
Cortes dos EUA e crise global abalam papel de Genebra na diplomacia

Em uma amena tarde de abril, o "Hotel d'Angleterre", um hotel de cinco estrelas às margens do lago de Genebra, recuperava-se de um almoço lotado. Os habitantes da capital mundial da diplomacia, no entanto, não demonstravam sua habitual alegria de viver.
Com o comércio global em desordem, a autocracia em marcha e organizações humanitárias sofrendo com os cortes de financiamento dos EUA, autoridades de cerca de 450 organismos internacionais sediados em Genebra temem pelo futuro da cidade como um pilar da política global.
“O mundo está mudando a cada dia. As pessoas precisam se encontrar e discutir, e vemos isso em nossos hotéis e restaurantes”, disse Xavier Rey de Lasteyrie, diretor-executivo do Grupo Rey, com sede em Genebra, que possui e desenvolve hotéis e outros imóveis na Suíça e no exterior. “Genebra ainda é o lugar para troca de informações. O que nos preocupa é como o cenário será diferente daqui a seis meses.”

Embora às vezes caricaturada como um ninho sonolento de longos almoços e grandes contas a pagar, os habitantes da segunda maior cidade da Suíça dizem que ela desempenha um papel crucial na ordem global. Genebra sediou cúpulas históricas durante a Guerra Fria, uma reunião Biden-Putin em 2021 e negociações que lançaram as bases para o acordo nuclear com o Irã em 2015.
“Temos um ditado aqui que diz que, para a ONU, Nova York é o restaurante, mas Genebra é a cozinha. O verdadeiro trabalho, muitas vezes nos bastidores, é realizado aqui”, disse Sami Kanaan, vice-prefeito da cidade.
A decisão do presidente Trump de deixar a Organização Mundial da Saúde (OMS) disparou uma cacofonia de alarmes, disse Kanaan. “Já enfrentamos crises antes, mas não acho que tenhamos enfrentado esse nível de complexidade e urgência.”

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Saída dos EUA da OMS ameaça a segurança sanitária mundial
Os cortes nos EUA provocaram demissões e cortes orçamentários em órgãos como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, está considerando a fusão de importantes agências da ONU em uma reforma radical e pediu aos departamentos que tentem realocar funcionários de Genebra e Nova York para cidades mais baratas. Enquanto isso, a OMS planeja cortar funcionários e restringir seu trabalho, e os EUA disseram que o financiamento para a Organização Mundial do Comércio e outros está “sob revisão”.
Papel reduzido
Os EUA não estão sozinhos em se afastar do trabalho humanitário. Países em toda a Europa estão em uma drástica campanha de rearmamento, sendo que o Reino Unido está cortando seu orçamento de desenvolvimento para financiá-lo. Até mesmo a neutra Suíça aumentou seu teto de gastos com defesa em bilhões para os próximos anos, enquanto cortou milhões em ajuda externa.
Genebra está começando a refletir alguns padrões geopolíticos globais, com a China desempenhando um papel maior enquanto os EUA recuam. Espera-se que Pequim forneça mais de um quinto do orçamento da ONU pela primeira vez este ano.

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Genebra “internacional” em números
“A natureza odeia o vácuo, e outros poderiam agora intervir. A China é muito ativa aqui em termos de apoio vocal ao multilateralismo”, disse Vincent Subilia, da Câmara de Comércio de Genebra.
Mas, além do trabalho diplomático legítimo, Pequim também usa sua presença em Genebra para vigiar e constranger críticos, de acordo com uma investigação publicada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos esta semana. O Ministério das Relações Exteriores da China negou a reportagem, afirmando que “respeita plenamente” as leis de outros países.
Novas fontes de financiamento são extremamente necessárias, disse Maxime Provini, líder do Partido Liberal (PL). A cidade concedeu um empréstimo de dois milhões de francos (2,4 milhões de dólares) para ONGs sediadas em Genebra, mas “não podemos assumir toda a responsabilidade dessas organizações”, disse Provini.
A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) está cortando custos em 30% em sua sede em Genebra e em escritórios regionais, reduzindo pela metade o número de funcionários seniores, de acordo com um e-mail enviado a toda a equipe na semana passada, visto pelo Financial Times. A ONU, em geral, provavelmente perderá milhares de funcionários, muitos em Genebra.
“É provável que haja um impacto na cidade, incluindo seu papel global como centro humanitário”, disse Matthew Saltmarsh, chefe de notícias e mídia do ACNUR, antes do anúncio dos novos cortes na semana passada.
Genebra ainda conta com grandes bancos privados, comércio de matérias primas e setores de relojoaria de luxo impulsionando sua economia, mas a diplomacia e a ajuda humanitária são centrais para sua identidade. Muitos genebrinos estão alarmados com o fato de a Arábia Saudita sediar as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia, vendo isso como uma evidência de que estão sendo deixados para trás por uma mudança autoritária na ordem global.
Alguns já estão aceitando um papel menor no mundo que está por vir e avaliando o que devem manter.
“A questão é: ‘O que queremos manter?’ Acho que qualquer coisa relacionada ao direito humanitário e à paz”, disse Jean Keller, presidente do conselho de administração da Geneva Call, uma organização que visa proteger civis em conflitos. A Suíça, neutra, “mais do que quase qualquer outro país, pode operar em lugares terríveis em tempos de guerra”.

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Anúncio de cortes na ajuda internacional gera temores pelos mais desfavorecidos
Reflexão nacional
Os temores desencadearam uma reflexão nacional num país que se orgulha da sua independência do resto da Europa.
A extrema direita diz que a Suíça é culpada pelo status diminuído de Genebra, argumentando que as negociações com a Ucrânia estão ocorrendo em outro lugar porque o país prejudicou suas credenciais apartidárias ao adotar sanções da UE contra a Rússia.
“A principal razão pela qual Genebra está perdendo o glamour como um espaço internacional não é o fato de os EUA estarem retirando a ajuda. A principal razão pela qual seu futuro se tornou mais difícil é porque a Suíça optou por perder sua neutralidade”, disse Vincent Schaller, membro do Partido do Povo Suíço (SVP) de extrema direita no parlamento municipal de Genebra.
François Savary, fundador de uma empresa local de gestão de patrimônio, pediu união para salvar a cidade. “É uma causa nacional e todos precisam se envolver para resolvê-la”, disse ele.
O governo tanto em nível federal quanto cantonal aprovou pacotes de empréstimos e subsídios para ajudar o trabalho e as organizações internacionais de Genebra.
Mas os políticos sabem que o apoio, que totaliza menos de 20 milhões de dólares (16,5 milhões de francos), não chegará perto dos valores necessários para que Genebra mantenha seu status atual. Do nível cantonal ao federal, as autoridades descreveram as contribuições como “simbólicas” e um “sinal”, embora admitissem que não chegavam nem perto do montante do financiamento americano que está desaparecendo.
Entre elas está Yves Herren, presidente do Partido Verde Liberal (PVL), que ajudou a aprovar o empréstimo emergencial da cidade para organizações sem fins lucrativos. Sem mais recursos, “temo que em algum momento Genebra comece a perder sua posição” como “anfitriã de eventos internacionais”, disse ele.
Copyright The Financial Times Limited 2025
Adaptação: DvSperling

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Por que Genebra internacional é tão importante à Suíça?

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