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Daros Latin America reemerge com arte utópica contra a opressão

Artwork by Luis González Palma
Luis González Palma (Guatemala, 1957) iniciou sua carreira tentando entender a diversidade étnica e cultural latente em seu país, utilizando documentos produzidos pelo poder colonial e pela memória coletiva, culminando na série "Lotería" (foto: "Lotería I", 1989) Peter Schälchli, Zurich

Tools for Utopia (Ferramentas para Utopia), uma nova exposição que abriu esta semana no Museu de Arte de Berna, traz uma respeitável seleção de uma das maiores coleções privadas de arte latino-americana com obras marcadas pelo seu engajamento político.

Por alguns anos no início deste século, a Daros prometeu uma era de ouro para a arte latino-americana no circuito internacional, com um investimento multimilionário não apenas na coleção, mas também na renovação de um enorme e dilapidado edifício neoclássico no Rio de Janeiro para hospedá-la – paralelamente aos generosos espaços da fundação em Zurique. Mas em 2015, o sonho acabou: a iniciadora deste imponente projeto, Ruth Schmidheiny, decidiu abruptamente cancelar tudo. 

Foi um choque, inesperado mesmo para as pessoas que lideravam o projeto, como o diretor artístico Hans-Michael Herzog. Desde então, a coleção latino-americana só pode ser vista em peças dispersas, emprestadas a diversas instituições ao redor do mundo para exposições variadas. 

Língua de mulher lambe teclado de máquina de escrever
“Verbivocovisual” é um termo cunhado pelo escritor irlandês James Joyce que encorajou a brasileira Lenora de Barros a explorar os sentidos através da linguagem em todos os seus aspectos: verbal, visual e vocal. Detalhe de “Poema”, 1979/2012 (seis fotografias em preto e branco). Fabiana de Barros 

Agora o Kunstmuseum BernLink externo apresenta a primeira grande exposição da coleção desde o fim do grande projeto. Como abordar este rico conjunto de obras, porém, era um desafio do tamanho do subcontinente. “É muito difícil contar a história das artes na América Latina, é um continente tão diverso e grande”, disse a curadora, Marta Dziewanska, à swissinfo.ch.

“Estou propondo uma leitura, mas é apenas uma das muitas leituras possíveis”. Não estou interessada apenas nas qualidades estéticas – todas as obras são obviamente lindas – mas na forma como são moldadas politicamente. Em outras palavras, o que dizem estas obras de arte sobre a realidade que envolve os artistas e como eles navegaram aqueles tempos de opressão e censura”.

Kinetic artwork by Carlos Cruz-Diez
O venezuelano Carlos Cruz-Diez (1923-2019) exilou-se em Paris em 1960, onde permaneceu até o final de sua vida. “Fisicromía 13” foi feita na época dessa mudança. A curadora Marta Dziewanska observa que “este é um trabalho cinético, você tem que mover seu corpo para vê-lo. Isso significa que a obra não está acabada, ela precisa da presença e do movimento do espectador para ativá-la. Estes artistas sonhavam com outra política, outra sociedade, outro mundo mais participativo. A necessidade de mover dá à obra de arte perspectivas diferentes, de modo que não existe uma perspectiva correta para vê-la ou apreciá-la”. 2020, ProLitteris, Zurich 

O ponto de partida é uma seleção dos anos 1950-1970, as “décadas de chumbo” quando ditaduras militares varreram praticamente todo o subcontinente, desembocando em outro conjunto, mas de obras contemporâneas. A própria Dziewanska nasceu e cresceu na então Polônia comunista, e ela vê um claro paralelo entre as atitudes dos artistas daqueles tempos – o não-conformismo e o engajamento, correndo sérios riscos por sua arte – tanto no Leste Europeu como na América Latina. 

Mas soa quase como uma provocação falar de utopia exatamente num momento em que muitos países latino-americanos, e o Brasil em particular, estão vivendo uma verdadeira distopia, não é mesmo? 

“Entre os anos 50 e 70 o tema da utopia esteve muito presente entre os artistas”, diz Dziewanska. “Mas quando vemos as obras contemporâneas, feitas desde o final dos anos 90 até hoje, percebemos o quanto essas utopias se tornaram mais modestas. Elas agora são mais locais, e muito mais próximas dos movimentos ‘queer’, feministas e indígenas, por exemplo”, acrescenta ela. 

Daros Collection & Latin America

Em 1997, o industrial suíço Stephan Schmidheiny (de fama controversa devido ao famoso caso do amianto, no qual sua firma Eternit estava profundamente envolvida) estabeleceu a Coleção Daros com renomadas obras de arte moderna e contemporânea de alto valor de mercado – Cy Twombly, Basquiat, Pollock, Warhol etc. – administrados por uma gestão totalmente profissional.

A Daros Latin AmericaLink externo foi criada quando a empresa familiar expandiu sua presença no subcontinente, mas separadamente da coleção principal, e dirigida pela primeira esposa de Stephan, Ruth Schmidheiny. Ela conta com cerca de 1200 obras de arte, também renomadas e de valor, dos grandes nomes da arte latino-americana dos últimos 70 anos – Lygia Clark, Hélio Oiticica, Miguel Angel Rojas, Doris Salcedo, Cildo Meirelles, Antonio Dias e muitos outros.

A Casa Daros, no Rio de Janeiro, foi comprada por CHF 5 milhões, e Ruth Schmidheiny gastou outros CHF 25 milhões em sua renovação. Ela funcionou por apenas dois anos (2013-15) antes de Ruth decidir repentinamente puxar o freio.

A súbita decisão desencadeou todo tipo de especulação que não foi saciada com a morte de Ruth Schmiedheiny no ano passado.

swissinfo.ch falou com alguns ex-funcionários de Daros e até agora, a explicação mais plausível é a oficial. Diante do aumento dos custos de seguro e manutenção, mais as incertezas relacionadas à segurança da coleção no Rio, Ruth Schmidheiny simplesmente decidiu que não queria mais continuar. A Casa Daros agora é uma grande escola privada. 

Manifestos

Entre as ferramentas utópicas de resistência, os manifestos artísticos costumavam desempenhar um papel provocador nos debates culturais do pós-guerra e ganharam um espaço de destaque na exposição, bem como no catálogo cuidadosamente elaborado.  

“Os artistas na época também trabalhavam em grupos, tentando descobrir idéias em conjunto”, explica Dziewanska. “Não se dava muita bola para autoria ou competição dentro do mundo das artes, o que lhes interessava era trazer à tona novas idéias, novos vocabulários. Eles tinham que ir além do vocabulário e do alfabeto para criar um novo mundo, por isso estes manifestos são tão importantes”.

Manifesto Ruptura
Contra a ignorância: Lothar Charoux, Waldermar Cordeiro, Geraldo de Barros, Kazmer Féjer, Leopoldo Haar, Luiz Sacilotto, e Anatol Władysław, autores do Manifesto Ruptura, 1952. Família Cordeiro 

Três manifestos argentinos dos anos 40 prefiguram seus pares brasileiros dos anos 50, um grupo de poetas e artistas gráficos que lançou o movimento Concreto – com uma atenção especial ao uso de tipografia e elementos gráficos junto à palavra, e que teriam uma influência considerável não restrita ao domínio das artes, mas em muitas mídias diferentes, incluindo a publicidade.

Photo by Paz Errázuriz
Durante o regime de Pinochet no Chile, Paz Errázuriz (nascida em 1944) documentou comunidades marginalizadas como profissionais do sexo, pacientes psiquiátricos e artistas de circo – ‘outsiders’ e rebeldes em espaços sob brutal repressão patriarcal e controle total do aparato de segurança do estado. © 2020, ProLitteris, Zurich

O poder do engajamento

Mas voltando ao motivo central da exposição, é claro que nenhuma dessas utopias jamais aconteceu, nem de perto, mas mesmo assim os artistas continuaram a produzir suas ferramentas porque não conseguiam parar de se engajar e sonhar com outras realidades possíveis – os tempos então exigiam uma postura crítica e política das artes, caso contrário dificilmente seria considerada por seus pares ou pelo público.

Marta Dziewanska não é nada ingênua ao considerar a importância destas obras de arte e seus contextos muito além de seus tempos. “Precisamos deste poder de engajamento hoje, e não apenas na América Latina, mas em todos os lugares, e especialmente aqui na Europa e nos EUA, porque estamos no meio de uma crise global com efeitos locais. Nestes momentos, as idéias assumem uma grande importância e mesmo que a arte não seja a política e não tenha impacto imediato na realidade, ela ainda pode mudar as perspectivas e proporcionar outra visão para o futuro e para as relações entre as pessoas”.

Com uma pandemia se espalhando por todo o planeta e uma crise climática se aproximando, ondas migratórias de refugiados em quase todos os continentes e conflitos regionais explodindo pelas mais variadas razões – terra, água, fé, preconceito – é bastante difícil hoje criar novas grandes idéias de modernidade ou um roteiro para o paraíso. “É por isso que decidi optar por um título que é paradoxal em sua própria essência”, diz Dziewanska. “A utopia é extremamente abstrata, mas as ferramentas são extremamente concretas e precisas”.

Tools for UtopiaLink externo está em cartaz no Kunstmuseum Bern até 21 de março, desde que as restrições da pandemia o permitam.


Mira Schendel
Marta Dziewanska: “Aqueles artistas tiveram que ir além do vocabulário e do alfabeto para criar um novo mundo”. Foto: “Objeto gráfico” (1967/68), de Mira Schendel (Brasil). The estate of Mira Schendel


 

swissinfo.ch/ets

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