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Caçadores: uma espécie ameaçada de extinção na Suíça?

A hunter with a deer on his shoulders
Andreas Käslin mostra às câmeras o resultado de um dia de caça. Stefan Vogel

Um referendo que pode levar à proibição da participação de crianças em caçadas levou o cineasta Mario Theus a realizar a produzir um documentário. Seu principal objetivo: exibir aos espectadores um mundo que "quase ninguém entende".

“Sente-se por uma hora diante do YouTube. Se você encontrar os vídeos errados, verá apenas a caça como uma maneira cruel de matar um animal”, diz Theus em seu chalé em Val Calanca, no cantão dos Grisões.

“A melhor maneira de fazer alguém entender o que é a caça é convidá-la a participar de uma. Se você realmente quer saber porque faço o que faço, porque vivo como vivo, ou responder à grande questão de como posso matar um animal, escrever ou debater não vai mudar muita coisa. Você nunca vai entender. Me faltam as palavras. Mas se você vier comigo e viver minha vida, verá o que eu experimento durante a caça. Verá quando estou feliz ou triste. Verá o que acontece consigo próprio ao ser confrontado com o ato de matar.”

Em sua tentativa de convidar não-caçadores para seu mundo, Theus passou muitas noites frias, ao longo de quatro estações de caça, vagando pelas florestas e vales de três cantões suíços com três personagens distintos: um caçador que se tornou fotógrafo, um guarda-florestal e um fazendeiro.

O resultado é o filme “Vida selvagem: caçadores e coletores” (No original: Wild – Jäger und SammlerLink externo), um retrato de 90 minutos da vida nas regiões montanhosas suíças e do papel central que a caça desempenha para muitas pessoas daquela região.

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“Tiver sorte de ter nascido em uma família de caçadores”, diz Theus, 41 anos. “Aos dois ou três anos meus pais já me levavam com eles. Via cervos ou lebres”. E é claro que seus pais lhe dirão o que é. Se virem na neve o rastro do animal que você teve servido no prato, eles lhe dirão: ‘este é o animal que você comeu ontem'”.

Theus explica como já sabia, aos quatro anos de idade, que este era o ambiente e o estilo de vida para ele. Tendo estudado engenharia florestal na Escola Politécnica Federal em Zurique (ETH), ele trabalhou como jornalista e cineasta, mas há seis anos ele notou que estava ficando deprimido.

Mario Theus
Mario Theus Stefan Vogel

“Percebi que não estava no mundo em que o meu filho de quatro anos queria estar. Trabalhava na cidade e só ia para as montanhas e florestas nas horas livres”, diz. “Se eu faço um trabalho normal, sou como um animal selvagem colocado em um zoológico. Eu começo a andar em círculos. Fico infeliz e, no final, morro mentalmente.”

Ele largou então o emprego e se tornou freelancer. Originalmente seu plano era fazer um documentário sobre predadores suíços como ursos, lobos e linces. Mas depois de uma conversa com o produtor Martin Schilt, eles decidiram que o foco nos próprios caçadores oferecia um maior potencial para uma viagem emocional e cinematográfica.

O elenco

O documentário “Wild” não é didático, nem moralizante. É simplesmente um retrato autêntico de um modo de vida que não é familiar à grande maioria dos espectadores, que terão a oportunidade de conhecer de perto os três protagonistas. Eles também terão tempo para refletir sobre possíveis novos pontos de vista com as imagens oníricas feitas com drones sobre alguns dos cenários mais deslumbrantes da Suíça.

Urs Biffiger, do cantão do Valais, no sudoeste da Suíça, é um caçador furtivo arrependido que substituiu seu rifle por uma câmera e que, desde então, teve sucesso com vários filmes, tais como “Hirsche im Oberwallis” (Cervo no Valais Superior) em 2009:

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Theus explica como os dois passariam quatro ou cinco noites consecutivas nas florestas durante quatro estações de caça desenterrando caixas de comida e bebida que Biffiger tinha escondido a fim de conseguir a melhor imagem. “O que ele pode ler na floresta, como ele conhece bem os cervos, é simplesmente incrível”. Seria de pensar que só se encontraria alguém assim na África ou na América do Norte”.

Andreas Käslin é um caçador e agricultor nos Alpes Dossen, no cantão de Nidwalden, no centro da Suíça. Em uma das várias cenas memoráveis, um dos filhos de Käslin lhe pergunta por que ele está enfiando um ramo de folhas na boca de um veado que ele acabou de matar. Ele explica comoventemente como sendo a “última refeição”, um sinal de “Ehrfurcht”, de respeito e reverência pelo animal, que agora não mais terá fome em sua viagem ao céu.

A dead deer with a branch in its mouth
Recebendo o “tiro de misericórdia”. Stefan Vogel

Pirmina Caminada é a primeira guarda-florestal da Suíça e deve ter um dos mais belos escritórios do mundo, em Val Uastg, no cantão de Grisões, no leste da Suíça. Em outra cena de levantar as sobrancelhas, Caminada, que como Theus é um dos cerca de 50 mil falantes do romanche na Suíça, decapita um cervo (morto) enquanto crianças brincam em segundo plano. Vários animais foram fatalmente feridos na realização deste filme.

Na Floresta: Caçadores e Coletores

Wild – Jäger und SammlerLink externo” foi dirigido por Mario Theus e teve sua estreia mundial no Festival de Cinema de Solothurn, em janeiro. O documentário será exibido em cinemas ao ar livre em toda a Suíça em julho e agosto e será lançado nos cinemas no dia 21 de outubro.

O filme foi apoiado pelas emissoras públicas suíças de língua romanche e alemã, RTR e SRF.

A ética

Enquanto Theus herdou o gene de caçador de seu pai, sua irmã se tornou veterinária. Uma cena com ela limpando os dentes de um gato anestesiado destaca algumas das incongruências nas atitudes de muitas pessoas em relação aos animais e à carne.

“Eu não quero atacar sua visão do mundo, mas quero provocar você a começar a pensar”, diz Theus. “Se você quiser deixar o cinema com a mesma mentalidade; se você acha que estes são idiotas loucos matando animais, e que é obviamente certo que seu cão seja tratado como um humano, você pode deixar o cinema. Mas eu queria apresentar material suficiente para que caso você esteja aberto à reflexão, você possa começar a pensar”.

Um dos principais argumentos morais contra a caça é que matar animais capazes de terem sentimentos, animais que podem sentir dor, é cruel. Afinal, como Theus justifica isso?

“Bem, esta é uma pergunta difícil que pressupõe que os caçadores estão fazendo algo que ninguém mais está fazendo. Se você aborda a questão fundamental do ponto de vista filosófico, notadamente, “deve-se matar um animal para se alimentar?”, acho que é uma resposta fácil: é claro que é mais nobre não matar”, diz ele.

“Mas, como mostra o filme, os caçadores não crescem com um fascínio por matar, mas com um fascínio pelo meio-ambiente com toda sua vida, animais e plantas”. E agora estamos no ponto em que para a maioria das pessoas o único problema é: “mas você matou!”. Sim, porque mais tarde eu quero comer o que matei! Por que você tem um problema com isso? Todos os outros animais que você compra embalados em plástico na loja também foram mortos. Então talvez o único problema seja que eu subconscientemente lhe relembre o que aconteceu com todos os outros alimentos”.

Calf in a pen
O cineasta quer que o público reflita sobre as relações entre humanos e animais selvagens, de criação e domésticos Mario Theus

Vegetarianos e veganos argumentariam que toda a carne deveria ser proibida, não importando se você mesmo a mata ou a tira da prateleira de um supermercado. Mas até mesmo o filósofo moral australiano (e vegano) Peter Singer, um pioneiro do movimento de direitos e bem-estar animal, sugere que existem argumentos válidos em favor da caça de veados em certas circunstâncias.

“Muitas pessoas que não pensam duas vezes antes de comprar presunto ou frango produzido industrialmente de um supermercado são rápidas a condenar a caça. No entanto, a caça é mais defensável do que a agricultura industrial”, escreve Singer em seu livro Ética Prática (Practical Ethics).

“Considere a caça de veados nas partes dos Estados Unidos onde não há mais predadores, a não ser seres humanos, para manter a população de veados sob controle”. Os cervos então se reproduzem ao ponto de não terem mais o suficiente para comer e começam a degradar o meio ambiente”. Eventualmente, muitos deles passarão fome. Os caçadores argumentam que uma morte rápida por uma bala é melhor para os cervos do que uma fome lenta, e os ambientalistas apontam que a alta densidade de cervos pode fazer com que outras espécies, tanto plantas quanto animais, corram risco de extinção. Que a morte por uma bala bem mirada é preferível à fome é inegável, e isto vale mesmo se os cervos forem autoconscientes”.

No filme, Theus cita um de seus professores florestais que disse que “o único veado bom é um veado morto”. Esse ainda é o ponto de vista consensual?

“Isto é apenas bom senso para os silvicultores. Eu estudei engenharia florestal na ETHZ. Éramos 30 estudantes e apenas três eram caçadores. E nós tínhamos claramente uma mentalidade diferente e uma atitude diferente em relação à vida selvagem”, explica ele.

“O silvicultor clássico está interessado na floresta e nas funções da floresta, como proteger as pessoas da neve e avalanches ou preservar e prover água limpa”. A vida selvagem é apenas um fator causador de problemas no sistema”. Vemos o mesmo com o fazendeiro que tem gado bovino ou ovino; ele está interessado nas ovelhas e na grama que alimenta suas ovelhas. Portanto, embora um lobo faça parte da natureza, ele terá dificuldades já que não há muita gente que goste ou respeite o lobo. Com o guarda florestal o problema não é o lobo, mas sim o cervo, porque o cervo come as árvores. O caçador está muito mais próximo do agricultor. Ele gosta de cervos e tem dificuldades para gostar de qualquer coisa que ponha em perigo ou reduza o número de cervos, como por exemplo, lobos ou linces”.

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Lobos na Suíça

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O referendo

Theus pensa que o modo de vida que ele capturou no cinema quase não mudou no último meio século, mas não tem certeza de qual será a situação daqui a 50 anos.

“Talvez ainda haja menos pessoas que tenham essas habilidades”, diz ele. “Mesmo o fazendeiro Andreas Käslin é alguém que talvez você não encontre mais daqui a 50 anos, uma vez que não há muitas pessoas que decidem levar este estilo de vida”.

O mesmo pode ser o caso de futuros caçadores, acredita ele. “Eles terão mais tecnologia e perderão todas suas habilidades”. Eles serão como soldados. Terão sucesso como caçadores no sentido de que poderão atirar em suas presas, mas o que perderão é a sentimento de estar conectado e a experiência. Você não a sente nem cheira”.

Um passo nessa direção de um futuro sem caçadores poderá ser dado em 13 de junho, quando os eleitores do cantão de Grisões decidirão sobre uma iniciativa que diz que “crianças de até 12 anos de idade não podem participar de caçadas e, na escola, não podem ser incentivadas a caçar”.

Andreas Käslin and children
Käslin e seus filhos ajudando no nascimento de um bezerro. Mario Theus

Não é uma surpresa que as organizações de caça (e o governo cantonal) proponham aos eleitores a rejeitar esse proposta*. “Claro que sou contra”, afirma Theus. “Acho que seria contra qualquer lei que diga aos pais qual cultura eles devam ensinar a seus filhos”.

Ele diz que o argumento oficial é que eles querem proteger as crianças da suposta crueldade e violência, mas suspeita que a verdadeira razão é reduzir o número de caçadores a longo prazo. “Os anos antes dos 12 são um período formativo na vida de uma pessoa”, diz e completa. “Se eles não forem introduzidos à caça, e não têm o interesse despertado quando jovens, pode ser tarde demais. Os organizadores da iniciativa sabem disso.”

Theus, que é normalmente calmo como seria de se esperar de um caçador, fica animado ao recordar suas próprias experiências de caça, e de proximidade com seu pai antes dos 18 anos.

Andreas Käslin, em particular, pareceu preocupado com o futuro do estilo de vida que herdou do pai, e que gostaria de transmitir a seus filhos. “Caçar e aprender a conviver com as montanhas é importante”, diz ele no filme. “É um pedaço de cultura, um pedaço da Suíça, um pedaço da vida”.

O filme “Vida selvagem: caçadores e coletoresLink externo” (no original “Wild – Jäger und Sammler” será lançado nas salas de cinema no dia 21 de outubro.

* Update: 79% dos eleitores rejeitaram a iniciativa

Adaptação: DvSperling

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