
Após 80 anos, em que medida a Carta das Nações Unidas é relevante?

A Carta das Nações Unidas completa 80 anos em um momento em que Israel, Irã e Estados Unidos estão lançando mísseis e a Rússia continua sua invasão na Ucrânia. No contexto atual, o que significa a Carta das Nações Unidas e será que ela ainda é respeitada?
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A Carta das Nações UnidasLink externo foi criada há exatos 80 anos. Hoje, se ela é mencionada nas notícias, geralmente é para dizer que um evento, como um ataque de mísseis, invasão ou anexação de território, violou seus princípios. O que realmente resta desse texto? Aqui está uma resposta em cinco perguntas.
O que é a Carta das Nações Unidas?
É o texto de fundação das Nações Unidas (ONU), originalmente assinado por 50 países na Conferência de São Francisco após o término da Segunda Guerra Mundial em 1945. Ela entrou em vigor em 24 de outubro do mesmo ano.
A Carta da ONU forma a base do direito internacional atual, estabelecendo seus princípios fundamentais. Esses princípios incluem a soberania dos Estados, a igualdade das nações perante a lei, a proibição do uso da força, exceto em legítima defesa ou por decisão do Conselho de Segurança da ONU, o respeito aos direitos humanos e a cooperação internacional.
De certa forma, é a constituição do sistema multilateral, um tratado internacional vinculativo que cada Estado se compromete a respeitar ao ingressar nas Nações Unidas. Ela contém 111 artigos, organizados em 19 capítulos.
A Carta também preparou o caminho para outros textos históricos, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e, mais recentemente, o Pacto para o Futuro de 2024.
Qual é sua razão de ser?
O principal objetivo da Carta é promover a paz no mundo. O texto atribui a responsabilidade por essa tarefa primeiramente ao Conselho de Segurança da ONU, especialmente a seus cinco membros permanentes: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Mas em uma época em que nunca houve tantos conflitos, é difícil olhar para os resultados do multilateralismo.
“Dado o uso unilateral da força pela Rússia, Estados Unidos e Israel, tendemos a pintar um quadro sombrio em termos de paz e segurança”, diz Vincent Chetail, professor de direito internacional no Geneva Graduate Institute. “Mas no campo da cooperação técnica, houve muitos sucessos menos visíveis.”
A Carta também estabelece as bases para a cooperação em muitas outras áreas, incluindo saúde, telecomunicações e meteorologia. Esse trabalho está concentrado nas agências técnicas da ONU, que estão sediadas principalmente em Genebra.
A Carta está sendo mais desrespeitada do que no passado?
Lendo as notícias, incluindo os recentes ataques israelenses e americanos contra o programa nuclear do Irã e a guerra em curso da Rússia na Ucrânia, dá a impressão de que a Carta da ONU é menos respeitada hoje do que no passado.
“Essa é de fato a sensação. Mas se dermos um passo atrás, perceberemos que as grandes potências que violam a lei internacional não são fundamentalmente novas”, diz Chetail.
Ao longo das décadas, várias grandes potências violaram a Carta em uma série de conflitos. Entre eles estão a Guerra da Coreia, iniciada em 1950, a Guerra do Vietnã e a intervenção dos EUA na década de 1960, a invasão soviética do Afeganistão em 1979 e a guerra no Iraque travada pelos EUA e seus aliados a partir de 2003.
Chetail acredita que as violações estão mais visíveis do que nunca, principalmente por causa das mídias sociais, e que há uma maior conscientização e conhecimento do direito internacional entre o público, que está mais disposto a denunciá-las.
“O que é preocupante hoje é que parece que os poderosos estão violando a lei sem sequer se preocupar em justificar ou projetar uma imagem de respeito à lei”, acrescenta.
Os Estados tradicionalmente invocam o Artigo 51 da Carta, que garante o direito à autodefesa em caso de “agressão armada”. Quando as pessoas atacam e afirmam que estão se defendendo de uma ameaça não comprovada, a disposição é deturpada.
Isso é ilustrado, de acordo com Chetail, quando os governos tentam justificar o uso da força em nome da mudança de regime, como os Estados Unidos, a Rússia e Israel fizeram nos últimos anos em diferentes contextos.

Mas a Carta ainda tem peso?
O fato de os Estados continuarem a invocar a Carta para se justificar ou se defender demonstra sua importância simbólica. A China, por exemplo, invoca regularmente os princípios de soberania e não interferência, definidos na Carta, para rebater as críticas de que não está respeitando os direitos humanos – mesmo quando as críticas vêm da ONU.
Mas provavelmente é para os países menores, incluindo a Suíça, que a Carta ainda é particularmente importante. “Estados poderosos podem se basear na lei do mais forte. Portanto, a Carta da ONU é claramente um fator de estabilidade e segurança para os países mais fracos”, diz Chetail.
A Carta e as Nações Unidas também tiveram um papel importante na descolonização, abrindo caminho para a independência dos países colonizados. Em 80 anos, o número de membros da ONU aumentou de 50 para 193.

A Carta pode ser reformulada?
Existe um mecanismo que prevê esse processo. Dois artigos (108 e 109) permitem a introdução de emendas, desde que dois terços da Assembleia Geral e todos os membros permanentes do Conselho de Segurança as apoiem.
A Carta recebeu emendas várias vezes desde sua criação. As mudanças mais significativas incluem a adição de membros não permanentes ao Conselho de Segurança, que aumentou de seis membros para dez. Há também a expansão do número de membros do Conselho Econômico e Social da ONU, de 18 para 27 e depois para 54 membros.
Agora surgem pedidos de mudanças mais amplas. A Link externoCoalition for UN Charter Reform (Coalizão para a Reforma da Carta da ONULink externo) está pedindo uma Conferência Geral (seria a primeira, embora o Artigo 109 a preveja) para revisar a Carta em sua totalidade.
O Brasil, a África do Sul e a Índia, em particular, são a favor. No centro do debate está o Conselho de Segurança, paralisado pelo poder de veto de seus membros permanentes. Somente uma emenda à Carta poderia alterar a composição do Conselho, que reflete o equilíbrio de poder após a Segunda Guerra Mundial.
Ninguém acredita que suspender o poder de veto seja realista no momento, mas a ampliação do número de membros permanentes para incluir países da África ou da América do Sul, por exemplo, poderia agradar alguns membros da comunidade internacional.
Edição: Virginie Mangin/fh
Adaptação: Clarissa Levy

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