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Para o artista suíço Uriel Orlow, a história não é sobre o passado, mas sobre fantasmas vivos

Portrait of Artist Uriel Orlow
Uriel Orlow, fotografado do lado de fora do Kunstmuseum Liechtenstein, em Vaduz. Como acontece com os vencedores do Prix Meret Oppenheim todos os anos, Orlow também ficou totalmente surpreso com o prêmio. Thomas Kern/swissinfo.ch

Uriel Orlow foi um dos vencedores deste ano do Link externoPrix Meret OppenheimLink externo, o prêmio de arte mais prestigiado da Suíça. Ter nascido no país alpino é mais um elemento de identidade dentre os muitos que o artista carrega em uma vida fascinantemente complexa.

Fluente em dez idiomas e com três “casas” – em Zurique, Londres e Lisboa–, o artista suíço Uriel Orlow raramente passa mais de uma semana em um mesmo lugar. Essa transitoriedade lhe permitiu construir um repertório de trabalho com pesquisas nos cinco continentes.

O autor do artigo conversou com Orlow no início de maio, durante uma de suas estadias mais longas na Suíça – duas semanas, ao todo – primeiro no Liechtenstein, onde o artista estava montando seu trabalho para a exposição coletiva Parliament of Plants II, e depois uma segunda vez em um café perto da Escola de Artes de Zurique (ZHdK), onde também leciona.

“A geração dos meus avós veio para cá vinda de vários países: Ucrânia, Hungria, Polônia e Alsácia”, conta. “Eles vieram entre as guerras (1918-1939), em momentos diferentes, mas uma parte da minha família ficou muito tempo apátrida. Meu pai nasceu na Suíça em 1944, mas era apátrida (ou seja, nunca teve a nacionalidade suíça, nem a de seus pais, que vieram da Ucrânia e da Polônia). Essa é uma típica história familiar judaica”.

O enigma judaico

É difícil para Orlow se classificar como um artista suíço. “Nasci e cresci aqui, mas tenho origem migratória e minha primeira língua de escrita e leitura foi o hebraico, não o alemão. Agora até falo árabe, que aprendi depois no Egito.”

Na época em que esteve no Egito, em 2013, estava trabalhando em um projeto artístico pessoal entre Jerusalém e Ramallah. “Um projeto muito difícil, ligado à história e identidade da minha família, e como isso se cruza com a história da Palestina. Estava lidando com uma questão muito traumática de ambos os lados, o Holocausto e a Nakba”, diz ele, referindo-se ao deslocamento em massa e desapropriação dos palestinos durante a guerra árabe-israelense de 1948.

Uriel Orlow s Unmade Film - The Reconaissance 2012-13
O resultado do projeto de Orlow desenvolvido em Jerusalém e Ramallah: “Unmade Film- The Reconnaissance, 2012-2013”, durante uma exposição no Castello di Rivoli, Itália (2015). A imagem na parede é de um assentamento israelense ilegal na Cisjordânia. Uriel Orlow/Renato Ghiazza

Orlow encontrou enorme simpatia e hospitalidade entre os palestinos. A obra acabou sendo exposta no Centre Culturel Suisse de Paris e também em Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade, ocupada por Israel em 1967). Mas nunca ultrapassou a fronteira de fato para Israel.

“Não exponho em Israel”, explica. “Já fui convidado para expor lá em diversas instituições, mas prefiro não fazer. Como artista judeu da diáspora, acho importante me posicionar”.

Assombração transgeracional

Quando Orlow nasceu em Zurique, em 1973, sua família já estava bem estabelecida na Suíça, mas não sem antes ter superado as dificuldades para conseguir a cidadania suíça e o preconceito por ter parentes comunistas – uma marca negativa para as autoridades suíças durante a Guerra Fria.

Como aconteceu com muitas famílias sobreviventes do Holocausto e dos anos de guerra, os traumas que acompanharam os familiares de Orlow não eram muito discutidos nas refeições familiares. “Esses foram definitivamente alguns dos gatilhos da minha prática artística, esses fantasmas”, diz.

Orlow fala sobre um conceito elaborado pelos psicólogos franceses Maria Torok e Nicolas Abraham, chamado de “assombrações transgeracionais”, que ocorre quando uma pessoa é assombrada por eventos que nunca experimentou. “Não é como um trauma”, explica. “Como artista, meu primeiro impulso foi enfrentar essa assombração transgeracional e decifrá-la.”

Uriel Orlow s 1942 Poznan
A busca histórica levou ao projeto Deposits (2002), que incluiu um trabalho concluído quando ele ainda era estudante, “1942 Poznan”. Uriel Orlow

“Fui à Hungria e à Polônia descobrir o passado familiar no início dos anos 90, logo depois da queda do Muro de Berlim”, conta. “Como muitos estudantes de arte, comecei pesquisando minha própria identidade tentando entender quem sou, de onde vim como artista, como pessoa.”

SWI: E o que você encontrou quando fez essa viagem?

Orlow: Não encontrei nada. Então essa foi minha primeira crise como artista. Eu lido com imagens, mas não havia nada para mostrar lá.

Por alguma coincidência, porém, fui ao vilarejo húngaro de onde minha família havia saído e me levaram para conhecer o cantor daquela comunidade, que era um dos pouquíssimos sobreviventes que restou. Ele me levou à antiga sinagoga, começou a cantar uma oração matinal e eu gravei no meu telefone.

Então me deparei com esta piscina em Poznan, na Polônia, que foi construída pelos nazistas em 1942 onde antes era uma sinagoga. Filmei girando 360 graus e gravando todo o espaço, menos a lacuna onde eu estava, que se tornou um ponto cego para o espectador.

A obra resultante, 1942 Poznan, combina as imagens captadas na piscina com o áudio gravado na Hungria.

Uriel Orlow s History is the Future - The Future is History, 2012-ongoing
“A História é o Futuro – O Futuro é a História”, de Uriel Orlow: o projeto, iniciado em 2012, ainda está em andamento. Uriel Orlow

Desafiando o ‘museu universal’

SWI: Como esse trabalho impactou seus projetos seguintes?

Orlow: Meus métodos eram bastante intuitivos, mas esse trabalho estabeleceu diretrizes importantes. Por um lado, assumi a minha rejeição a materiais históricos. Não expus nenhuma fotografia. O vídeo reflete sobre a violência que ainda está inserida naquele espaço. Tem como propósito nos tornar responsáveis ou prestar contas de alguma forma a este presente. A história espacial está inscrita na arquitetura.

SWI: Então, quando você fala e trata da história, não se limita ao passado?

Orlow: Não estou interessado no passado. Se falamos de história, é sobre o presente. É sobre como o passado vive no presente. É sobre fantasmas que ainda estão aqui, que perduram, que exigem algo de nós, ou sobre assuntos inacabados do passado. É por isso que muitas vezes optei por não usar nenhum material de arquivos históricos.


Alguns anos depois, em 2007, Orlow refinaria seus métodos de pesquisa sobre um tema pioneiro do qual até então ninguém falava, os Bronzes de Benin: um conjunto de esculturas, incluindo placas fundidas decoradas, que foi saqueado pelas tropas britânicas em 1897 e que a Nigéria reivindica de volta desde sua independência em 1960. O caso tornou-se a principal questão que dividiu opiniões no debate em curso sobre a restituição cultural de obras de arte e objetos saqueados pelas potências coloniais na África, Ásia e América Latina.

Essa história começou no Museu Britânico por volta de 2005, quando Orlow foi convidado a participar de uma exposição sobre pilhagem e apropriação. Esperava-se que ele lidasse com a arte saqueada do Holocausto. Orlow, porém, começou a nutrir outras ideias.

The Benin Project (2007), by Uriel Orlow.
O vídeo “Lost Wax” de Orlow, parte de seu Projeto Benin (2007). Uriel Orlow/Mairie De Bordeaux

“Eu não queria me ater à minha história ou à minha identidade”, diz Orlow. “O caso das peças de bronze de Benin é um dos maiores roubos dos tempos modernos. Tudo dessa cultura foi roubado, levado para a Europa, leiloado e agora está espalhado por museus de todo o mundo ocidental.”

O Museu Britânico se autodenomina “Museu Universal”, e Orlow sentiu que precisava se envolver com ele de alguma forma. “Então, mesmo não sendo descendente de alguém do Benin ou de um soldado britânico que participou do saque, eu estava pensando fora da dicotomia de vítima e vilão, ampliando o campo”.

O colonialismo das plantas

Em meados da década de 2010, Orlow expandiu suas investigações da historiografia para a botânica. Enquanto viajava pela África do Sul, percebeu que as plantas desempenharam e ainda desempenham um papel importante na história e na política. Seu ponto de partida foi uma árvore originalmente plantada pela Companhia Holandesa das Índias Orientais na década de 1660.

Orlow explica: “Eles plantaram uma fileira de amendoeiras silvestres, com quilômetros de extensão, para proteger o jardim da Companhia, onde cultivavam frutas e vegetais exclusivos para abastecer os navios que rumavam para a Índia. Assim, o plantio dessas cercas de árvores foi um dos primeiros atos da violência colonial e a árvore está envolvida nisso. Foi feita cúmplice. E ainda está lá.

>O vídeo abaixo acompanha Orlow na exposição coletiva The Parliament of Plants II, no Liechtenstein Museum of Art, em maio (em inglês).

SWI: Da mesma forma, os jardins botânicos também contam a história do colonialismo.

Orlow: Os jardins botânicos são nossos arquivos coloniais. No entanto, o Jardim Botânico Nacional Kirstenbosch, na Cidade do Cabo, é dedicado especificamente a plantas nativas e possui um número extremamente grande de espécies crescendo lá.

Mas quando andei por este jardim botânico, reparei que todos os rótulos eram em inglês e latim, mesmo num país que tem 11 línguas oficiais, das quais o inglês é uma e o latim não. Isso depois de 25 anos após o fim do apartheid. O que vi me fez pensar no envolvimento das plantas no processo de colonização.

SWI: Você trabalhou junto com outros botânicos pesquisando esse assunto?

Orlow: Os botânicos realmente não trabalham com isso. Eles gostam dos nomes em latim porque facilitam a publicação em jornais internacionais. Então, viajei pela África do Sul e comecei a registrar nomes de plantas através de pessoas que as conheciam em vários idiomas diferentes. Acabou virando um trabalho cujo título é ‘Como as plantas eram chamadas antes de terem um nome’, de alguma forma resgatando aquela oralidade que havia sido reprimida.

Depois de três anos lá, com os nomes das plantas gravados mas ainda sem ainda saber para que serviriam, a pesquisa me sugeriu o que seria a obra: tinha que ser uma peça sonora porque esses nomes existiam apenas oralmente e não por escrito.

Detail of the installation The Memory of Trees, 2016-17
A instalação “The Memory of Trees” (2016-17) marcou uma ligeira mudança na obra de Orlow, expandindo sua visão sobre a história humana para o reino botânico. Uriel Orlow/Gunnar Meier

Rumo ao tempo geológico

Depois de expandir seu escopo de pesquisas para o mundo das plantas, perguntamos qual é o próximo reino que Orlow quer explorar.

“O mundo mineral”, diz. No momento, ele está trabalhando em fósseis de plantas em uma floresta de 280 milhões de anos. Parece, em suas palavras, como “algum tipo de experiência de viagem no tempo”.

Em outro projeto relacionado, Orlow trabalhou com cientistas observando plantas que estão subindo para montanhas mais altas por causa do aumento da temperatura na região alpina de Engadin, na Suíça.

Orlow não retratou a emergência climática com as imagens usuais de incêndios, secas e inundações. “Para mim foi interessante porque isso é como um show à parte, um palco paralelo, e muitas vezes meu trabalho não é sobre o palco principal”, diz.

Para este conceito, Orlow usa um termo alemão: ‘Nebenschauplatz’. “Não é necessariamente onde está a ação, mas é onde há muita ação – só precisamos olhar muito mais de perto.”

Adaptação: Clarissa Levy

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