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Eutanásia como “benção”

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Kranke (pseudônimo) digita caracteres em seu smartphone com um stylus entre os dedos. As redes sociais a ligam ao mundo exterior (imagem parcialmente retocada). swissinfo.ch

Uma japonesa de vinte e poucos anos sofre de uma doença neurogênica grave. Uma associação suíça irá ajudá-la a cometer o suicídio. Sem perspectivas de recuperar a saúde, ela não quer passar o resto da vida dependendo de ajuda e considera a eutanásia uma "benção".

“Eu posso finalmente pôr um fim nisso tudo”!

“Quando recebi a aprovação da Lifecircle, me senti realizada em vez de aliviada” disse “Kranke”, uma mulher de vinte e poucos anos que vive na região de Kyushu, no sudoeste do Japão. Ela recebeu em outubro passado um e-mail de aprovação para suicídio assistido da LifecircleLink externo, uma organização suíça que atua pelo direito de morrer. A eutanásia não é permitida no Japão.

Neste artigo, os nomes da doente e de sua doença permanecem anônimos, a pedido dela e de sua família. “Kranke”, que também significa “doente” em alemão, é o seu nome como usuária no Twitter.

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Devido à doença, que causa a uma perturbação dos nervos periféricos, Kranke pode mover apenas seu pulso direito, não sendo capaz de mover nem as pernas abaixo das coxas, nem os braços abaixo dos cotovelos. Ela não consegue se levantar nem andar sozinha, e vive quase confinada à cama na casa dos pais, onde sua mãe cuida dela. Kranke precisa de uma cadeira de rodas para se movimentar. O seu celular está fixo em um suporte na cama, ela posta tweets ou envia mensagens de texto com o stylus segurado entre os dedos da mão direita.

Quando obteve a autorização, ela enviou um tweet onde dizia: “Recebi a luz verde. Finalmente posso morrer”. A postagem teve muitas respostas, mas foi posteriormente removida.

Aos seis anos de idade, Kranke foi diagnosticada com uma doença neurogênica intratável. Ela caia muitas vezes quando estava no jardim-de-infância. Durante um festival esportivo da escola primária, os pais perceberam algo de errado com a sua forma de correr e a levaram para o hospital. Aos 14 anos de idade, ela já tinha tentado todas as formas de tratamento. Ela passou a maior parte dos seus vinte anos em hospitais. No entanto, os tratamentos tiveram pouco efeito e o seu médico acabou por lhe dizer que não tinha perspectivas de uma cura completa.

Ela tentou praticar diferentes hobbies, mas não conseguiu encontrar nada que pudesse fazer com a sua incapacidade física. Ela também tinha medo de se tornar um peso financeiro para seus pais, hoje idosos. Embora pudesse receber uma pensão de invalidez de 80 mil ienes (730 francos) por mês, talvez não fosse suficiente para se sustentar.

Ciente de ser dependente da ajuda de alguém para o resto da sua vida, Kranke perdeu todas as esperanças. Sentiu-se mesmo culpada por envolver pessoas em sua vida sem perspectivas.

Há cerca de cinco anos atrás, começou a desejar dar um fim na sua existência. No entanto, ela ainda precisava que alguém para se enforcar porque só ela não conseguiria atar a corda. No Japão, a lei proíbe a ajuda de terceiros para o suicídio.

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“Eu quero morrer legalmente em paz”. Ela começou a procurar informações e encontrou uma organização suíça de direito à morte, a Lifecircle.

“Eu quero morrer no Japão, onde nasci e fui criada”.

Alguns países, incluindo os Países Baixos e a Bélgica, permitem a eutanásia. A Suíça legalizou o suicídio assistido há mais de 70 anos (veja o quadro informativo no final do artigo). Ao contrário de outros países, algumas organizações suíças prestam serviços de suicídio assistido a pessoas que vivem fora do país. Muitas pessoas atravessam a fronteira para dar fim a suas vidas todos os anos.

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Kranke enviou um e-mail para a Lifecircle. Após uma série de comunicações com a secretaria da organização, no final de setembro passado Kranke enviou seu parecer médico e uma carta com um pedido de suicídio assistido.

Restrições legais dificultaram o processo. Seu médico no hospital universitário se recusou a escrever um parecer, pois poderia ser considerado como tendo “assistido seu suicídio” (seu médico se recusou comentar à swissinfo.ch). Um outro médico, que Kranke conheceu via internet, escreveu o parecer médico para ela.

“Eu quero morrer no Japão, onde nasci e fui criada. Por que tenho de viajar para tão longe para terminar minha vida pacificamente?” Os doentes terminais têm cuidados paliativos. Mas pacientes como ela, que não são doentes terminais, mas cuja qualidade de vida se deteriorou muito, não têm essa opção. Estas são as pessoas que realmente precisam do “direito de morrer”, insiste ela.

デビッド・グドール
David Goodall, cientista australiano, morreu por suicídio assistido na Suíça em 2018 (mostrado à esquerda na foto). Goodall não era doente terminal, mas disse que sua QDV tinha se deteriorado seriamente. Ele terminou sua vida com 104 anos de idade. AP Photo/Jamey Keaten

O debate sobre a eutanásia e o direito de morrer não tem avançado significativamente no Japão. Kranke acha que “aqui a morte é um grande tabu”. O médico que escreveu o seu parecer médico diz também que os médicos acreditam que o seu trabalho seja salvar a vida dos doentes, mesmo que estes queiram morrer. “Isso deve mudar”, diz ele, e por isso ajudou Kranke. Ele espera que “isto levante uma questão sobre a discussão sobre a eutanásia”.

Compreender corretamente é o que é necessário

Quem quiser serviços de assistência em matéria de suicídio na Suíça deve satisfazer determinadas condições. Pode acontecer que uma candidatura seja recusada mesmo após a chegada do requerente ao país (ver box) no final do artigo). As organizações de suicídios assistidos avaliam cada pedido com muito cuidado. É também para se protegerem de serem acusados de uma infração penal.

Kranke está preocupada com o fato de o sistema suíço ser visto de forma diferente no Japão. “Muitas pessoas acreditam que se pode morrer logo após a conclusão do pagamento. Não é o caso. Eles não sabem que as regras são muito rígidas”. Se todos achassem que o suicídio assistido é um passo tão fácil, “a discussão iria na direção errada”.

A Lifecircle presta seus serviços às pessoas:

– com uma doença terminal

– que vivem com uma deficiência ou dor insuportável

– sem perspectivas de recuperação e com uma deterioração significativa de sua QDV (por exemplo: demência, esclerose múltipla, etc.), embora a doença não seja terminal

A organização exclui menores, pessoas com falta de capacidade de julgamento e doentes com perturbações mentais que não tenham dores físicas graves.

Os candidatos devem tornar-se membros (mediante o pagamento de uma taxa) para receber os seus serviços.

As pessoas que desejem morrer devem apresentar um pedido por escrito à organização. Elas decidirão se a candidatura cumpre as diretrizes da fundação e é necessária a avaliação por um médico suíço. Uma vez aprovado, a data para o suicídio assistido é informada ao requerente. O paciente deve permanecer na Suíça por alguns dias para ter entrevistas com médicos suíços. Quando os médicos dão autorização, a organização os ajuda a pôr termo à sua vida. As despesas de viagem são da responsabilidade dos próprios doentes.

Erika Preisig, presidente da Lifecircle, disse que recebe até 300 pedidos por ano, sendo que apenas metade deles levam o processo até terminarem suas vidas. Isso se deve principalmente à capacidade limitada da organização, sendo que a Lifecircle deixou de receber novos membros desde maio passado.

Oposição da família

Kranke comunicou à sua família, em fevereiro de 2019, que planejava morrer via eutanásia. Eles se opuseram fortemente e ainda hoje se opõem. Recentemente, ela lhes disse novamente que estava viajando para a Suíça, mas a discussão terminou sem qualquer conclusão.

Seus pais não são contra a eutanásia em si. O pai dela disse à swissinfo.ch que “se estivéssemos na mesma situação que a dela, e se não conseguíssemos encontrar qualquer propósito para viver devido a uma deficiência física, também desejaríamos morrer”. No entanto, “como pais, não queremos que a nossa filha morra”. Ela é tudo para nós”.

Sua primeira consulta foi marcada para março de 2020, mas Kranke acabou tendo que adiá-la. Não só porque não conseguia obter apoio físico nas viagens, e todas as restrições devidas ao novo coronavírus, mas também porque não queria ignorar e magoar os seus entes queridos. “Ninguém deveria interferir na minha decisão, mas eu não deveria magoar ninguém, persistindo na minha opinião”. Ter autodeterminação não é o mesmo que ser egoísta”.

Kranke tem tentado encontrar um “compromisso” com sua família, mas ainda não encontrou a solução.

Quem tem o direito de morrer

Neste meio tempo, ela passou por algumas mudanças de espírito. A “luz verde” fez com que ela sentisse poder finalmente tomar o controle da sua vida. Ela pôde se sentir livre de sua doença.

マリーケ・フェルフールト
A belga Marieke Vervoort, com a medalha de prata conquistada durante os Jogos Paraolímpicos no Rio de Janeiro, Brasil, faleceu em 22 de outubro de 2019, em sua cidade natal. Copyright 2016 The Associated Press. All Rights Reserved.

Marieke Vervoort, medalha de ouro paraolímpica belga, morreu por eutanásia em outubro passado devido à sua doença. Ela explicou antes da sua morte que a eutanásia fazia com que as pessoas “vivessem o dia-a-dia e desfrutassem dos pequenos momentos”.

Kranke partilha da mesma opinião. “Toda minha vida foi dominada pela doença. Mas agora tenho uma esperança. Posso optar pela saída quando quiser”. Pode parecer contraditório, mas a eutanásia lhe dá razões para viver, porque seu sofrimento não será mais infinito, ela acrescenta. “Não olhe para o único lado negativo e assustador da eutanásia”. Quero que as pessoas saibam que a eutanásia também pode trazer a esperança a doentes como nós”.

Suicídio assistido na Suíça

A Suíça tolerou o suicídio assistido “para fins não egoístas” depois da alteração do Código PenalLink externo em 1942. Samia Hurst, professora de ética na Universidade de Genebra, explicou que existiam movimentos para descriminalizar o suicídio em vários países europeus àquela altura.

Segundo as organizações suíças de suicídio assistido, a morte é geralmente induzida através de uma dose letal de barbitúricos prescritos por um médico. A última ação, como abrir uma válvula ou beber o medicamento, deve ser levada a cabo pelo doente. O Código Penal proíbe a “eutanásia direta e ativaLink externo“.

A Suíça tem duas organizações principais de direito de morrer, a ExitLink externo e a DignitasLink externo, mas existem também outros grupos menores. A Dignitas e a Lifecircle assistem pessoas de fora da Suíça em seus esforços para legalizar o suicídio assistido em todo o mundo. A Exit presta o serviço apenas a cidadãos suíços ou residentes permanentes na Suíça.

A Dignitas publica o número de seus membros por paísLink externo de residência. Em 2018, eram 9.064 pessoas no total, incluindo 3.338 na Alemanha como o número mais elevado de membros, 712 na Suíça e 25 no Japão. Entre 1998 e 2018, 2.771 pessoas morreram devido ao suicídio assistido.

O governo federal procurou regulamentar o suicídio assistido, mas anunciouLink externo, em junho de 2011, que continuaria a trabalhar para a diminuição dos suicídios, promovendo a prevenção do suicídio e os cuidados paliativos, pois uma regulamentação legal “causaria vários inconvenientes”.

A eutanásia é aceitável? Gostaríamos de ouvir a opinião dos leitores. Clique AQUI para nos enviar seu feedback.

Adaptação: DvSperling

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