
O que a democracia ainda tem a ver com a ONU hoje em dia

O recuo dos EUA no sistema multilateral reacendeu debates sobre os vínculos entre democracia e governança global. Pesquisadores alertam que fóruns como o Conselho de Direitos Humanos da ONU podem ser instrumentalizados por regimes autoritários para enfraquecer normas democráticas.
“O sistema da ONU não é perfeito”, afirma Michael Møller, ex-diretor da ONU em Genebra, e continua: “Mas, desde sua criação após a II Guerra Mundial, alcançou níveis inéditos de paz, direitos e bem-estar.”
Ele reconhece que o Conselho de Segurança está hoje disfuncional, mas destaca que os projetos concretos da ONU em educação, alimentação e desenvolvimento continuam funcionando.
Apesar da percepção de que a eficácia de suas agências tenha diminuído na última década, Møller vê na estrutura multilateral um motor essencial da paz e da democracia. Outros, porém, consideram que esse legado está ameaçado.

Atualmente, há um “clima global de incerteza radical”, no qual “suposições de longa data sobre resiliência democrática e multilateralismo” foram abaladas, de acordo com o RelatórioLink externo de 2025 do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA). Isso também se deve ao governo dos Estados Unidos.
Os EUA vêm se retirando de algumas estruturas multilaterais, apesar de serem, desde a II Guerra Mundial, um importante país doador e pilar da ordem internacional. Em alguns casos, países como a China têm se oferecido para preencher essa lacuna — e associações multilaterais menos democráticas, como o grupo Brics ou a Organização de Cooperação de Xangai, estão ganhando destaque.
Nessa situação, a questão sobre se o multilateralismo e a democracia se reforçam mutuamente torna-se fundamental. O multilateralismo poderia transformar-se em uma força de desmantelamento da democracia sob novas condições?
Multilateralismo no desmantelamento da democracia
A pesquisa de Anna M. Meyerrose, cientista política norte-americana, aponta nessa direção. Em um artigoLink externo, ela alerta para o fato de que países que sofrem retrocessos democráticos podem agir como “cavalos de Troia” para minar as organizações internacionais. Juntamente com seu colega Irfan Nooruddin, ela analisou os resultados de votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH) entre 2006 e 2021.
O foco está nos países que sofreram redução da democracia após um período de democratização. De acordo com sua pesquisa, esses “retardatários” desafiam o CDH mais do que seus “colegas historicamente não democráticos”.
Os países que passaram por uma transição democrática tenderiam a se abster ou votar “não” com mais frequência sempre que as resoluções visassem violações de direitos humanos em países específicos.
Ao mesmo tempo, esses Estados usariam o instrumento da Revisão Periódica Universal (UPR) para criticar mais frequentemente as deficiências de direitos humanos nas “democracias ocidentais consolidadas”, “a fim de desafiar a ordem internacional liberal estabelecida.”
Meyerrose considera até mesmo as organizações multilaterais parcialmente responsáveis pelo desmantelamento da democracia em muitos países. As ações das organizações internacionais após o fim da Guerra Fria, escreve ela em resposta a uma pergunta da Swissinfo, “criaram involuntariamente condições que favorecem a erosão da democracia”. Seu livro sobre o tema, “Erodindo a democracia de fora para dentro” (no original “Eroding democracy from the outside inLink externo“), publicado pela editsora Oxford University Press.
O foco da promoção internacional da democracia tem sido o fortalecimento de Estados e governos. Isso possibilitou uma democratização inicial, mas tornou mais provável o desmantelamento da democracia a médio prazo.
Isso ocorre porque outras instituições democráticas decisivas, como os partidos políticos, foram negligenciadas pelos patrocinadores internacionais. Depois de 1989, na esperança de que regimes autocráticos se abrissem, mais poder foi delegado a organizações internacionais, o que acabou enfraquecendo os sistemas partidários locais.

Mostrar mais
Autocracias superam democracias e paz global se fragiliza
“Recusa dos EUA em defender a ordem liberal”
Apesar de sua perspectiva sóbria, Meyerrose acredita que a promoção da democracia ainda pode motivar os Estados a preservar “pelo menos instituições democráticas mínimas.”
Ela também critica o “isolacionismo dos EUA” sob Donald Trump: “A recusa incontrolável e irreversível dos EUA em defender a ordem internacional liberal contra seus críticos está levando o mundo a um território não visto desde o período entre guerras da década de 1930.”
Meyerrose teme uma erosão ainda maior da coalizão democrática ocidental dos últimos vinte anos, já que o CDH, em particular, e o sistema internacional de direitos humanos que ele lidera, têm cada vez menos defensores.

ONU define a democracia
É fato conhecido que ditaduras e democracias estão igualmente representadas nos órgãos da ONU.
Em vez de “democratização”, termo considerado complexo, são usados conceitos como “participação” ou “justiça”. “Mas agora estamos vendo como esses termos (diluídos) também estão desaparecendo dos documentos da ONU, a pedido das delegações dos EUA”, observa a cientista política Christine Lutringer.
Juntamente com Laura Bullon-Cassis, Lutringer buscou esclarecer os vínculos entre democracia e multilateralismo em um estudo conjunto realizado pela Fundação Kofi Annan e o Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra.
NesteLink externo, ela afirma que os direitos humanos são pré-requisitos para sociedades democráticas. Ao mesmo tempo, a democracia é a única forma de governo que “permite o pleno gozo de todos os direitos humanos.”
Foi apenas em 2002 que o CDH definiu a democracia de forma abrangente, indo muito além de eleições regulares: a definição inclui liberdades pessoais e sociais, o Estado de Direito, a separação de poderes, a responsabilidade e a liberdade de imprensa. De acordo com essa definição, os direitos humanos e as liberdades fundamentais só podem existir nesse tipo de governo.
Bullon-Cassis notou algo surpreendente durante as discussões do projeto: os participantes perceberam que raramente discutem a essência da democracia. “Especialmente em nossa mesa-redonda sobre democracia e direitos humanos, aqui em Genebra, às margens do CDH, diplomatas e personalidades de alto escalão enfatizaram como raramente colocam a democracia no centro quando falam sobre direitos humanos”, diz Bullon-Cassis.
“Minilateralismo”
Lutringer também vê sinais positivos para o desenvolvimento multilateral. A União Africana, por exemplo, adotou recentemente uma definição abrangente de democracia, e há sinais em Genebra de que países menores estão se tornando mais ativos e engajados. Já se fala em “minilateralismo”, observa Lutringer.
Se a retirada dos EUA fizer com que a democracia seja menos percebida como um conceito ocidental, isso pode ser positivo, acrescenta Bullon-Cassis.
No Ocidente, o clima entre ativistas e organizações não governamentais (ONGs) é sombrio, mas, em outros lugares, há um despertar democrático. Lutringer lembra que os habitantes de Bangladesh derrubaram recentemente um governo autoritário. Bullon-Cassis menciona o Nepal, onde uma votação na plataforma Discord determinou um chefe de governo interino.
Ao mesmo tempo, Bullon-Cassis observa que a China, um país “normalmente não associado à governança democrática,” está assumindo um papel de liderança mais forte na governança global. No momento, não está claro se isso ocorrerá dentro da estrutura da ONU ou “fora dos canais existentes do multilateralismo.”

Mostrar mais
Nosso boletim informativo sobre a democracia
Historicamente, as democracias eram mais ativas na esfera multilateral. “Os países democráticos participam com mais frequência de negociações internacionais e sistemas multilaterais”, explica Lutringer. Resta saber que efeito terá quando um grande Estado democrático seguir em outra direção.
Democracia na ONU
Enquanto as duas pesquisadoras que colaboram com a Fundação Kofi Annan adotam um tom cauteloso em suas análises, Michael Møller, que integra o conselho da mesma fundação, está convencido de que o multilateralismo continuará sendo um motor da democracia.
“A ONU está em uma fase de transição; uma evolução está ocorrendo”, diz Møller, que trabalhou mais de 40 anos na ONU. Mas o mundo, segundo ele, não pode sobreviver sem um sistema multilateral. Por mais integrado que seja o sistema global de Estados, ele precisa de cooperação.
Para Møller, o processo de intercâmbio dentro da estrutura multilateral é, por si só, uma contribuição para a democratização.
“Se preferir, há diferentes níveis de democracia – local, nacional e global. A Assembleia Geral da ONU, em Nova York, é uma forma de democracia, na qual todos os países se reúnem e discutem como lidar com questões globais que precisam ser abordadas em conjunto.”
Mostrar mais
Edição: David Eugster/gm
Adaptação: Alexander Thoele

Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch
Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch
Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!
Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.