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Escândalo envolvendo Credit Suisse ainda abala Moçambique

Fishing boat on beach
O escândalo "Tuna Bond" (Título de Atum) deixou Moçambique profundamente endividado. Keystone / Yeshiel Panchia

O escândalo conhecido como “título de atum” envolve supostos subornos pagos por banqueiros suíços a dirigentes moçambicanos. O filho de Armando Guebuza, ex-presidente do país, teria recebido Ferraris, Rolls-Royces, BMW's - além de mais de 7.400 “garrafas de vinho” transportadas por um jato particular da França.

Enquanto os holofotes se voltam para o Credit Suisse – chamando atenção para as multas de US$ 475 milhões que o banco deve pagar nos EUA e Reino Unido e os 2 bilhões de dólares envolvidos na fraude do “título de atum” – a corrupção em Moçambique é denunciada em um dos maiores julgamentos do país africano.  

Em um tribunal de segurança máxima dentro de uma prisão em Maputo (capital de Moçambique, um dos países mais pobres do mundo), um juiz passou as últimas semanas ouvindo mais de uma dúzia de suspeitos – incluindo o filho de Armando Guebuza, o presidente até 2015 – sobre o esquema em que eles teriam manejado ao menos US$ 50 milhões em propinas que foram financiadas por empréstimos que o Credit Suisse e o VTB da Rússia venderam a investidores internacionais a partir de 2013.

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Os empréstimos, contratados para comprar barcos da Privinvest, uma construtora de navios do Golfo, implodiram anos depois, devastando a economia do país.

Entre 2016 e 2019, a fraude de US$ 2 bilhões acabou custando à economia de Moçambique US$ 11 bilhões ou US$ 400 por cidadão – todo o produto interno bruto do país em 2016 – de acordo com um estudo do Centro de Integridade Pública do país e do Instituto Norueguês Chr. Michelsen.

O impacto desse crescimento perdido e a desaceleração econômica, segundo o estudo, empurraram quase dois milhões de pessoas para a pobreza.

As revelações em Maputo são apenas parte de um escândalo que o Credit Suisse gostaria de disfarçar com seus acordos com autoridades dos EUA e do Reino Unido, anos depois de três ex-funcionários já se declararem culpados por lidar com subornos.

Em uma atitude incomum, o banco perdoará 200 milhões de dólares do que Moçambique ainda deve em um título que se tornou um símbolo suspeito da fraude, depois que os investidores foram informados de que o financiamento seria para uma pesca de atum executada pelo Estado.

Para António Horta-Osório, novo presidente do Credit Suisse, o momento pode ser apenas mais um em meio ao longo trabalho de reparação da reputação do banco. Apesar de o Credit Suisse admitir o que um procurador dos EUA chamou como “conspiração criminosa global para fraudar investidores”, um informante sênior do banco disse que era “difícil retratar [o momento] como um dia totalmente ruim no escritório”.

Casos civis se aproximam

Mas a série cuidadosamente coreografada de anúncios de acordos regulatórios publicados semanas atrás está longe de ser o fim dos escândalos para o Credit Suisse.

O banco ainda enfrenta uma rede emaranhada de processos legais civis em Londres – incluindo contra Moçambique e detentores de títulos – uma investigação criminal do FBI em andamento e os novos danos à reputação de seus negócios depois que sua subsidiária britânica se declarou culpada de fraude bancária em um tribunal do Brooklyn em outubro.

“A ideia de que isso acabe para o Credit Suisse é completamente infundada”, disse Natasha Harrison, sócia-gerente da Boies Schiller Flexner, escritório de advocacia dos EUA que está processando o banco em nome de credores, incluindo o Banco Comercial Português e o United Bank for Africa.

“Há uma enorme quantidade de litígios passando pelos tribunais ingleses no momento e isso não vai desaparecer. Se há alguma coisa, está ficando cada vez mais forte”.

Avisos ignorados

O julgamento dos detentores de títulos da Suprema Corte inglesa foi adiado por mais dois anos, com o processo de divulgação do processo, potencialmente embaraçoso, previsto para ocorrer no meio do próximo ano.

Os documentos do acordo divulgado em outubro detalharam como a equipe de compliance do banco havia ignorado avisos sobre como lidar com um empreiteiro descrito como um “mestre das propinas”, “fortemente envolvido em práticas corruptas” e alguém para quem “a ética está na parte inferior da lista”.

Tais falhas no controle de risco ocasionaram os dois escândalos mais recentes, nos casos em torno do colapso da empresa de finanças especializada Greensill Capital e do escritório da família Archegos Capital.

“Há um certo padrão aqui que temos visto várias vezes no Credit Suisse”, disse um credor que está processando o banco. “Este não é apenas um elemento de mau julgamento ou olhar para o outro lado.”

Vitória oca

Em Moçambique, a dor da dívida vai demorar muito mais do que o sucesso de reputação do Credit Suisse.

“Esta é uma vitória oca”, disse Denise Namburete, diretora executiva da N’weti, uma ONG moçambicana. Ativista de longa data sobre a dívida oculta, em 2019 ela viajou para uma reunião de acionistas do Credit Suisse em Zurique com o objetivo de constranger o banco.

Agora, Namburete disse que sente “uma mistura de sentimentos” sobre a vitória que veio depois de uma longa luta por justiça, mas não está nem perto de reparar os moçambicanos comuns pelo colapso econômico que todos sofreram.

No início da década de 2010, as elites políticas do país, incluindo Guebuza e Filipe Nyusi, o ministro da Defesa e sucessor, estavam no pós-venda de descobertas de gás que prometiam transformar suas fortunas.

Na época, a Privinvest apresentou projetos de segurança marítima ao governo do então presidente Guebuza, após uma apresentação feita por seu filho – de acordo com o testemunho de Andrew Pearse, um dos funcionários do Credit Suisse que admitiu ter mexido com propinas.

Na sequência, três empréstimos para apoiar os projetos moçambicanos foram inflados de US$ 300 milhões para mais de US$ 2 bilhões para incorporar propinas, e foram emitidos a partir de 2013 sem divulgação ao FMI – de acordo com depoimentos prestados antes do julgamento moçambicano e em outros processos judiciais.

Jean Boustani, um vendedor da Privinvest, se referiu às “garrafas de vinho” em uma mensagem de 2013 que os promotores moçambicanos alegaram no tribunal ser uma discussão sobre propinas. Analistas dizem que a implausibilidade de carregar e pesar um jato com milhares de garrafas sugere que dinheiro em espécie é uma possibilidade mais provável.

 “Não estava em posição de comentar os detalhes do julgamento de Maputo pois não era parte disso”, alega a Privinvest. A empresa sempre negou qualquer irregularidade, assim como o filho de Guebuza – que também nega qualquer conhecimento do vinho – e Boustani, que foi absolvido de todas as acusações de fraude em um julgamento nos EUA em 2019.

Grandes dívidas

O esquema foi denunciado em 2016 pelo colapso público chamado de “Título de atum”. À medida que os projetos desmoronaram e a verdadeira escala das dívidas e dos saques era descoberta, doadores internacionais e o FMI retiravam fundos. Ao mesmo tempo, o governo estava inadimplente com o pagamento da dívida e um colapso cambial forçava a alta dos preços dos alimentos.

“Isso representa o custo final que os moçambicanos ainda têm que pagar”, disse Namburete. “O custo da conduta corrupta do Credit Suisse é muito alto para ser coberto com uma multa [de US$ 475 milhões]. As multas estão muito abaixo do custo real”.

As sanções cobradas pelos EUA e pelo Reino Unido devem, pelo menos, ir para projetos que beneficiem o povo moçambicano, disse Namburete. “Não para o governo. Nós não confiamos no governo”.

O alívio da dívida de US$ 200 milhões acordado com a Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido pelo Credit Suisse é, entretanto, aproximadamente o mesmo que as propinas que seus banqueiros e funcionários moçambicanos deixaram dos empréstimos, de acordo com os EUA. Pearse testemunhou que, em 2019. negociou seu primeiro suborno sobre bebidas na piscina de um hotel Maputo.

O alívio também se baseia no resultado de um processo judicial que está a anos de distância. Moçambique processou o Credit Suisse por danos causados pelas dívidas, com audiência marcada para 2023. O Credit Suisse não precisa abater a dívida até que ela se resolva ou Moçambique perca o caso.

“A sentença desta semana fornece um alívio significativo da dívida para o povo de Moçambique”, disse Matt Herrington, sócio de Paul Hastings, que atuou como conselheiro externo do Credit Suisse e chamou a mudança de “precedente importante”.

Outros credores continuam pressionando o governo para reembolso. Na semana passada, a VTB pagou uma multa de US$ 6 milhões para resolver as alegações de que não divulgou o quadro completo das dívidas de Moçambique durante a reestruturação dos Títulos de Atum de 2016. O banco russo também disse na semana passada que “espera prevalecer” em seu processo em andamento para forçar Moçambique a pagar um empréstimo feito à estatal Moçambique Asset Management.

Ativistas moçambicanos estão pressionando para que todas essas dívidas sejam rasgadas como ilegítimas. A admissão de fraude do Credit Suisse esta semana “reforça a equidade e legitimidade da [nossa] demanda pelo cancelamento integral de dívidas ilegais”, disse o Fórum de Monitoramento de Orçamento, uma coalizão de grupos da sociedade civil.

O banco suíço está planejando recuar dos mercados emergentes, com Horta-Osório considerando os riscos inaceitáveis, de acordo com pessoas familiarizadas com seu pensamento.

Mas mesmo com o movimento do Credit Suisse, os empréstimos que organizou terão ramificações políticas em Moçambique nos anos seguintes.

Terra da corrupção

No próximo ano, quando a Frelimo governante se reunir para escolher seu candidato a presidente após o segundo e último mandato de Nyusi terminar, a repercussão sobre as dívidas ocultas poderá determinar se os grupos que representam Nyusi ou Guebuza triunfarão, dizem analistas.

A Privinvest disse em um processo judicial de Londres contra Moçambique que pagou US$ 1 milhão à Nyusi e US$ 10 milhões ao partido Frelimo em 2014, embora a empresa tenha afirmado que eram doações políticas, não subornos.

Nyusi negou qualquer irregularidade ou mesmo conhecimento dos empréstimos ocultos quando era ministro da Defesa. Mas ele admitiu recentemente que presidiu um país agora visto como “uma terra de corrupção onde todos são corruptos”.

Os sonhos de riquezas de gás offshore, o impulso original para os empréstimos turbinados de Moçambique, estão desaparecendo à medida que uma insurgência islâmica se espalha pelo extremo norte do país, onde está concentrada a produção de gás natural liquefeito, forçando empresas como a Francesa Total a suspender projetos.

Em 2016, pouco antes dos empréstimos obscuros serem revelados, o FMI previu que Moçambique seria uma economia de US$ 31 bilhões em 2021 e US$ 75 bilhões até 2025. As últimas previsões do fundo são de que o PIB de Moçambique será inferior a US$ 16 bilhões este ano, e pouco mais de US$ 25 bilhões em 2026.

Os moçambicanos foram agraciados pela cobertura ao vivo da TV do julgamento de Maputo, disse Namburete. “Mesmo que saibamos que a justiça terá deficiências… eles precisam conhecer e aprender sobre a gênese desta crise.”

Mas a ativista diz que o Credit Suisse só foi levado em conta depois que foi “encurralado”.

“Eu não acho que eles se importam com o que está acontecendo em Moçambique.”

Copyright The Financial Times Limited 2021

Adaptação: Clarissa Levy

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