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Como a arte bruta cubana desafiou convenções e impactou o mundo

Pessoa andando na rua
Artista de rua: O artista cubano Daldo Marte em traje de super-herói, Havana 2018. Rosmy Porter / SASU LEARTS, Paris

Quarenta anos após exibir artistas populares de Cuba, o Museu Art Brut, em Lausanne, retoma a mostra com obras inéditas e nomes apagados pelo circuito oficial. Sem apoio do governo cubano, a nova geração resiste à margem do sistema.

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Em 1983, a Coleção de Arte BrutaLink externo, um pequeno, mas importante, museu de Lausanne, fez sua própria contribuição duradoura para a história da arte cubana. Intitulada Art Inventif à Cuba (Arte Inventiva em Cuba), a exposição apresentou na época obras de arte de cerca de 30 artistas de Villa Clara, uma cidade interiorana, situada a 300 km de Havana. As obras foram reunidas por Samuel Feijóo (1914-1992), provavelmente uma das personalidades mais notáveis do cenário cubano das artes no século 20 e praticamente esquecido hoje em dia.

Foto em preto e branco de um idoso
Samuel Feijóo (por volta da década de 1970) Archivio Rivista Signos

Escritor, poeta, editor, etnólogo, pintor, desenhista autodidata e, nos últimos anos, conselheiro do Ministério cubano da Cultura, Feijóo deixou Havana e o circuito artístico institucional antes mesmo da Revolução Cubana de 1958, a fim de buscar a arte e os artistas entre as pessoas comuns.

Sua missão era encontrar a criatividade que “deveria emanar em sua forma original, repleta de sabedoria, longe de imitações e convenções restritivas”, como escreveu ao artista francês Jean Dubuffet (1901-1985), o principal nome na gênese da Arte Bruta.

Feijóo e Dubuffet mantiveram uma amizade alimentada durante décadas por correspondências e uma cumplicidade intelectual que culminou na mostra de 1983 – e que ressoa com força na recente exposição Art Brut Cuba, inaugurada em dezembro de 2024, com curadoria de Sarah Lombardi, diretora do museu dedicado à Arte Bruta em Lausanne. A mostra vem atraindo elogios consideráveis da crítica e já recebeu mais de 12.500 visitantes.

Quando o pintor francês Jean Dubuffet lançou as bases do que viria a ser chamado de Art Brut [Outsider Art em inglês ou Arte Bruta em português], seu ponto de partida era o de que pessoas simples, pacientes psiquiátricos, presidiários ou qualquer pessoa, cuja arte fosse criada fora do mundo das galerias, dos museus ou da esfera acadêmica, seria capaz de produzir uma forma de poesia mais genuína do que a arte institucional.

Do fim da década de 1940 até sua morte em 1985, Dubuffet colecionou obras de arte de pintores e escultores marginais de todo o mundo. Sem conseguir encontrar um local adequado para armazená-las na França, ele doou a coleção para a cidade de Lausanne em 1971, que, por sua vez, criou um museu especialmente para ela: a Coleção de Arte Bruta.

Foto em preto e branco de um artista no seu ateliê
Jean Dubuffet mostra algumas de suas obras em seu estúdio em Paris, 1976. AFP

Onde todo artista é uma ilha

Não é apenas o fato de viver em uma ilha que faz com que os artistas cubanos estejam entre os mais isolados do mundo. Desde 1958, o país vem sendo vítima do mais longo embargo comercial da história moderna, imposto pelos Estados Unidos e ainda em vigor.

Os impactos econômicos e sociais do embargo ficam evidentes em todos os aspectos da vida cotidiana: para os artistas, essas dificuldades se somam a um ambiente rigidamente controlado pelo Estado, o que, de acordo com Lombardi, “torna mais difícil em Cuba do que em qualquer outro lugar se desprender das normas coletivas e afirmar a própria individualidade artística”.

No entanto, como aponta Lombardi em sua introdução ao catálogo da exposição, todos esses fatores “tornam essa ilha um ambiente fértil para a produção de criações não afetadas por influências externas”, ou seja, mais alinahdas aos princípios básicos da Arte Bruta.

Para a releitura da exposição, Lombardi trouxe a Lausanne obras criadas no intervalo de 41 anos pelos artistas da mostra de 1983, ao lado de trabalhos de uma geração mais jovem, apoiada pelo Riera StudioLink externo, um raro centro de arte e galeria independente em Havana, que leva o nome de seu fundador, o artista e produtor cultural Samuel Riera Mendez.

Obra de arte
Sem título, de Francisca “Panchita” Alemán, 1964. Collection de l’Art Brut, Lausanne

Para a mostra Art Brut Cuba, Sarah Lombardi encarregou os fotógrafos e artistas visuais Lorenzo Valmontone e Thomas Szczepanski de documentar vida e obra de quatro artistas cubanos: Miguel Ramón Morales Díaz, Josvedy Jove Junco, Federico García Cortízas e Damián Valdés Dilla.

As fotos e o vídeo intitulado Almas Vagabundas constituem uma mostra paralela, que conduzem o visitante a uma imersão na realidade cotidiana desses artistas e de seu entorno.

Em entrevista à SWI swissinfo.ch, Lombardi destaca que “o trabalho e a vida de todo artista se entrelaçam, mas, na Arte Bruta em particular, não há separação entre o lugar onde as pessoas vivem e o lugar onde criam. A noção de artista não existe para eles. Suas criações acontecem no dia a dia”, explica.

Foto em preto e branco de um artista
Federico García Cortízas, um dos artistas retratados em “Vagabond Souls”, fotografado em sua casa em Havana em 2023. L. Valmontone

Uma história de dois Samuéis

Comparando as duas exposições, as diferenças entre elas parecem mais notáveis que suas semelhanças. O Riera Studio, em seus princípios, é um herdeiro direto dos esforços de Samuel Feijóo, sendo fortemente influenciado pelo credo de Dubuffet, com foco na arte feita por grupos sociais vulneráveis ou indivíduos que atuam fora das instituições oficiais de arte ou das plataformas artísticas dominantes. No entanto, por mais próximas que sejam na teoria, as realidades materiais da arte de Feijóo e de Riera são radicalmente diferentes.

Os artistas de Feijóo pertenciam a um grupo relativamente próximo, embora marginal, unido em torno da publicação Islas, que durou de 1959 a 1968, quando o grupo passou a se chamar Signos (1969-1985), mantendo sua própria publicação também denominada Signos. De acordo com os “dogmas” de Dubuffet, a Arte Bruta é, porém, essencialmente individual, refletindo a visão particular do artista em seu isolamento social – portanto, grupos de arte, movimentos ou coletivos estão fora de questão.

“Esses artistas do grupo Signos eram bem conhecidos em Cuba”, relata Lombardi. “E esse não é o caso dos artistas contemporâneos da Arte Bruta que apresento agora e que estão ligados ao Riera Studio. Estes últimos não têm absolutamente nenhuma visibilidade em Cuba”, acrescenta a curadora.

Duas pessoas falando
Samuel Riera (à esquerda) com a diretora da Collection de l’Art Brut Sarah Lombardi durante sua viagem de reconhecimento ao Riera Studio em Havana, outubro de 2017. Luc Chessex

A mostra de 1983 foi apoiada pelo Estado cubano, enquanto a atual não conta com qualquer apoio oficial. Isso reflete as diferentes posições de Feijóo e Riera em relação ao governo cubano.

Samuel Feijóo contou com a aprovação das autoridades do país, que não controlavam suas publicações. Ele trabalhava em uma universidade estadual em Villa Clara e estreitou laços com o Ministério da Cultura na época. “Como era financiado pelo Estado, ele podia apresentar seus artistas em espaços oficiais e até mesmo em galerias e projetos de exposição no exterior”, diz Lombardi. O Riera Studio, por sua vez, é, na melhor das hipóteses, tolerado pelo governo. Ele não é apoiado por nenhum fundo oficial e financia suas atividades por meio de modestas vendas a colecionadores e turistas estrangeiros.

Seguindo o exemplo de Dubuffet, Feijóo doou sua coleção ao Estado cubano em 1982. Quando surgiu a ideia de fazer uma exposição na Suíça, as obras já estavam nas mãos do governo, portanto, o Estado tinha que estar envolvido para que a mostra acontecesse. As autoridades cubanas exigiram um controle sobre a escolha das obras, embora isso não tenha sido um obstáculo graças aos bons contatos de Feijóo. O embaixador cubano chegou a ir até o aeroporto para ajudar quando as obras de arte chegaram à Suíça.

>> Uma longa paisagem de Damián Valdés Dilla, em exibição na Art Brut Cuba:

Marginal, não dissidente

Lombardi observa que, entre os artistas contemporâneos apresentados, o único que tem um discurso crítico e político é Boris Adolfo Martin Santamaría. “E mesmo assim não podemos chamá-lo de artista dissidente”, diz a curadora. “Embora mantenha uma postura crítica frente à política cubana de Fidel, de Raul e assim por diante, ele é um outsider, um sem-teto. E começou a criar quando descobriu que tinha Aids”, conta.

Ilustrações
Boris Adolfo Martin Santamaría, “Que Mierda” (Que merda, 2015). SWI

“Os artistas dissidentes têm uma voz crítica que vai além deles próprios”, continua Lombardi. “Existe a possibilidade de que sejam ouvidos pelo público e, portanto, se tornem uma ameaça. Eles muitas vezes deixam o país, porque correm o risco de serem presos ou intimidados. Boris, no caso, é um outsider completo, de forma que ninguém ouve o que ele tem a dizer”, completa a curadora.

Ainda assim, alguns desses artistas apolíticos podem se ver envolvidos em círculos dissidentes, como aconteceu em 2022 na seção cubana da documenta 15 de Kassel, na Alemanha. Apresentada como uma coletiva organizada pela artista exilada Tania Bruguera, na qual foram omitidos os nomes dos artistas, chegou ao público internacional uma grande mostra de obras de Lázaro Antonio Martínez Duran, entre outras de artistas do Riera Studio. A prática de Duran é uma forma escolhida por ele para se comunicar com o mundo exterior e superar sua deficiência intelectual.

Maravilhas e infortúnios do mercado

Duran é hoje, portanto, um caso raro de artista cubano da Arte Bruta representado por uma galeria internacional – uma conquista, considerando o pequeno espaço para essa vertente no mercado bilionário global de arte.

Works by Lázaro Antonio Martínez Durán
Lázaro Antonio Martínez Durán, do coletivo INSTAR, uitiliza caixas de alimentos, doces ou brinquedos para seus desenhos que aludem a aparelhos de televisão. No fundo: uma das dezenas de máscaras, expostas ao longo da sala, de artistas e intelectuais cubanos censurados pelo governo. Eduardo Simantob/SWI

Lombardi relata que o mercado da Arte Bruta se encontra em constante expansão, com um circuito crescente de colecionadores, embora isso se dê de forma lenta e modesta. Alguns artistas da coleção original de Dubuffet chegaram a se tornar blue chips, como o suíço Adolf Wölfli (1864-1930), cujas obras de grande formato podem chegar a 300 mil francos suíços. Os preços das obras de arte dos cubanos contemporâneos do Riera Studio, contudo, variam entre 1 mil e 5 mil francos suíços, raramente superando esse valor.

Enquanto isso, a coleção de Feijóo simplesmente desapareceu, comenta Lombardi. “Ela foi mal preservada ou armazenada em locais inadequados. E não apenas a coleção, mas também os arquivos de Feijóo desapareceram”, relata a curadora.

O mesmo ocorreu com o próprio Feijóo: “Para a geração mais jovem de Cuba, Samuel Feijóo, apesar de sua fama passada como referência em Cuba e na América Latina, é um nome praticamente esquecido”, conclui Lombardi.

Ilustração
Desenho a guache de Samuel Feijóo, feito em Berna por ocasião da exposição de 1983. Feijóo o doou ao Museu Art Brut antes de retornar a Cuba. Collection de l’Art Brut, Lausanne

Edição: Catherine Hickley/ts

Adaptação: Soraia Vilela

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