo na política tradicional, como deputado.

“O Mujica que conhecemos hoje combina o espírito jovem que o levou a se deslumbrar com a revolução cubana (…) com o arsenal de ferramentas e oportunidades oferecidas pelo antigo sistema político uruguaio”, que, por sua vez, “aprendeu a constranger Mujica “, concluiu o cientista político da Universidade da República Daniel Chasquetti.

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