Suíça avança na medicina de gênero apesar de contexto global
A medicina de gênero luta para se consolidar, mas enfrenta obstáculos como falta de financiamento e resistência política. Na Suíça, um grupo pioneiro faz avanços na área.
No ano passado, a cardiologista alemã Carolin Lerchenmüller se tornou a primeira professora a ocupar integralmente uma cadeira de medicina de gênero na Suíça. Na época, ela disse à Swissinfo que não pretendia ser apenas uma mascote. Seu objetivo era consolidar a medicina de gênero como uma “disciplina acadêmica completa”.
Em outubro deste ano, na ocasião do primeiro Simpósio Suíço de Medicina de Gênero, realizado em Berna, Lerchenmüller reiterou esse desejo. “No início, é preciso ter pioneiros”, disse a professora da Universidade de Zurique. “Mas, para sobreviver, a medicina de gênero não pode estar associada a pessoas individuais. Ela precisa ser institucionalizada”.
A medicina de gênero é uma nova área que reconhece como sexo e gênero afetam questões de saúde e a forma como as doenças se manifestam. Seu objetivo é integrar aspectos biológicos e socioculturais às pesquisas, à prática médica e ao ensino.
Sexo está relacionado a características biológicas como cromossomos, hormônios e anatomia. São fatores que influenciam questões como o desenvolvimento de doenças e a forma como medicamentos são metabolizados. Gênero, por sua vez, diz respeito à identidade e papéis culturais e sociais. Ele influencia, por exemplo, a busca por cuidado médico, como os sintomas são comunicados e percebidos, e quais riscos e estressores individuais as pessoas encontram em seu cotidiano. Fonte: Universidade de Zurique (UZH)
Já houve muito progresso, afirma Lerchenmüller à Swissinfo. Existe agora a Sociedade Suíça para a Saúde de Gênero, um programa nacional de pesquisa sobre medicina de gênero, e diretrizes preliminares que integram sexo e gênero à cardiologia.
O mundo, por outro lado, parece estar caminhando na direção contrária, afirma Lerchenmüller. Desde que assumiu a presidência dos EUA, Donald Trump iniciou um ataque aberto contra a diversidade e inclusão em pesquisas e ambientes de trabalho. As agências de saúde e ciência do país cortaram o financiamento de centenas de projetos e reescreveram páginas e orientações sobre diversidade de gênero. Sob pressão, empresas do setor farmacêutico também reduziram suas metas e iniciativas voltadas para diversidade, equidade e inclusão.
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A Suíça tem agora uma professora de Medicina de Gênero
Lerchenmüller não foi diretamente afetada, mas “quando o maior financiador público do mundo faz cortes gigantescos, é um problema para todos”, disse à Swissinfo.
Ela mantém o otimismo graças ao grande número de pessoas que está se dedicando ao avanço da medicina de gênero. Muitos especialistas americanos estão mais abertos a trabalhar com colaboradores europeus, conta Lerchenmüller. “Depois de uma década pedindo aos nossos líderes que levassem a medicina de gênero a sério, a Suíça está ganhando mais visibilidade na área”. Isso ficou evidente no primeiro Simpósio Suíço de Medicina de Gênero, realizado em Berna nos dias 20 e 21 de outubro. Cerca de 280 pessoas de universidades, da indústria e do setor público participaram do evento, com aproximadamente 12% delas vindas do exterior.
Uma tarefa árdua
O campo da medicina de gênero na Suíça ainda tem muito pela frente. Além da maré contrária nos Estados Unidos, há ainda a questão da falta de financiamento.
A Fundação Nacional Suíça de Ciência lançou o primeiro programa sobre “Saúde e Medicina de Gênero” no final de 2023. O programa recebeu CHF 11 milhões, no contexto de um orçamento anualLink externo de CHF 1 bilhão. Cerca de 140 propostas foram submetidas por 389 pesquisadores e pesquisadoras. Mas só havia recursos para financiar 19 delas.
“O número de propostas recebidas é um sinal de que as pessoas na Suíça estão interessadas e são capazes de realizar pesquisas na área. Só precisamos de mais financiamento”, disse Lerchenmüller durante o simpósio.
Onze milhões de francos suíços para um período de cinco anos é irrisório. O Zoológico de Zurique, por exemplo, gastou 57 milhões de francos em apenas dois anos com seu parque de elefantes. “Para um tópico tão complexo e crucial, essa quantia é ridícula”, disse Antonella Santucionne Chadha, médica e neurocientista que fundou a Fundação do Cérebro das MulheresLink externo, na Basileia. “Devemos um século de pesquisa às mulheres”.
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Desenvolvimento de medicamentos passa por revisão de sexo e gênero
Ainda assim, o programa nacional é um passo importante para a Suíça, que demorou a alcançar outros países. Embora algumas universidades suíças ofereçam matérias sobre medicina de gênero há mais de 20 anos, o país só passou a ter centros de pesquisa e cargos universitários dedicados à área nos últimos anos – bem depois de universidades nos Estados Unidos, Alemanha e Suécia terem feito o mesmo.
Despolarizando o termo ‘gênero’
O maior desafio, diz Lerchenmüller, é fazer as pessoas entenderem o que é a medicina de gênero.
“O termo gênero pode ser percebido como polêmico por algumas pessoas, mas isso se deve a uma falta de entendimento sobre o que ele significa no contexto da medicina”, explica a médica cardiologista.
Para cirurgiões como Guido Beldi, que trabalha no Inselspital, o maior hospital de Berna, existem razões práticas para levar em consideração os fatores de sexo e gênero, especialmente no caso de transplantes de fígado. Às vezes, pode até mesmo ser uma questão de vida ou morte.
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Como os ataques de Trump à diversidade afetam a indústria farmacêutica
Ele menciona, como exemplo, como a adrenalina é liberada mais rapidamente em pacientes do sexo masculino, o que os protege quando a pressão arterial cai durante a cirurgia. Por outro lado, as pacientes do sexo feminino secretam cortisol, que é o principal “hormônio do estresse”, por períodos mais longos, o que auxilia na cicatrização e pode explicar por que as mulheres costumam se recuperar mais rapidamente após uma cirurgia.
As diferenças vão além da anatomia. Ele contou ao público do simpósio que geralmente as mulheres demoram mais a serem encaminhadas para cirurgia, além de terem menos acesso a procedimentos cirúrgicos mais avançados. “O sexo dos pacientes determina como seus corpos reagirão à cirurgia; o gênero influencia o momento e a forma como essas pessoas serão tratadas”, explicou Beldi. Levar fatores sociais e biológicos em consideração garante que os pacientes recebam cuidados personalizados, adaptados às suas necessidades.
Mas ainda há muito que não se entende sobre as diferenças de sexo e gênero, especialmente ao longo de diferentes idades, disse Beldi.
Os médicos e médicas pioneiras na área na Suíça têm consciência de que medicina de gênero ainda é um termo politicamente carregado. Eles esperam conseguir transformar o simpósio em um evento anual, voltado não apenas para profissionais da saúde, mas também para políticos e líderes empresariais.
“Na Suíça, falar de gênero pode suscitar reações negativas, principalmente à luz do que está ocorrendo nos Estados Unidos”, destacou Carole Clair, médica da UniSanté, em Lausanne, e presidente do comitê gestor do programa nacional de medicina de gênero. “Precisamos despolarizar o tema”.
Edição: Virginie Mangin/fh
Adaptação: Clarice Dominguez
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