Lentidão e suposta interferência política marcam combate a crime internacional na Suíça
Na Suíça, a justiça em casos de jurisdição universal segue a passos lentos, apesar da promessa do atual procurador-geral de priorizá-los.
Há muito tempo a Suíça vem sendo criticada pela sua lentidão em lidar com casos de crimes internacionaisLink externo, que nitidamente não eram prioridade durante o mandato do antigo procurador-geral do país, Michael Lauber. Quando Stefan Blätter assumiu o cargo em 2022, ele prometeu fazer dos crimes internacionais uma prioridade. “Somos a nação onde nasceu a ideia de Cruz Vermelha, temos uma obrigação moral de fazer alguma coisa”, disse ele à imprensa em maio de 2022, ao final de seus primeiros 100 dias como procurador-geral.
Então, há sinais de que algo mudou?
“Observamos alguns sinais positivos”, afirma Benoit Meystre, assessor jurídico na ONG suíça TRIAL International, que combate a impunidade. “Nos casos da Argélia e da Síria, nos quais passamos muito tempo sem saber nada sobre as investigações, a Procuradoria-Geral apresentou oficialmente denúnciasLink externo. O fato de o caso SonkoLink externo ter avançado também é positivo. São sinais de que agora as autoridades estão prestando mais atenção a crimes internacionais. Mas a TRIAL International iniciou outros processos cujos desdobramentos ainda estão sendo aguardados depois de muito tempo, então é difícil tirar conclusões”.
Entre eles estão uma denúncia apresentada em 2019 por suposto saque de pau-rosa na região de CasamansaLink externo, no Senegal, afetada por conflitos, e outra registrada em 2020 contra uma empresa suíça por suposta participação no saque de petróleo durante a segunda guerra civil da LíbiaLink externo. “Com exceção do caso Ousman Sonko, que foi a julgamento e resultou em uma condenação, não sabemos em que pé estão os demais processos, o que limita de forma significativa nossas possibilidades de informar sobre esses assuntos de interesse público”, disse Meystre ao Justice Info.
Ousman Sonko, ex-ministro do Interior da Gâmbia, foi condenado em maio de 2024 a 20 anos de prisão por crimes contra a humanidade. Sonko recorreu. A única outra pessoa condenada por crimes internacionais na Suíça desde 2011, quando crimes internacionais foram transferidos da justiça militar para a justiça civil, foi o ex-senhor da guerra liberiano Alieu Kosiah. Em 1º de junho de 2023, um tribunal de apelação suíço confirmou sua pena de 20 anos de prisãoLink externo por crimes de guerra.
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Suíça avança a pequenos passos rumo à justiça universal
Meystre destaca que os recursos da Procuradoria-Geral continuam amplamente insuficientes. “Tanto a polícia federal quanto a Procuradoria-Geral da Suíça trabalham com meios insuficientes, o que acaba afetando a eficácia das investigações”, afirma.
Nezzar morto e Assad foragido
Quando Blätter assumiu o cargo de procurador-geral, herdou dois casos de crimes de guerra de grande visibilidade e politicamente delicados: um contra o ex-vice-presidente sírio Rifaat al-Assad, tio do ex-presidente Bashar al-Assad, deposto em 2024; e outro contra o ex-ministro da Defesa da Argélia Khaled Nezzar. O caso de Nezzar remonta a 2011, e o de al-Assad a 2013.
Ambos estavam em solo suíço quando as queixas foram apresentadas, mas, ao contrário de Ousman Sonko e Alieu Kosiah, receberam permissão para deixar o país, com o compromisso de retornarem para as audiências. No entanto, ambos foram protegidos por seus países e só voltaram uma ou duas vezes, passando a alegar posteriormente que estavam doentes demais para viajar. As denúncias só foram apresentadas em agosto de 2023, no caso de Nezzar, e em março de 2024, no caso de al-Assad. Khaled Nezzar morreu quatro meses após a apresentação da denúncia, aos 86 anos. Rifaat al-Assad tem agora 88 anos.
Nezzar foi acusado de crimes de guerra e crimes contra a humanidade durante a “década negraLink externo” da Argélia, nos anos de 1990. Seu julgamento estava marcado para junho de 2024, mas o caso foi encerrado após sua morte.
Al-Assad também foi denunciadoLink externo por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em conexão com o massacre de Hama em 1982, que deixou dezenas de milhares de mortos, em sua maioria civis. As autoridades suíças emitiram um mandado de prisão internacional contra ele em novembro de 2021 – que só foi divulgado em agosto de 2023 –, mas isso não o impediu de fugir para a Síria a partir da França, onde corria o risco de enfrentar uma sentença de quatro anos de prisão por enriquecimento ilícito. Ele alega estar doente demais para viajar à Suíça para as audiências, apresentando atestados de médicos sírios da época em que seu sobrinho Bashar al-Assad era presidente. Contudo, acredita-se amplamente que ele tenha fugido novamente da Síria após a queda do regime Assad, em 8 de dezembro de 2024.
Tribunal quer arquivar caso da Síria
Os advogados das vítimas sempre contestaram a autenticidade dos atestados médicos de al-Assad. Mas, no final de novembro do ano passado, pouco antes da queda do antigo regime sírio, o Tribunal Penal Federal da Suíça informou às partes que estava considerando encerrar o caso por motivos médicos.
“O massacre [de Hama] assombrou os sobreviventes por 42 anos, e a denúncia por parte da Procuradoria-Geral suíça finalmente representava uma esperança concreta de justiça para esse trauma”, disse a advogada Mahault Frei de Clavière ao jornal suíço Le Matin Dimanche, em dezembro de 2024.
Frei de Clavière representa uma vítima síria ao lado de outros dois advogados suíços. “Perdemos vítimas ao longo do caminho”, disse ela ao Justice Info. “Dada a repressão do regime sírio, acreditamos que há muitas vítimas que não ousaram apresentar uma queixa. Além disso, após os acontecimentos no final do ano passado na Síria, várias pessoas nos procuraram para registrar uma queixa, mas, por razões processuais, já era tarde demais”.
O tribunal ainda não tomou uma decisão final sobre a possibilidade de arquivar o caso. É possível que a decisão definitiva seja influenciada pela pressão dos advogados e pelo fato de que, segundo informações, al-Assad não estaria mais na Síria. Seu paradeiro exato é incerto. Informações veiculadas na mídia indicam que ele pode ter fugido para o Líbano ou Dubai. A credibilidade dos atestados médicos de al-Assad, que continua fugindo, permanece uma questão central no processo.
Suíça levada ao Tribunal Europeu por ‘negação de justiça’
Em 7 de julho deste ano, advogados de duas vítimas envolvidas no caso do ex-ministro da Defesa da Argélia Khaled Nezzar apresentaram uma queixa contra a Suíça no Tribunal Europeu de Direitos HumanosLink externo (TEDH) por negação de justiça. “Recorremos ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos por diversos motivos”, afirma Sofia Vegas, advogada de Genebra que co-representa uma das vítimas. “O primeiro é a duração do processo – mais de 13 anos [investigações e espera pelo julgamento] –, o que viola o princípio de celeridade, independentemente da morte de Khaled Nezzar. O segundo motivo é a própria negação de justiça, devido a essa violação do princípio de celeridade e à falta de acesso a um juiz. As vítimas nunca puderam participar de um julgamento diante de juízes para testemunhar sobre seu sofrimento. Assim, nunca conseguiram obter reconhecimento pelo que sofreram, nem reparação”.
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O princípio do direito universal vive um renascimento – o que isso significa para o mundo
O cliente de Vegas, que ela representa junto com a advogada Sophie Bobillier, é um homem argelino que vive na França. Ele foi preso e torturado durante o regime militar em que Nezzar era ministro da Defesa, disse ela ao Justice Info. Nascido em 1949, seu cliente é idoso, assim como outras vítimas e o próprio réu. Segundo as advogadas, isso é mais um motivo pelo qual a Suíça deveria ter acelerado o caso, em vez de atrasá-lo.
A queixa baseia-se na Convenção EuropeiaLink externo, que estabelece o direito a um julgamento justo e inclui o direito a ser julgado em tempo razoável. Os advogados resolveram acionar o TEDH depois de já terem apelado à Câmara de Reclamações do Tribunal Penal Federal da Suíça. Em março de 2025, a Câmara de Reclamações rejeitou o recurso das vítimas para reconhecer a negação de justiça. O órgão considerou que a duração do processo foi “significativa”, mas ainda aceitável.
Meystre afirma que a TRIAL International apoia firmemente a queixa apresentada ao Tribunal Europeu. “Assim como os autores da ação, acreditamos que o caso demorou tempo demais, violando os direitos das vítimas”, diz. “O processo foi aberto em 2011, e a denúncia só foi feita em 2023. Os 12 anos de investigações, a maior parte conduzida pelo antigo procurador-geral, passaram por várias trocas de promotor responsável, o que contribuiu para os atrasos. Além disso, foram identificados muitos períodos de inatividade durante a investigação. Somados, eles representam mais da metade da duração total do processo”.
Sofia Vegas afirma que também houve indícios de interferência política no caso, como já havia sido alegado por relatores especiais da ONULink externo, embora negado pelo ministro suíço das Relações Exteriores, Ignazio CassisLink externo. Esse é um dos pontos levantados pelos advogados perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos e uma das razões pelas quais o caso avançou tão lentamente, acredita ela. “Houve várias trocas com o embaixador suíço na Argélia e com as autoridades argelinas”, relatou ao Justice Info, “além de diversos elementos que mostram que esse processo criminal incomodava”.
Como exemplo, ela afirma que há uma nota no processo, datada de 2016, sobre uma reunião entre o embaixador suíço na Argélia e a Procuradoria-Geral da Suíça. Segundo a nota, o embaixador afirmou que o caso Nezzar era uma “bomba-relógio”. E a Procuradoria-Geral suíça responde que “embora seja difícil avaliar o impacto direto desse caso nas relações bilaterais, informamos de forma não oficial que um dossiê econômico não havia avançado por causa dele”.
Indenizações?
Meystre destaca a importância que esse caso teria tido se Nezzar tivesse sido levado à justiça antes de morrer. “Nenhum processo em busca de justiça foi possível na Argélia ou em outro lugar, em relação à ‘década negra’. Teria sido muito simbólico para algumas vítimas, e especialmente para os autores da ação que lutam há tanto tempo por justiça, ver pelo menos um dos protagonistas de um período tão sombrio enfrentando julgamento”, disse ao Justice Info.
Sofia Vegas explica como tem sido difícil para as vítimas. “Quando a Procuradoria-Geral da Suíça finalmente enviou o caso a julgamento, por insistência dos advogados das vítimas, estas esperavam finalmente ter uma audiência no Tribunal Penal Federal”, diz. “Esperavam, enfim, obter justiça. No fim, aconteceu o oposto, devido à morte do acusado. Foi muito difícil para elas”.
Os advogados estão pedindo ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos que determine que a Suíça pague indenizações de cerca de 10 mil euros a cada uma das duas vítimas envolvidas. Esse é o valor que pode ser solicitado como compensação pela negação de justiça sofrida pelas vítimas. “Treze anos é tempo demais”, afirma Vegas. Ela acredita que há boas chances de o TEDH reconhecer isso. Mas uma decisão desse tipo também pode levar anos.
11 investigações em andamento sobre crimes internacionais
Segundo informações fornecidas pela Procuradoria-Geral da Suíça, ao final de 2024, havia onze investigações sobre crimes internacionais sendo conduzidas. A Procuradoria-Geral não quis divulgar mais detalhes sobre a natureza desses casos nem sobre os recursos humanos e financeiros a eles alocados.
Seis das onze investigações estão listadas no mapa interativo da organização suíça TRIAL International e são relativas a supostos crimes cometidos na República Democrática do Congo (por Christoph HuberLink externo, cidadão suíço e sul-africano); na Síria (por Rifaat al-AssadLink externo); no Bahrein (por Ali bin Fadhul al BuainainLink externo); na Ucrânia (no caso do fotógrafo Guillaume Briquet, alvo de um comando russoLink externo); na Líbia (por uma empresa suíçaLink externo suspeita de crimes de guerra por saque de combustível diesel); e na Gâmbia (saque de pau-rosa em CasamansaLink externo envolvendo um empresário suíço). Nos três últimos casos, as identidades dos suspeitos não foram divulgadas.
Outros dois casos, sob jurisdição cantonal (sobre Erwin SperisenLink externo, da Guatemala, e Yuri ArauskiLink externo, da Bielorrússia), não devem ser contabilizados nas 11 investigações conduzidas pela Procuradoria-Geral suíça, de acordo com a TRIAL International, ONG suíça especializada em processos de jurisdição universal. Da mesma forma, os casos de Ousman SonkoLink externo (Gâmbia) e Alieu KosiahLink externo (Libéria), que já foram julgados em primeira instância, não são contabilizados nessa contagem, de acordo com a TRIAL International. (Franck Petit, Justice Info)
Este artigo foi publicado pela primeira vez por JusticeInfo.netLink externo
Adaptação: Clarice Dominguez
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