“Heimatort”: o conceito suíço único de pátria

"Local de nascimento" é um dado que consta em praticamente qualquer passaporte no mundo. Não na Suíça. Os passaportes e carteiras de identidade do país registram apenas o "lugar de origem". Qual é a diferença entre os dois conceitos e como isso afeta os suíços no exterior?
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Todo cidadão suíço tem um “lugar de origem” – Heimatort em alemão, lieu d’origine em francês e luogo di attinenza em italiano –, mas, em um mapa, muita gente teria dificuldade para encontrar o vilarejo onde um antepassado distante viveu e que até hoje continua impresso nos documentos guardados na carteira.
“O conceito de Heimatort é uma peculiaridade suíça e é único no mundo”, escreveuLink externo Jrene Rolli na revista suíça Annabelle. A autora admitiu sua surpresa ao descobrir que, após uma fusão de municípios, seu lugar de origem havia mudado da pequena e arborizada Belpberg para Belp, sede do aeroporto de Berna.
“Fiquei indignada, senti que minha identidade havia sido roubada”, reclamou Rolli, apesar de admitir que nunca manteve sentimentos pela localidade de Belpberg, tendo nascido e crescido na vizinha Berna. “Meus ancestrais viveram em Belpberg há muitos e muitos anos, mas nem sei quem eram, como viviam e por que motivo se estabeleceram por lá”, completa.
Enquanto corria ao longo do rio até seu novo “lugar de origem”, Rolli desabafou: “Neste exato momento, sinto-me mais ligada à minha camiseta encharcada de suor – que cumpre sua função relativamente bem – do que a meu Heimatort. Sua função é mais questionável”, brinca.
Na Suíça, os dados vitais (nascimento, casamento, óbito) não são registrados apenas na localidade onde o evento ocorre, mas também no lugar de origem de cada cidadão suíço (Heimatort/lieu d’origine/luogo di attinenza).
O lugar de origem, também referido como “direito cidadão”, corresponde, na Suíça, ao município do qual um cidadão suíço obteve seus direitos à cidadania. Esse município é mencionado nos documentos de registros vitais (como, por exemplo, certidões de nascimento, casamento e óbito), bem como nos documentos de identidade (tais como o passaporte ou a carteira de identidade) dos cidadãos suíços – ao contrário de alguns países, que mencionam o local de nascimento.
Na Antiga Confederação Suíça, o lugar de origem era o local onde os ancestrais viviam ou adquiriam seus direitos e obrigações, inclusive seus direitos à cidadania.
Essa falta de conexão com o que se chama de Heimatort, literalmente “lugar de origem”, não é incomum. Há alguns anos, a emissora alemã de TV de direito público SRF apresentou um programa de jogos (HeimspielLink externo, ou seja, jogo do lar), no qual “três candidatos são enviados de volta a seus lugares de origem e às suas raízes”. Os participantes – a maioria deles não morava na cidade ou no vilarejo em questão há anos, se é que um dia haviam morado – eram testados em suas habilidades e seus conhecimentos sobre o local. Foi basicamente uma maneira divertida de aprender sobre regiões do país que parecem aprazíveis nas imagens de TV.

A companhia ferroviária suíça também percebeu aí uma oportunidade: no Dia Nacional da Suíça de 2009, foi oferecido um “bilhete Heimat”, que levava cada pessoa até seu Heimatort (local de origem) por 15 francos suíços ida e volta. “Muitos cidadãos suíços nem sequer sabem como é seu Heimatort”, disseLink externo Reto Kormann, porta-voz da companhia ferroviária, ao jornal Der Bund. “O feriado nacional é um bom momento para fazer uma viagem às próprias raízes”, estampou o diário.
Mas como tudo chegou a esse ponto? Como foram desencadeadas tantas emoções, envolvendo até jogos na TV e passagens de trem?
Passagem transatlântica
Durante séculos, os municípios suíços e seus cidadãos mantinham um acordo: os cidadãos cumpriam determinados deveres – como, por exemplo, integrar a força de defesa da cidade (e pagar uma taxa de adesão) – e, em contrapartida, o município cuidaria deles se passassem por dificuldades.
Os filhos herdariam o Heimatort do pai e, ao se casarem, as esposas assumiriam esse “lugar de origem” do marido. Hoje, os filhos recebem o Heimatort do pai ou da mãe cujo sobrenome possuem, e o casamento não muda nada (embora as pessoas possam trocar o Heimatort ou ter mais de um, se quiserem. Geralmente, só é preciso pagar uma pequena taxa administrativa).

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Quando foi introduzido, o lugar de origem de uma pessoa normalmente também era aquele onde ela morava. No entanto, a mobilidade crescente fez com que cada vez mais pessoas de regiões mais pobres começassem a buscar uma vida melhor em outros lugares, geralmente em espaços urbanos. Se precisassem de ajuda, o lugar de origem continuava a bancar os custos dos benefícios sociais ao reembolsar o novo local de residência da pessoa em questão.
Essa foi uma boa notícia para as camadas da população mais desprovidas de recursos: em vez de ficar sendo transferidos de um lugar para ao outro, eles sempre podiam confiar no Heimatort. No entanto, se fossem encontrados mendigando em um novo local de residência, poderiam ser enviados para casa. “Como resultado, foram organizadas várias caçadas a moradores de rua. E quem não tinha residência fixa acaba removido dos cantões em carroças”, escreveLink externo o Dicionário Histórico da Suíça.
O lugar de origem não determinava a oferta de benefícios sociais a pessoas necessitadas, nem a amplitude desses benefícios em outros cantões, mas era obrigado a arcar com seus custos. Isso acabava sobrecarregando os orçamentos locais e, no século 19, alguns municípios ofereceram passagens para o outro lado do Atlântico a seus cidadãos mais pobres – desde que renunciassem à cidadania (e, portanto, ao direito a benefícios sociais). Muitoas pessoas aceitaram a oferta e se estabeleceram nas Américas do Norte e do Sul naquela época.
Ao longo do século 20, a obrigação de sustentar os pobres foi sendo gradualmente transferida do lugar de origem para o local de residência – em 1990, o período de reembolso foi reduzido para dois anos –, mas o Heimatort ainda tinha influência sobre a vida de uma pessoa. O escritor suíço Robert Walser (1878-1956) nasceu e cresceu em Bienne, no cantão de Berna. Em 1929, foi diagnosticado com esquizofrenia e internado em uma clínica psiquiátrica de Berna; quatro anos mais tarde, contudo, foi transferido – contra sua vontade – para uma instituição no cantão de Appenzell Rhodes Exterior, porque era lá que ficava seu Heimatort (Teufen).
Em 2012, o Parlamento decidiu que o local de residência de um cidadão não poderia mais, em casos de pagamento de benefícios sociais, solicitar o reembolso perante o lugar de origem. “O Heimatort torna-se irrelevante”, estampouLink externo o diário Neue Zürcher Zeitung (NZZ).
Este vídeo mostra como o conceito de “Heimat” (terra de origem) pode ter um significado profundo para os suíços, especialmente para aqueles que vivem no exterior:
“Símbolo da identidade”
Cinco anos mais tarde, o NZZ não havia mudado de opinião: “O Heimatort perdeu praticamente todo seu significado”, escreveuLink externo o jornal. “No entanto, ninguém se atreve a tocar nesse símbolo da identidade”.
Em 2001, o Parlamento debateu, de fato, a substituição do lugar de origem pelo local de nascimento nos documentos de identidade suíços. Porém, nenhuma mudança foi feita. Walter Glur, do Partido do Povo Suíço (SVP), argumentou na época que o local de nascimento é um ponto muito aleatório: “o nascimento pode ocorrer em qualquer lugar”. Muitos suíços concordaram.
E ainda concordam. Em 2023, o Departamento Federal de Polícia (Fedpol, na sigla em alemão) publicou os resultadosLink externo de uma enquete com essa mesma pergunta, que propunha até mesmo a dispensa da necessidade de indicar qualquer localidade nos documentos.
“Uma vasta maioria foi a favor da manutenção do Heimatort nas carteiras de identidade”, constatou o Departamento: “Isso foi justificado, em particular, pela importância emocional e jurídica que o Heimatort ainda tem na Suíça. Além disso, omitir o lugar de origem poderia dificultar a identificação e incluir o local de nascimento poderia causar problemas para pessoas nascidas no exterior ou estigmatizá-las”.
O principal argumento apresentado pelos poucos entrevistados a favor da mudança para o local de nascimento era o alinhamento com os padrões internacionais vigentes. O principal argumento a favor de não registrar nem o Heimatort nem o local de nascimento foi não haver requisitos legais que os tornassem obrigatórios.

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Significado para os suíços no exterior
“Uma das atrações de um Heimatort é sua perpetuação”, argumentou o jornal Der Bund em 2012. “O lugar permanece, mesmo que a família esteja espalhada pelo mundo. O Heimatort talvez seja o valor mais tangível que cerca de 700 mil cidadãs e cidadãos suíços registrados no exterior [813 mil no final de 2023] tenham hoje”, completou o diário.
O jornal destacou que, para os cidadãos suíços que moram fora do país, o Heimatort serve como jurisdição responsável, por exemplo, em caso de divórcio. Em eleições e votações, cidadãs e cidadãos suíços que moram no exterior podem escolher se querem votar no seu antigo local de residência ou em seu Heimatort.

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Como se tornar suíço
A Organização dos Suíços no Exterior (OSA) foi uma das organizações centrais envolvidas na enquete para o relatório de 2023 da fedpol. A favor da inclusão do Heimatort, a OSA apontou que todas as mudanças de estado civil são inseridas no registro familiar do Heimatort, “o que traz vantagens para a administração nos consulados e também para os cidadãos”. Isso inclui um registro central, que ajuda a identificar as pessoas com rapidez e a esclarecer qualquer dúvida, especialmente em casos de proteção consular no exterior. Além disso, os parentes próximos podem ser rapidamente identificados e notificados.
A OSA destacou também a questão do registro de um local de nascimento “problemático” no exterior, que poderia dificultar a entrada em determinados países ou levar à discriminação de uma pessoa. Ele citou o exemplo concreto de uma suíça nascida em Tel Aviv em viagem pelo Irã.
Segundo a Organização dos Suíços no Exterior, o Heimatort tem um “significado emocional e tradicional” para muita gente. “Esse lugar de origem pode também servir de arquivo familiar. Registros de família são mantidos na municipalidade de origem, independentemente de onde as pessoas vivem no momento, e isso pode ser valioso para pesquisas históricas”, pontua a organização.
Jrene Rolli também reconhece o papel que um Heimatort pode desempenhar para os suíços no exterior. “A ideia de emigrar para uma ilha do Caribe, beber água de coco e, ao mesmo tempo, influenciar a votação em Belp, me diverte”, escreveu ela na revista Annabelle. “Isso desencadeia emoções maiores do que as que meu Heimatort algum dia despertou em mim”, resume.
Edição: Samuel Jaberg/gw
Adaptação: Soraia Vilela

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