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Após 80 anos, em que medida a Carta das Nações Unidas é relevante?

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A embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, segura uma cópia da Carta das Nações Unidas enquanto discursa em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU presidida pelo ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, na sede da ONU em Nova York, EUA, em 24 de abril de 2023. Keystone

A Carta das Nações Unidas completa 80 anos em um momento em que Israel, Irã e Estados Unidos estão lançando mísseis e a Rússia continua sua invasão na Ucrânia. No contexto atual, o que significa a Carta das Nações Unidas e será que ela ainda é respeitada?  

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A Carta das Nações UnidasLink externo foi criada há exatos 80 anos. Hoje, se ela é mencionada nas notícias, geralmente é para dizer que um evento, como um ataque de mísseis, invasão ou anexação de território, violou seus princípios. O que realmente resta desse texto? Aqui está uma resposta em cinco perguntas. 

O que é a Carta das Nações Unidas? 

É o texto de fundação das Nações Unidas (ONU), originalmente assinado por 50 países na Conferência de São Francisco após o término da Segunda Guerra Mundial em 1945. Ela entrou em vigor em 24 de outubro do mesmo ano. 

A Carta da ONU forma a base do direito internacional atual, estabelecendo seus princípios fundamentais. Esses princípios incluem a soberania dos Estados, a igualdade das nações perante a lei, a proibição do uso da força, exceto em legítima defesa ou por decisão do Conselho de Segurança da ONU, o respeito aos direitos humanos e a cooperação internacional.

De certa forma, é a constituição do sistema multilateral, um tratado internacional vinculativo que cada Estado se compromete a respeitar ao ingressar nas Nações Unidas. Ela contém 111 artigos, organizados em 19 capítulos.  

A Carta também preparou o caminho para outros textos históricos, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e, mais recentemente, o Pacto para o Futuro de 2024.

Qual é sua razão de ser?

O principal objetivo da Carta é promover a paz no mundo. O texto atribui a responsabilidade por essa tarefa primeiramente ao Conselho de Segurança da ONU, especialmente a seus cinco membros permanentes: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Mas em uma época em que nunca houve tantos conflitos, é difícil olhar para os resultados do multilateralismo. 

“Dado o uso unilateral da força pela Rússia, Estados Unidos e Israel, tendemos a pintar um quadro sombrio em termos de paz e segurança”, diz Vincent Chetail, professor de direito internacional no Geneva Graduate Institute. “Mas no campo da cooperação técnica, houve muitos sucessos menos visíveis.” 

A Carta também estabelece as bases para a cooperação em muitas outras áreas, incluindo saúde, telecomunicações e meteorologia. Esse trabalho está concentrado nas agências técnicas da ONU, que estão sediadas principalmente em Genebra.

A Carta está sendo mais desrespeitada do que no passado? 

Lendo as notícias, incluindo os recentes ataques israelenses e americanos contra o programa nuclear do Irã e a guerra em curso da Rússia na Ucrânia, dá a impressão de que a Carta da ONU é menos respeitada hoje do que no passado. 

“Essa é de fato a sensação. Mas se dermos um passo atrás, perceberemos que as grandes potências que violam a lei internacional não são fundamentalmente novas”, diz Chetail. 

Ao longo das décadas, várias grandes potências violaram a Carta em uma série de conflitos. Entre eles estão a Guerra da Coreia, iniciada em 1950, a Guerra do Vietnã e a intervenção dos EUA na década de 1960, a invasão soviética do Afeganistão em 1979 e a guerra no Iraque travada pelos EUA e seus aliados a partir de 2003.

Chetail acredita que as violações estão mais visíveis do que nunca, principalmente por causa das mídias sociais, e que há uma maior conscientização e conhecimento do direito internacional entre o público, que está mais disposto a denunciá-las. 

“O que é preocupante hoje é que parece que os poderosos estão violando a lei sem sequer se preocupar em justificar ou projetar uma imagem de respeito à lei”, acrescenta. 

Os Estados tradicionalmente invocam o Artigo 51 da Carta, que garante o direito à autodefesa em caso de “agressão armada”. Quando as pessoas atacam e afirmam que estão se defendendo de uma ameaça não comprovada, a disposição é deturpada. 

Isso é ilustrado, de acordo com Chetail, quando os governos tentam justificar o uso da força em nome da mudança de regime, como os Estados Unidos, a Rússia e Israel fizeram nos últimos anos em diferentes contextos.

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Delegações de 50 nações trabalham no conteúdo da Carta das Nações Unidas na Conferência Fundadora da ONU em São Francisco, EUA, entre 25 de abril e 26 de junho de 1945. Keystone

Mas a Carta ainda tem peso? 

O fato de os Estados continuarem a invocar a Carta para se justificar ou se defender demonstra sua importância simbólica. A China, por exemplo, invoca regularmente os princípios de soberania e não interferência, definidos na Carta, para rebater as críticas de que não está respeitando os direitos humanos – mesmo quando as críticas vêm da ONU. 

Mas provavelmente é para os países menores, incluindo a Suíça, que a Carta ainda é particularmente importante. “Estados poderosos podem se basear na lei do mais forte. Portanto, a Carta da ONU é claramente um fator de estabilidade e segurança para os países mais fracos”, diz Chetail. 

A Carta e as Nações Unidas também tiveram um papel importante na descolonização, abrindo caminho para a independência dos países colonizados. Em 80 anos, o número de membros da ONU aumentou de 50 para 193.

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Uma vista aérea mostra uma gigantesca pintura efêmera de land art do artista suíço-francês Saype intitulada “World in Progress” (Mundo em Progresso) para o 75º aniversário da assinatura da Carta das Nações Unidas. Keystone/Valentin Flauraud)

A Carta pode ser reformulada?

Existe um mecanismo que prevê esse processo. Dois artigos (108 e 109) permitem a introdução de emendas, desde que dois terços da Assembleia Geral e todos os membros permanentes do Conselho de Segurança as apoiem. 

A Carta recebeu emendas várias vezes desde sua criação. As mudanças mais significativas incluem a adição de membros não permanentes ao Conselho de Segurança, que aumentou de seis membros para dez. Há também a expansão do número de membros do Conselho Econômico e Social da ONU, de 18 para 27 e depois para 54 membros. 

Agora surgem pedidos de mudanças mais amplas. A Link externoCoalition for UN Charter Reform (Coalizão para a Reforma da Carta da ONULink externo) está pedindo uma Conferência Geral (seria a primeira, embora o Artigo 109 a preveja) para revisar a Carta em sua totalidade.

O Brasil, a África do Sul e a Índia, em particular, são a favor. No centro do debate está o Conselho de Segurança, paralisado pelo poder de veto de seus membros permanentes. Somente uma emenda à Carta poderia alterar a composição do Conselho, que reflete o equilíbrio de poder após a Segunda Guerra Mundial.  

Ninguém acredita que suspender o poder de veto seja realista no momento, mas a ampliação do número de membros permanentes para incluir países da África ou da América do Sul, por exemplo, poderia agradar alguns membros da comunidade internacional.  

Edição: Virginie Mangin/fh

Adaptação: Clarissa Levy 

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