"Hoje, muitas pessoas me dizem que eu as inspiro". Christina
Noura Gauper
O livro TRANS* coloca em destaque pessoas que lutam contra preconceitos e costumes para viver em paz com seus corpos. São percursos para lembrar como transgêneros ainda enfrentam discriminação e perseguição em todo o mundo.
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Como correspondente no Palácio Federal para a SWI swissinfo.ch, escrevo sobre política para os suíços do estrangeiro.
Depois de estudar comunicação social na Universidade de Neuchâtel, minha carreira inicialmente me levou a várias mídias regionais, trabalhando nas redações do Journal du Jura, Canal 3 e Radio Jura Bernois. Desde 2015, trabalho na SWI swissinfo.ch, onde continuo a exercer minha profissão com paixão.
Lynn Bertholet, presidente da associação ÉPICÈNE.
Magali Girardin
“A beleza está nos olhos de quem a vê”. Os 46 perfis incluídos no álbum fotográfico TRANS* dão sentido ao provérbio. A obra acaba de ser publicada pela ÉpicèneLink externo, uma associação suíça que milita em prol dos transexuais no país e conta a história de vida, muitas vezes sofrida, de homens e mulheres que nasceram em corpos estranhos e que percorreram um longo caminho de transição de um gênero para outro.
Dia da Lembrança Trans*
Na semana passada, em 20 de novembro, comemorou-se o Dia da Memória TransLink externo*. A data foi lançada para lembrar das vítimas da transfobia devido em todo o mundo e foi comemorada pela primeira vez em 1998, após o assassinato de Rita Hester, uma mulher trans em Massachusetts, EUA.
“Você só pode entender esta sensação de disforia (n.r.: mudança repentina e transitória do estado de ânimo) quando a sente na pele. É uma sensação mais profunda do que ter olhos azuis e querer que eles fossem castanhos”, afirma Ryan no livro.
O objetivo da Épicène é sensibilizar o público pela realidade que afeta uma em 200 pessoasLink externo. As comemorações do 20 de novembro lembram que a transfobia cobra um preço elevado em vidas.
“Por ter passado por tudo isso, tenho uma sensibilidade que outros homens não têm”. Ryan
Noura Gauper
Segundo o estudo Monitoramento de Mortes de TransgênerosLink externo, 350 pessoas trans* no mundo inteiro foram assassinadas em 2019. Brasil, o México e os Estados Unidos estão entre os países mais perigosos para esse grupo. Embora os números sejam apenas a ponta do iceberg, há um aumento constantemente de vítimas desde 2008.
A dor
“Cheguei a um ponto em que não havia outra opção. Ou começava a minha transição, ou ia dar cabo da vida. Não me sentia bem”, conta Ryan. Uma história que destaca o sofrimento que acompanha a transidentidade (n.r.: do francês transidentite: termo genérico para designação de pessoas gênero-divergentes), mas também a coragem daqueles que conseguem superar as barreiras sociais, aplicadas aos que não se encaixam na normas, para simplesmente serem eles mesmos.
“O problema é que não posso esconder as mudanças. Elas são visíveis. Não é possível ser mais honesto do que quando você atravessa uma transição”. Lea
Noura Gauper
“O sofrimento vem, em grande parte, da forma como a sociedade vê as diferenças”, avalia Lynn Bertholet, presidente da associação. Embora seja difícil ter uma relação pacífica com a imagem espelhada, essa distância é ainda maior para os transgêneros. “Quando posso dizer que minha transição terminou? Nunca, pois sempre há espaço para melhoria”, diz Aiden, um dos protagonistas do livro. “Você tem que saber como parar e aceitar-se como você é”, replica Christina.
Os 46 entrevistados descrevem a discriminação e estigmatização vividas no seu cotidiano. “A sociedade se tornou mais tolerante ao longo dos últimos anos, mas ainda falta aceitação”, diz Bertholet. As pessoas transgêneras têm dificuldade de se integrar no mercado de trabalho. “Muitos membros da associação perderam seus empregos durante sua transição”, lamenta a presidente da Épicène, completando. “O sistema de saúde é deficitário em lidar com as transidentidades. Nenhum ginecologista sabe como examinar uma mulher trans.”
“Acho interessante ver que no meu trabalho (controlador ferroviário) os passageiros me levam mais a sério como homem do que como mulher”. Lars
Noura Gauper
A liberação
O projeto é um trabalho conjunto do autor Lynn Bertholet e da fotógrafa Noura Gauper. “Fiz uma sessão fotográfica com ela. Durante esse trabalho percebia que me considerava como uma mulher completa. Seus olhos e suas fotos me ajudaram a me sentir confiante. Queria oferecer a possibilidade a outras pessoas transgêneros de viver essa experiência”, diz. Seu objetivo era ressaltar a feminilidade ou masculinidade das pessoas retratadas, em um ambiente personalizado.
“Antes eu me odiava. Era como se a testosterona me fizesse mal. Agora estou mais calma”, conta Lea, lembrando que viveu como um “renascimento, alívio e uma segunda vida”.
O leitor é levado a viver o sofrimento dos protagonistas, descobrindo ao mesmo tempo a sensação de liberdade que a transição pode permitir. “Pela primeira vez vi você feliz”, recorda a companheira de Lars, que o apoiou durante sua transição.
“Até o ensino médio já sabia quem eu era, mas inconscientemente”. Eu não pensava nisso e não criava problemas. Fui à escola usando o terno e a gravata do meu avô ou quem quer que seja”. Aiden
Noura Gauper
Os sentimentos
As pessoas próximas também vivem uma transição. Se ela é convidada a visitar um casal, pode ser que experimenta um “estranhamento” da sua parte. Porém Lars e Irene foram uma exceção: o casal passou de uma relação lésbica para uma relação heterossexual. “Para mim era importante que Irene percorresse comigo esse caminho”, diz Lars.
“Poucas pessoas trans* tem relações com cisgêneros (n.r.: pessoas, cuja identidade de gênero corresponde ao sexo atribuído ao nascimento)”, diz Bertholet. Para ela, é um sinal de que os preconceitos perduram e que a sociedade ainda não aceita plenamente a transsidentidade. “O mais difícil é ver o olhar de um homem que se apaixonou por mim mudar quando descobre que sou trans. É atroz”, lamenta Christina.
“Nos acampamentos da escola eles me colocavam em uma sala como se tivesse uma doença contagiosa. Também me disseram que não deveria passar tanto tempo com as meninas… Foi um momento difícil”. Antônia
Noura Gauper
Lynn Bertholet sonha com um mundo no qual os trans* serão vistas como pessoas comuns. E afirma que continuará a lutar por esse dia. Seu livro termina com a citação do autor mexicano Don Miguel Ruiz: “A verdadeira liberdade é ser livre para ser quem você realmente é”.
*O asterisco é adicionado para incluir todas as formas de transidentidade.
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