Perspectivas suíças em 10 idiomas

A humildade e a perseverança de recomeçar em outro país

A problemática da reinserção no mercado de trabalho de migrantes latino-americanos com nível superior é fato. Pesquisas comprovam a dificuldade de obtenção de empregos para estrangeiros na mesma faixa anterior ao êxodo, principalmente de países fora da Organização de Cooperação Econômica (OCDE), que migram sem contrato de expatriação ou educação formal realizada na Suíça. 

Homem posando de uniforme
Raul Buchi: de professor universitário a funcionário do mês no McDonald’s. cortesia

Em geral, o acesso ao mercado se dá com empregos de menor complexidade, abaixo da capacidade que esse estrangeiro poderia executar. Trocando em miúdos, quem executava função de gerência no Brasil dificilmente terá a mesma oportunidade por aqui.

A professora Yvonne Riaño, professora da Universidade Berna e de Neuchâtel, mapeou em alguns estudos, a problemática desse grupo social em relação à acessibilidade do mercado de trabalho no território suíço. Em matéria publicada no blog em 1 de dezembro de 2017 , swissinfo.ch abordou o trabalho da professora, que atesta que o capital cultural dos emigrantes é desvalorizado: os certificados do país de origem não são reconhecidos; experiências profissionais e diplomas de fora da Europa são menos valorizados devido à falta de informação e ao preconceito cultural.

Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.

Integração

Se a desigualdade de oportunidades por um lado representa uma faceta negativa da migração, por outro significa oportunidade de melhoria de qualidades em diferentes áreas da vida, ajudando inclusive na integração à nova sociedade. Muitas vezes cruel, pode ser vista de duas maneiras: como fracasso ou como curva no caminho entre A e B. A escolha da primeira opção não traz benefício, só sofrimento. Já a da segunda, se enxergada como um desvio que pode proporcionar autoconhecimento e treinamento de uma série de competências necessárias para se viver no exterior, mantém o foco no objetivo, que é o de se inserir, se integrar e o de ser pago por um ofício.

A despretensão, dessa maneira, deve ser incluída no pacote das competências interculturais que todo estrangeiro precisa desenvolver. Ser culturalmente competente ou ter humildade cultural é, em grande parte, uma questão de estar aberto a aprender.

Modéstia

A literatura não fala escancaradamente sobre humildade, mas muitos ensinamentos levam à interpretação. Quando se discute competência intercultural, que é a capacidade de movimentar em diferentes grupos culturais, subentende-se modéstia, desafetação. Soberba bloqueia, cega para novas possibilidades.

E se preconceito dificulta na aquisição de competência cultural, deixar de aceitar uma oferta de emprego, que naquele momento faria sentido, porque não corresponde ao seu nível educacional pode levar a um bloqueio na integração naquele novo país. De acordo com o livro Comunicação entre Culturas (Communication Between CulturesLink externo – dos autores Larry Samovar, Richard Porter e Edwin McDaniel,  muitos especialistas  no assunto acreditam que desenvolver a flexibilidade no contexto da comunicação intercultural significa ter exatamente a habilidade de se ajustar ao cenário.

Outro ponto interessante sugerido pelo livro é a própria maneira de lidar com o choque cultural, termo foi cunhado na década de 1960 pelo antropólogo Kalvero Oberg, que explica um período de transição na adaptação a um novo país e que pode trazer uma série de desconfortos. “Só experiencia esse choque quem sai do seu próprio gueto”. No parágrafo sobre as lições do choque, o texto conclui que o período difícil dá a chance de aprender sobre si mesmo, e se tornar mais multicultural e bi-cultural.

Mesmo que essas justificativas não convençam o leitor, é importante lembrar que é melhor sair de casa sendo pago do que se isolar e ainda não receber por isso.

De professor universitário a funcionário do mês no McDonald’s – Para exemplificar melhor o tema, a swissinfo.ch conversou com o professor de Neuropsicologia e Terapia Cognitiva Comportamental e mestre em Filosofia Raul Buchi, que guardou seus diplomas brasileiros e aceitou a vaga de auxiliar de produção no McDonald’s. O professor publicou a experiência em seu blog bilinguLink externoe e conta à reportagem o que aprendeu.

Depoimento

Raul migrou com mais de 40 anos, fase da vida em que a carreira já está mais definida. Com passaporte suíço e uma vontade enorme de ter mais segurança, arriscou sair da zona de conforto que vivia no estado do Paraná e tentar algo novo no país de seus antepassados.

Pai de família, se viu entre a cruz e a espada logo quando chegou. Para reconhecer o diploma e atuar como psicólogo, teria que investir quatro anos de sua vida e um valor aproximado de 35 mil francos com estudos adicionais. Com a pressa de pagar as contas, ajudar a esposa na sua microempresa de produtos homeopáticos, aceitou o emprego na rede de lanchonetes. “Fui para o primeiro dia com uma enorme sensação de derrota. Mas em pouco tempo, consegui ver além do óbvio”, explica.

“Trabalhar no Mc Donald’s pode ser uma experiência muito enriquecedora. Uma das primeiras lições que aprendi ao chegar naquele grupo tão heterogêneo, de cerca de dez nacionalidades diferentes, foi o de que todos estão literalmente no mesmo barco. Todos por todos, cada um com sua parte.

Eles me ensinaram o trabalho, com total interesse de que eu aprendesse o mais rápido possível. Sempre com muita educação e o uso do por favor e obrigado. Se um erra, compromete o resultado do outro. O processo da lanchonete, que é o mesmo no mundo inteiro há 60 anos, funciona em cadeia.  Um corta o pão, outro frita a carne, o cliente não pode esperar mais que três minutos.

É uma linha de montagem que exige perfeição. Um hambúrguer precisa ser preparado na ordem certa, no tempo correto, como o do equipamento que trabalha junto. E esse sanduíche não pode ficar na prateleira por mais de dez minutos para que a qualidade não se perca.

Os veteranos precisam transferir essa competência rapidamente para os novatos com um domínio parco da língua alemã. Frases complexas inexistem. É pega isso, faz aquilo. Dessa forma, o único jeito de ensinar é fazer junto. Lá funciona assim: quanto melhor o colega produzir, mas ele vai me ajudar depois.

Mostrar mais
Des maquettes de bateaux

Mostrar mais

Os suíços são todos imigrantes?

Este conteúdo foi publicado em Qual é a proporção de imigrante em você? A exposição do Museu de História de Berna abre com essa pergunta simples. Finalmente, não tão simples como parece, como mostra um circuito de 2 milhões de anos de movimentos populacionais no território que agora chamamos de “Suíça”. O visitante segue a trilha dos primeiros homens que…

ler mais Os suíços são todos imigrantes?

Essa prática implícita me remeteu à experiência de cooperativa de união, que é a ideia de comunidade formada por grupos informais que trocam conhecimento. A Confederação Suíça também funciona assim. As pessoas se unem para um objetivo comum. Ali, na linha industrial, ninguém é professor ou aluno. Somos todos uma unidade, capazes de realizar a sua parte, para que o todo saia bem. Cada um tem uma competência e as trocas são realizadas.

Além do processo no dia a dia, é muito interessante observar meus colegas de culturas tão distintas e suas histórias. O filho da minha colega do Sri Lanka, que chegou há 20 anos na Suíça, está para se formar em medicina. Ela é pouco integrada, fala mal o alemão, chegou já adulta.

Tem um rapaz de mais ou menos 20 anos que é trainee, cursa economia. Também filho de migrantes, mas se vê como suíço. Outros são muito bem qualificados, mas esbarram na barreira da empregabilidade, da língua, da cultura. Se o país fosse inserir essas pessoas em suas respectivas carreiras, iria ter problema para ter alguém para fritar o hambúrguer.

O trabalho é duro para quem fica no grill, a temperatura alcança os 38 graus. Mas ali, no calor e no cansaço da produção em série, me lembrei da minha avó paterna que vivia no Brasil e era suíça. Ela dizia: ninguém é melhor que o outro e não se cresce sozinho. Essa história do “self made man”, o homem que se fez sozinho, não existe. Trata-se de um egoísta que não reconhece o esforço dos que o ajudaram.

Após dois meses na função, ganhei a plaquinha do funcionário do mês, aquele que a gente vê pendurada nas filiais com a foto do empregado. Tive lágrimas nos olhos. O prêmio representa a materialização de que eu consegui transpor todas as dificuldades e me integrar àquela comunidade. Significa o real valor de um time que trabalha tão unido.

E, no mais, essa máxima não é da minha vó, mas acredito muito nisso: é preciso aceitar essa nova vida de estrangeiro e se entregar a ela”. Enfim, humildade para recomeçar do jeito que dá.”

Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!

Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR