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Excluir a Rússia de núcleo de pesquisa nuclear fortalece Putin, temem cientistas

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O ex-primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev, à direita, e a diretora do CERN, Fabiola Gianotti, em Genebra, em junho de 2019. KEYSTONE

Há mais de 50 anos, a Rússia tem contribuído com as pesquisas científicas da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (CERN), sediada em Genebra. A decisão de excluir o país do grupo de colaboradores do instituto acadêmico estabelece um precedente perigoso e fortalece a guerra de Putin contra a Ucrânia, apontam cientistas russos e europeus consultados pela SWI swissinfo.ch.

“Há muitos conflitos no mundo. Se a cooperação científica começa a ser restringida, os projetos futuros e a cooperação do CERN sofrem consequências”, diz o físico alemão Hannes Jung, que argumenta que a expulsão da Rússia da organização abre caminho para tratamentos similares a outros países.

Em dezembro de 2023, o Conselho da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (CERN), decidiu encerrar a cooperação com Rússia e Belarus Link externoem respostaLink externo à “contínua invasão militar ilegal na Ucrânia”. O Ministério das Relações Exteriores da Rússia reagiu em março, classificando a decisão como “politizada, discriminatória e inaceitável”.

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A decisão não tem precedentes. Em 1992, o CERN havia sancionado a Iugoslávia e suspendido a cooperaçãoLink externo durante a guerra da Bósnia. Mas antes de interromper a cooperação com a Rússia e a Bielorrússia, o CERN nunca havia excluído de vez países da pesquisa científica internacional. A relação acadêmica entre o CERN e a Rússia existia há Link externoquase sessenta anosLink externo.

A organização sediada na fronteira franco-suíça, perto de Genebra, assinou os primeiros acordos com laboratórios soviéticos ainda na década de 1960, no auge da Guerra Fria. Em 1991, a Federação Russa recebeu o status de observador no CERN. Desde então, a Rússia tem feito contribuições significativas, tanto financeiras quanto científicas, para os experimentos realizados no instituto de pesquisa nuclear.

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Consequências para a pesquisa

Entre as consequências dessa decisão está a perda de mais de CHF 2 milhões (US$ 2,2 milhões) por ano, que a Rússia repassou ao CERN até 2022 e parte de 2023, de acordo com dados do instituto. A contribuição da Rússia ajudou a financiar a construção do acelerador de partículas Large Hadron Collider (LHC), a maior e mais poderosa máquina do mundo para o estudo da física de partículas. A SWI swissinfo.ch estima, e o CERN confirma, que a Rússia financiou pelo menos 4,5% dos custos totais de aproximadamente CHF 1,5 bilhão dos experimentos do LHC nos últimos 30 anos.

Em seu Link externoplano de médio prazoLink externo para 2024-2028, o CERN indica que agora terá que levantar um adicional de CHF40 milhões para compensar as contribuições russas perdidas para o projeto de atualização do acelerador de partículas, o LHC de alta luminosidade. Além das perdas financeiras, haverá a perda de pessoal e de conhecimento russo nos vários experimentos que estão sendo realizados no CERN. Tudo isso terá um impacto em suas operações, diz o documento.

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Hannes Jung é um físico emérito do Desy Institute, em Hamburgo, que trabalhou com o CERN durante anos. Ele vê outros riscos, além da lacuna de financiamento do CERN, na saída da Rússia da organização. Jung acredita que agora os cientistas russos excluídos do CERN podem se ver empurrados a contribuir com as pesquisas militares russas. E o dinheiro que a Rússia teria pago ao CERN provavelmente ajudará a alimentar a guerra contra a Ucrânia.

“Em vez disso, seria importante e positivo se a Rússia continuasse gastando recursos financeiros e intelectuais para apoiar experimentos e pesquisas no CERN”, diz Jung. “Caso contrário, não estaremos ajudando a Ucrânia.”

Jung e muitos outros cientistas estão preocupados com o futuro da organização sediada em Genebra, que foi criada para reunir pessoas de diferentes países e construir pontes através da ciência.

Jung, hoje aposentado, chegou ao CERN na década de 1980 como estudante da Alemanha Ocidental. Logo que entrou no instituto, ele conta que ficou fascinado pela atmosfera de intercâmbio e diálogo entre pessoas de países divididos entre os blocos oriental e ocidental da Guerra Fria. Jung lembra que parte da tecnologia de detectores do CERN foi construída reutilizando cartuchos militares da marinha russa.

“Estávamos transformando armas em instrumentos de paz. Agora isso não seria mais possível”, diz.

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Milhares de cartuchos de depósitos militares russos foram fundidos desde 2002 para serem usados no CMS, um dos detectores do acelerador de partículas LHC do CERN. CERN

Consequências para os cientistas russos e de Belarus

A Link externoresolução do CERNLink externo entrará em vigor a partir de 27 de junho para Belarus e a partir de 30 de novembro para a Rússia. Nos próximos meses, centenas de cientistas ligados a institutos russos e bielorrussos que colaboram com o CERN vão interromper seu trabalho de pesquisa nos experimentos da organização de Genebra. De acordo com o CERN, cerca de 500 pessoas serão afetadas.

“É uma situação triste”, diz um dos cientistas afetados, Fedor Ratnikov. “É assustador tanto do lado de fora quanto do lado de dentro. Na minha opinião, não se deve romper laços com pessoas boas”, diz. Ratnikov, 61 anos, é cientista-chefe afiliado à Escola Superior de Economia (Universidade HSE) de Moscou, financiada pelo governo russo, e trabalha em experimentos no CERN há quase duas décadas. Ele não vê muitas perspectivas para seu futuro no CERN.

“Provavelmente me aposentarei se for forçado a fazer pesquisa militar na Rússia”, diz, ao mesmo tempo em que expressa esperança de que ainda seja possível encontrar uma maneira de colaborar com o CERN.

Muitos de seus colegas que trabalham em funções que ele classifica como “essenciais” para o CERN já se mudaram para institutos ocidentais para que possam dar continuidade à cooperação internacional. Mas para Ratnikov, essa não é uma opção. Tendo retornado à Rússia em 2016 após vários anos nos Estados Unidos, o cientista acredita que pode ser mais útil em seu país. “Voltei para a Rússia para avançar nos projetos de pesquisa em meu país. Além disso, minha mãe precisa de minha atenção”, explica.

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Fedor Ratnikov, à esquerda, com um aluno durante um workshop de 2017 organizado pelo CERN com a Universidade HSE em Moscou e a empresa russa de TI Yandex. HSE University

A política prevaleceu sobre a ciência

O CERN se recusou a fazer qualquer comentário sobre a decisão de encerrar a cooperação com a Rússia e Belarus. “Não podemos comentar uma decisão que pertence aos nossos estados-membros e que o CERN deve cumprir”, disse Arnaud Marsollier, porta-voz da organização de pesquisa.

O CERN está de fato vinculado às resoluções votadas por seu conselho, que é composto por dois delegados – um com função mais política e outro com função mais científica – de cada um dos 23 estados-membros. Os países que integram o conselho contribuem mais do que as nações observadoras (como a Rússia) para o orçamento do CERN. A Suíça, por exemplo, contribui com cerca de Link externoCHF40Link externo milhõesLink externo por ano, enquanto a Alemanha repassa o maior valor, contribuindo com CHF220 milhões por ano.

Embora o conselho do CERN represente os interesses políticos dos países membros, por décadas as decisões colegiadas da organização tinham sido pautadas exclusivamente pelos interesses científicos, mantendo a tensão política fora de cena, afirma Maurizio Bona, ex-funcionário do CERN. “O CERN foi criado para trabalhar com ciência e promover o diálogo intercultural e a paz, não havia pressão política”, diz ele. “Mas em 2022, a política de repente prevaleceu sobre os interesses e princípios da ciência.”

“Durante quatro décadas, o CERN foi meu lar. Eu estava convencido de que a orientação da organização nunca havia sido imposta por pressão política e nós, cientistas, nos orgulhávamos disso. Fiquei realmente desapontado”, diz ele.

O cenário dos sonhos de Putin

O físico russo Andrei Rostovtsev, membro do Science4Peace e ex-colaborador do CERN, acredita que a decisão de retirar Rússia e Belarus da colaboração científica foi puramente política. “O progresso científico foi vendido à política”, diz.

Fontes próximas ao CERN e à comunidade científica disseram à SWI swissinfo.ch que, em 15 de dezembro, as delegações da maioria dos países membros votaram seguindo instruções diretas de seus respectivos governos. Em fevereiro, o site de notícias on-line Link externoThe Geneva ObserverLink externo revelou os detalhes do voto secreto: 17 dos 23 países membros do Conselho do CERN votaram contra a continuação dos acordos de cooperação. Hungria, Israel, Itália, Sérvia, Eslováquia e Suíça se abstiveram.

Contatada pela SWI swissinfo.ch, a Secretaria de Estado da Educação, Pesquisa e Inovação da Suíça não comentou os motivos da abstenção, alegando a confidencialidade das discussões.

Rostovtsev argumenta que foi fácil excluir a Rússia do CERN, pois o país já havia contribuído para a construção do acelerador de partículas e dos detectores. Outros projetos científicos internacionais, como o Link externoIterLink externo da França, ainda dependem muito da Rússia e, portanto, não poderiam se dar ao luxo de excluí-la, diz ele.

O cientista, que dirige o dissernet.org, um site contra o plágio na ciência russa, tem certeza de que a expulsão da Rússia do CERN ajudará o presidente russo Putin. “Ele usará o fato como argumento para convencer o povo russo de que os países ao nosso redor são inimigos”, diz Rostovtsev. “Isso permite que ele não tenha que decidir cortar o financiamento da ciência em favor do financiamento da guerra”.

“Eles realizaram um sonho de Putin”, diz.

Edição: Veronica De Vore/fh
(Adaptação: Clarissa Levy)

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