Suíça e Argentina se encontram no cinema de Mumenthaler
Depois de nove anos longe dos festivais, a diretora suíça‑argentina Milagros Mumenthaler reaparece com o filme "As Correntes", um drama de refinamento visual que abre com um salto angustiante em Genebra.
Já transcorreram 14 anos desde que um filme suíço ganhou o Leopardo de Ouro, o prêmio principal do Festival de Cinema de Locarno: em 2011, ele foi concedido a Abrir portas e janelas, da realizadora suíço-argentina Milagros Mumenthaler. Argentina de nascimento e ascendência, a cineasta tem dupla nacionalidade: quando ainda era criança, sua família se mudou para Genebra, onde ela viveu até a idade adulta.
Além dessa vitória em Locarno, a trajetória de Mumenthaler como renomada cineasta internacional permanece ligada à Suíça, onde ela cresceu. Embora, na realidade, ela tenha trabalhado e produzido seus filmes na Argentina, um país instável e ao mesmo tempo conhecido por sua riqueza cinematográfica.
Essa dupla nacionalidade faz com que Mumenthaler não se sinta totalmente em casa em nenhum dos dois países. “Alguns críticos argentinos disseram que [meu novo filme] The Currents é mais um filme europeu”, comentou a diretora, entre risos, após a estreia do longa-metragem no Festival Internacional de Cinema de Viena (Viennale), em outubro. “Na Argentina, não sou 100% argentina; e também não me sinto muito suíça, pois é um país onde não moro há muitos anos. Estou ancorada em Buenos Aires por causa do meu filho”, relata.
Após um hiato excepcionalmente longo, o novo filme de Mumenthaler, que trata de uma estilista argentina da alta sociedade, cuja vida é virada de cabeça para baixo após uma viagem fatídica para receber um prêmio na Suíça, teve sua estreia suíça no Festival Internacional de Cinema de Genebra em novembro. A diretora relembra ter sido justamente ali que ela deu seus primeiros passos no mundo do cinema, como voluntária de 16 anos no que na época se chamava Tous Écrans.
Anatomia de uma queda
O filme The Currents deve sua origem a uma dessas viagens decisivas de Mumenthaler à Suíça. Em 2016, ela voltou a Locarno com A ideia de um lago. No caminho de volta para casa após o festival, ela fez uma parada em Genebra e começou a conversar com amigos e familiares sobre uma imagem que não saía da sua cabeça: a de uma mulher que, por impulso, se atira de uma ponte da cidade à correnteza de um rio.
É com essa imagem enigmática que The Currents começa. Lina, uma estilista argentina interpretada por Isabel Aimé González-Sola, está na Suíça para receber um prêmio. Nos primeiros momentos do filme, ela joga o prêmio na lixeira do quarto do hotel.
À distância, em uma única tomada longa, vemos a personagem atravessar uma ponte sobre o rio Ródano, escalar uma grade no meio e se jogar na água. O fato de tudo se desenrolar em uma única tomada longa, sem truques de edição para mascarar a queda, torna o início do filme ainda mais forte e chocante.
“Às vezes, você fica com muito medo quando vai para uma varanda”, diz Mumenthaler ao relembrar as origens dessa imagem. “Acho que me encontrei naquele momento, eu queria pular. Não pular para morrer, mas para voar. Nunca cheguei perto de fazer isso, mas sei que muitas pessoas têm suas fragilidades e, nesses momentos, podem se desconectar mentalmente. Elas não são indecisas na vida [como eu] e, por isso, talvez ajam por impulso”, descreve a cineasta.
A protagonista Lina é uma dessas pessoas. Depois que a personagem se espatifa na água, Mumenthaler pula para uma cena em que ela está envolta em papel alumínio, atravessando o saguão de um hotel com os pés encharcados. Sua luta em pânico no rio, a fuga incerta para a margem, bem como a percepção avassaladora da magnitude de seu contato súbito com o esquecimento são prontamente omitidas e mostradas em detalhes apenas muito mais tarde no filme. Mumenthaler parece querer preservar a estranheza do momento sem explicações psicológicas, mantendo-nos desequilibrados desde quando começa a história.
“As pessoas são misteriosas. Tenho um filho e até ele é um mistério para mim”, diz a diretora. “Às vezes sinto que sei muito sobre ele, mas, na verdade, não sei realmente o que ele está pensando. Essa é uma parte importante (de fazer filmes) para mim. Nunca quero explicar o porquê. Não é interessante oferecer um diagnóstico dos meus personagens”, acrescenta.
Um elemento literário
Mumenthaler justifica o intervalo de nove anos entre seu filme anterior e este mais recente ao enfatizar o quão crucial é o processo da escrita para aquilo que ela faz — um trabalho lento de composição da história e, em seguida, do roteiro. Além disso, a diretora ressalta como é difícil fazer um filme independente hoje em dia, sobretudo para uma pessoa introvertida, cuja inspiração vem principalmente da leitura silenciosa de romances.
“Filmar é sempre um pesadelo para mim”, assume a cineasta com franqueza, depois de detalhar o quanto do prazer de fazer cinema vem de seus dois elementos solitários: escrever e editar. “[Durante a produção de um filme independente], você é forçado a correr contra o tempo; você é submetido a uma pressão intensa que não ajuda em nada”, relata.
Mais do que o cinema, é a literatura que abastece seu impulso de fazer filmes. “O ato de ler é o que mais me inspira no que faço”, diz Mumenthaler. “Seja Senhora Dalloway, romance de Virginia Woolf, e não As ondas, também de Woolf (apesar da semelhança com o título de seu mais novo filme). Ou Joyce Carol Oates, Natalia Ginsburg, Samanta Schweblin, María Negroni… Essas escritoras inspiram o que faço”, completa.
The Currents é a história da complexa transformação interior de uma heroína da classe alta, existencialmente dilacerada. Com um título que sugere um mundo interior tempestuoso revolvendo-se sob a superfície, o filme talvez se assemelhe, em alguns aspectos óbvios, a um romance de Henry James ou Edith Wharton. Mas Mumenthaler é uma criatura totalmente cinematográfica, uma estilista visual até os ossos. “Adoro escrever, mas meus roteiros estão literalmente cheios de descrições [de imagens]”, admite a diretora.
Como em seus dois outros filmes, boa parte de The Currents é contada sem palavras: movimentos suaves de câmera facilitam o fluxo entre as sequências, desenvolvendo uma narrativa contínua sem muita necessidade de exposição explícita. “Escrevo extensas histórias de fundo para as minhas personagens – deve ser meu lado literário –, mas, no final, sempre procuro formas de traduzir um roteiro organicamente em imagens”, explica a realizadora.
A liberdade avança, o cinema recua
A Swissinfo encontrou-se com Mumenthaler na tarde do 27 de outubro de 2025. Naquela manhã, o mundo havia acordado com a notícia de que Javier Milei, o presidente argentino que se autodenomina anarcocapitalista, registrava uma vitória surpreendente nas eleições intermediárias por seu partido A Liberdade Avança, consolidando o apoio da população a uma agenda radical de cortes de gastos.
“A Argentina é um país resiliente”, suspira Mumenthaler, quando o assunto inevitavelmente vem à tona. “Como povo, passamos por grandes altos e baixos. Mas sim, estão literalmente matando a indústria do cinema. Cineastas da Argentina já estão migrando para Espanha, Uruguai, México. Meus amigos que trabalham com produção começaram a dirigir para a Uber”, relata a diretora.
Em dezembro, The Currents estreia no festival Fuera de Campo, na Argentina, evento organizado “por iniciativa própria de um grupo de diretores, produtores, críticos e profissionais do cinema” paralelamente ao Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata, que era o principal evento cinematográfico do país até ser acometido pela administração Milei e destruído.
“Depois (de Viena e Genebra), levaremos o filme até lá”, diz Mumenthaler, ao se referir à estreia na Argentina de The Currents. “É bom resistir”, sentencia.
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Visions du Réel: Lucrecia Martel expõe as armadilhas ficcionais dos documentários
Edição: Virginie Mangin
Adaptação: Soraia Vilela
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