Uruguai se despede do popular ex-presidente ‘Pepe’ Mujica

Com lágrimas, gritos de incentivo e agradecimentos, os uruguaios começaram a se despedir, nesta quarta-feira (14), de José “Pepe” Mujica, o ex-guerrilheiro que chegou à Presidência do país e se tornou referência da esquerda latino-americana, falecido na véspera, aos 89 anos.
Adepto de um estilo de vida austero, fiel à sua retórica anticonsumista, José Mujica realizou seu desejo de morrer em sua modesta casa nos arredores de Montevidéu, acompanhado de sua esposa e ex-vice-presidente uruguaia, Lucía Topolansky. Ele havia sido diagnosticado com um câncer no esôfago um ano antes.
O presidente uruguaio, Yamandú Orsi, seu herdeiro político e quem anunciou seu falecimento na terça-feira, liderou junto a Topolansky o cortejo fúnebre que saiu da sede da Presidência e chegou cerca de três horas depois ao Palácio Legislativo.
“Dói a perda de um amigo, de um companheiro”, disse Orsi, “mas ver idosos, crianças, jovens demonstrando esse carinho e essa despedida é um rebote de sentimentos que conforta”, declarou após acompanhar o cortejo e presenciar as primeiras horas do velório público no Salão dos Passos Perdidos do Parlamento.
Posicionados dos dois lados da avenida 18 de julho, a principal de Montevidéu, os uruguaios se aglomeraram para se despedir de seu líder na passagem do caixão disposto sobre uma carreta fúnebre, puxada por cavalos. “Obrigado, Pepe!”, gritavam alguns dos presentes, enquanto outros choravam.
Mujica representa “a luta, a resiliência, o seguir adiante para ajudar os mais necessitados”, disse à AFP, entre lágrimas, Solana Lozano, médica de 46 anos, que se aproximou, acompanhada da mãe e da filha, na passagem do cortejo.
– Homenagem a uma referência –
Bandeiras uruguaias e da esquerda local tremulavam desde cedo pelas ruas.
“Foi um homem que dedicou sua vida à causa dos pobres, como dizia [Eduardo] Galeano [escritor uruguaio falecido em 2015], ele apontou o norte aqui no sul. Nos mostrou ao mundo e este pequeno país foi, mais uma vez, visto e reconhecido”, refletiu Mauro de los Reyes, de 50 anos.
Esse professor, junto a dezenas de militantes, se concentrou desde cedo nas portas da sede da coalizão governista Frente Ampla, onde Topolansky também compareceu.
A esposa de Mujica, de 80 anos, demonstrou a mesma força com que o acompanhou nos últimos dias. Foi ela quem anunciou que ele estava na fase final do câncer.
Ao som de “A Don José”, um clássico da música folclórica uruguaia associado à esquerda, a passagem da carreta fúnebre foi recebida com uma onda de aplausos e gritos.
Nos arredores do Palácio Legislativo, pessoas de todas as idades, muitas com flores, aguardavam o momento para entrar e prestar seus respeitos diante do caixão.
“Sua forma de ser deixou um legado em todos nós e transcendeu fronteiras por sua sinceridade, por aquilo que ele tinha, sabe? Por sua característica única e por sua agenda de direitos que marcou o Uruguai”, comentou Braian De León, um enfermeiro de 28 anos que se juntou à procissão.
Nas redes sociais, as homenagens se multiplicaram e a frase “Gracias Pepe” (obrigado Pepe) tornou-se tendência.
Fora do Uruguai, a partida do “presidente mais pobre do mundo”, como costumava ser descrito em manchetes internacionais, provocou uma onda de mensagens de líderes latino-americanos e figuras da esquerda internacional.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu grande amigo e aliado regional, destacou “sua grandeza humana”.
Lula anunciou que viajará à capital uruguaia para se despedir dele, assim como o presidente chileno, Gabriel Boric.
– Fora do script –
Durante seu mandato presidencial (2010-2015), o ex-guerrilheiro se caracterizou por romper com o o padrão dos antecessores.
Ao discurso direto, caloroso e sem protocolos, o esquerdista somou reformas durante seus anos como presidente que marcaram o país de 3,4 milhões de habitantes.
A mais inovadora foi um plano para a legalização da maconha, que colocou o Estado no comando de tudo, da produção à comercialização.
Também legalizou o aborto e aprovou o casamento igualitário. Além disso, recebeu prisioneiros de Guantánamo, a pedido dos Estados Unidos, e refugiados sírios.
Esse espírito antissistema o levou, na juventude, a ser um dos líderes da guerrilha urbana Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros (MLN-T) e a suportar 13 anos de prisão em condições sub-humanas nas mãos da ditadura.
Mujica fez campanha pela esquerda até seus últimos dias, sem descuidar da defesa veemente da unidade latino-americana.
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