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O “credit crunch” do caixa dois

Manifestantes bloqueiam o veículo do presidente do UBS, Peter Wuffli, em 2005 para protestar contra evasão fiscal nos países em desenvolvimento. Keystone

Prisão de suíços fecha mercado informal de dólar no Brasil e sinaliza que um país historicamente tolerante com a corrupção começa a enfrentar de forma efetiva – e também polêmica – a lavagem de dinheiro.

O roteiro do complexo esquema de evasão de divisas explica como cidadãos brasileiros teriam US$ 90 bilhões depositados em contas fora do país.

Enquanto o mundo assiste aos desdobramentos da crise imobiliária nos Estados Unidos e teme os efeitos de uma possível falta de liquidez na economia mais próspera do mundo, já está em curso um profundo aperto de crédito – que os norte-americanos chamariam de “credit crunch” – num mercado genuinamente brasileiro.

Vendas de mansões e carros de luxo têm sido suspensas ou adiadas simplesmente porque os “doleiros”, empresários que comercializam a moeda americana à margem do sistema legal, sumiram do mapa desde que a Polícia Federal deflagrou, no dia 6 de novembro, a Operação Kaspar II e levou à prisão alguns desses negociantes, além de dois banqueiros suíços: Reto Buzzi, do Clariden Leu, e Luc Mark Depensaz, do UBS.

Buzzi já foi solto porque mantém residência fixa no Brasil e poderá responder ao inquérito em liberdade. Depensaz continua preso e teve seus pedidos de habeas corpus negados pelo Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte brasileira. “O nosso objetivo é sufocar financeiramente as organizações criminosas”, declarou ao Swissinfo o delegado Roberto Troncon, que chefia a divisão de combate ao crime organizado no Brasil e é hoje o segundo homem mais importante na hierarquia da Polícia Federal.

Um marco

O delegado Troncon avalia que as Operações Kaspar I e II representam um marco no combate à lavagem de dinheiro no Brasil. A primeira levou à prisão o suíço Peter Schaffner, do Credit Suisse. A segunda, além dos executivos do Clariden e do UBS, também atingiu vários de seus clientes, como os sócios de empresas como Le Postiche (líder no mercado de malas e bolsas), Gold (do setor de chaves e cadeados) e Amazon PC (fabricante de computadores). “Isso tem efeito pedagógico e ajuda a dissuadir aqueles que pretendem cometer crimes financeiros”, diz Troncon.

As duas operações policiais recentes, batizadas em homenagem a um capitão suíço que fazia a guarda do Vaticano, são apenas a última etapa de um processo que começou a se tornar visível em 2004. Naquele ano, a Polícia Federal deflagrou a Operação Farol da Colina, que atingiu vários doleiros que movimentavam a conta Beacon Hill. Através dela, brasileiros endinheirados remetiam seus recursos não declarados para o exterior por meio de um banco oficial, o Banestado, utilizando sua agência em Foz do Iguaçu, na fronteira com o Paraguai – tudo de maneira muito simples.

Isso porque o Banco Central permitia que não residentes no Brasil remetessem recursos para o exterior por meio de contas chamadas de CC-5. Como os brasileiros são conhecidos por sua criatividade, em pouco tempo cidadãos paraguaios começaram a “alugar” seus nomes para aqueles que desejassem mandar dinheiro para fora do Brasil sem que fossem identificados.

Pelo “esquema Banestado”, estima-se que cerca de US$ 30 bilhões tenham sido remetidos para fora, de forma não declarada. Grande parte desse dinheiro, fruto da sonegação de impostos, da corrupção ou mesmo do narcotráfico, acabou em contas numeradas de bancos suíços.

Doleiros confessam

Depois da Operação Farol da Colina, feita no atacado, a Polícia Federal começou a investigar os doleiros em ações individuais. Muitos deles foram presos. Em seguida, submetidos a pressões psicológicas e às péssimas condições dos presídios brasileiros, acabaram aceitando participar de delações premiadas.

Um dos casos recentes teria envolvido o doleiro Hélio Laniado, muito conhecido no jet-set de São Paulo e ex-namorado da modelo Daniela Cicarelli, que também foi casada com o jogador de futebol Ronaldo. Através dessas delações, a Polícia Federal foi unindo dados e cruzando informações até chegar aos departamentos de gestão de fortunas dos bancos suíços, como o Clariden e o UBS.

Para muita gente, no entanto, há exageros nessas ações, uma vez que evasão de divisas nem sequer é crime na Suíça. E executivos como Schaffner, Buzzi e Depensaz não deveriam ser presos, porque, na maioria das vezes, o dinheiro que chega aos bancos suíços sai de outras contas no exterior – e não diretamente do Brasil. “A Polícia Federal tem cometido muitos excessos e arbitrariedades”, avalia o criminalista Antonio Cláudio Mariz, um dos mais renomados do Brasil. “Já não temos mais Estado de Direito”, completa o advogado Eduardo Carnelós, que defende Depensaz.

A Polícia Federal, no entanto, imputa aos bancos suíços um papel mais ativo no processo brasileiro de evasão de divisas, alegando que eles prospectam clientes e até oferecem o serviço de doleiros. Embora não façam o chamado “trabalho sujo”, os banqueiros indicariam pessoas de sua confiança. No caso de Depensaz e Buzzi, a principal doleira investigada, que também foi presa, é a empresária Claudine Spiero, de São Paulo.

“Caixa dois”

Na verdade, quando um cliente vai a um escritório de private bank no Brasil e fala em abrir uma conta no exterior, há formas legais de fazê-lo. Basta declarar os valores à Receita Federal e pagar os impostos devidos. Ocorre que a economia brasileira ainda é muito marcada pela sonegação – e a carta tributária, de 35% do PIB, é considerada elevada para países com o mesmo grau de desenvolvimento. Isso ajuda a entender por que tantos empresários preferem remeter recursos “por fora”. É um dinheiro que pertence ao chamado “caixa dois”, aquele das vendas feitas sem notas fiscais e sem a incidência de tributos.

Depois que as contas CC-5 mantidas na fronteira com o Paraguai foram alvo de uma intensa blitz da Polícia Federal, também mudou o mecanismo de remessa de recursos ao exterior. Hoje, o meio mais comum é o chamado “dólar-cabo”. Nessas operações, o dinheiro do cliente é depositado no Brasil e não sai propriamente do país. Isso porque os doleiros já mantêm altas quantias depositadas no exterior. Além disso, eles também operam transações no sentido inverso, de ingresso de recursos não declarados.

Portanto, trata-se de uma via de mão dupla. Apenas de tempos em tempos é necessário fazer algumas compensações, que envolvem o envio de moeda física para o exterior. Nestes casos, malas de dinheiro ou mesmo aviões carregados de dólares podem cruzar as fronteiras do Brasil com países como Paraguai e Uruguai. “O doleiro nada mais é do que um banqueiro que opera à margem do sistema legal, com seu esquema próprio de compensação”, diz o delegado Troncon. A Polícia Federal alega que, nas Operações Kaspar e Kaspar II, a fraude seria da ordem de R$ 1 bilhão.

Clima de pânico

Outra forma de enviar recursos para fora é utilizar os serviços de empresas de comércio exterior, que podem subfaturar importações (recebendo parte do pagamento em outros países) ou superfaturar exportações (mandando mais do que seria necessário para fora). Mas o fato é que, depois das prisões dos executivos suíços, tudo ficou bem mais difícil no Brasil.

E hoje há um clima de pânico entre os banqueiros, os doleiros e seus clientes, o que ajuda a entender o peculiar “credit crunch” vivido no Brasil. Por conta disso, os US$ 90 bilhões que cidadãos brasileiros mantêm no exterior – essa é uma estima conservadora – hoje estão travados em contas numeradas de paraísos fiscais. Um deles, a Suíça, antes tido como o mais seguro de todos.

Leonardo Attuch, editor de economia da revista Istoé DINHEIRO

O esquema de remessa ilegal de dinheiro para o exterior foi desbaratado pela Polícia Federal brasileira através das operações Kaspar 1 e 2. Ele envolve doleiros, empresários brasileiros e executivos de bancos estrangeiros como o UBS e o Clariden Leu (Crédit Suisse) e teria movimentado, como se apurou nas investigações, US$ 600 milhões (1 bilhão de reais).

O sistema de compensação utilizado pelo esquema é conhecido como “dólar-cabo”. Nessas operações, o dinheiro do cliente é depositado no Brasil e não sai propriamente do país. Isso porque os doleiros já mantêm altas quantias depositadas no exterior. Além disso, eles também operam transações no sentido inverso, de ingresso de recursos não declarados. Portanto, trata-se de uma via de mão dupla.

Apenas de tempos em tempos é necessário fazer algumas compensações, que envolvem o envio de moeda física para o exterior. Nestes casos, malas de dinheiro ou mesmo aviões carregados de dólares podem cruzar as fronteiras do Brasil com países como Paraguai e Uruguai.

Outra forma de enviar recursos para fora é utilizar os serviços de empresas de comércio exterior, que podem subfaturar importações (recebendo parte do pagamento em outros países) ou superfaturar exportações (mandando mais do que seria necessário para fora).

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