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Nicarágua revive os horrores da guerra

Alvaro Gómez, um ex-guerrilheiro da Frente Sandinista de Libertação Nacional, caminha em 4 de julho de 2018 em frente a uma barricada na cidade de Masaya, rebelda contra o governo do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega afp_tickers

Quando tinha 16 anos, ele lutou pela revolução nas montanhas da Nicarágua. Ali, viu morrer companheiros e perdeu uma perna, atingido por um projétil RPG-7. Mas nada se compara ao que vive hoje. Não há um dia em que Álvaro não chore desde que mataram seu filho, em 21 de abril passado.

Sentado na sala de sua casa simples no bairro de Monimbó, na cidade rebelde de Masaya, Álvaro Gómez revive traumas herdados das guerras civis nos anos 1970 e 1980, assim como muitos nicaraguenses, em meio à onda de violência que deixou mais de 250 mortos em quase três meses.

Seu filho, de 23 anos, que tinha o mesmo nome que ele, trabalhava em uma fábrica e estudava finanças. Morreu em uma barricada em Monimbó, três dias depois do início dos protestos contra a reforma na Previdência Social, que resultaram no pedido de renúncia do presidente, Daniel Ortega, e da primeira-dama e vice-presidente, Rosario Murillo.

“Contam que o agarraram, espancaram, lhe deram um tiro no peito. Foi arrastado já morto. Foram policiais. Quando me avisaram, não me abalei porque achava que meu filho estava trabalhando. Fui ver no necrotério: era ele”, contou à AFP, com a voz embargada.

Faz calor. Suor e lágrimas descem pelo rosto de traços indígenas e por alguns momentos o silêncio predomina. Pregado na parede, um quadro negro com cálculos de raiz quadrada, que este professor de física e matemática, de 48 anos, ensina jovens do bairro a resolver.

“Há muito medo de que a história esteja se repetindo. A população demonstra medo com o perigo atual, mas também de voltar à situação que tanto trauma causou no tempo da guerra”, explicou à AFP a psicológica Adriana Trillos.

– “Sandinista, não danielista” –

O professor tinha 9 anos quando triunfou, em 1979, a insurreição popular que, comandada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN, esquerda), depôs o ditador Anastasio Somoza. Na década de 1980, durante a qual Ortega governou, lutou na guerra entre sandinistas e contrarrevolucionários.

“A família Ortega-Murillo está fazendo o mesmo que Somoza. Sinto coragem porque lutamos pela revolução e mandam matar os filhos e os netos de quem levou Daniel ao poder, em 1979, e depois por mantê-lo lá”, criticou.

Paramilitares e antimotins do governo, apoiados por franco-atiradores, têm gerado pânico em cidades e povoados, aonde chegam fortemente armados e encapuzados a desmontar barricadas que, segundo o governo, foram erguidas por “golpistas” e “delinquentes”.

Monimbó, símbolo da resistência sandinista e hoje rebelado contra Ortega, ainda tem muitas barricadas e está praticamente sitiado. “Trincheiras são cerradas a partir das 18h”, diz um papel colado pelos manifestantes, também encapuzados, em uma barricada perto da casa do professor.

“Sou ferido de guerra e me sinto inútil. Desde a morte do meu filho, sinto impotência e raiva de ver tantas mortes e não poder fazer nada nesta guerra desigual. Eles (as forças de Ortega) andam com armas; os jovens, com pedras e morteiros”, declarou o professor, que diz continuar sendo sandinista, mas “não danielista e muito menos murillista”.

– Sonhos e lembranças –

Em Monimbó, muitos sentem a volta do passado. Ángela Alemán, de 69 anos, diz que sua mãe foi baleada e teve vários familiares presos e torturados por Somoza durante a guerra. “Hoje, vivo com angústia porque meus filhos vão para as trincheiras”, assegurou.

Segundo a psicóloga, voltaram os temores de “desaparecimentos, prisões arbitrárias, torturas, que os filhos desapareçam e reapareçam mortos”.

A sociedade nicaraguense, diz Trillos, tem “sintomas claros de um estresse pós-traumático”, que não foi tratado depois das guerras, como são a evasão, a insônia, os pesadelos e a hipersensibilidade e um medo que provocou, inclusive, “um êxodo” nas últimas semanas.

O professor é atormentado por sonhos e lembranças. “Eu sonhei com meu filho: o vi trabalhando, o vi estudando, eu queria ver um homem casado, com família, mas este governo…”, diz, sem conseguir terminar, consumido pela dor.

Se vê telefonando para ele, conversando e ouvindo, visitando-o na casa onde morava – a uns 200 metros da dele – ou caminhando juntos – ele com dificuldade – pelas ruas de paralelepípedos do sempre combativo bairro Monimbó.

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