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Fundação Humanitária de Gaza distribui ajuda sob forte tensão

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Meninas palestinas se aglomeram para receber porções de comida de uma cozinha comunitária em um campo de refugiados em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, na sexta-feira, 30 de maio de 2025. Keystone-SDA

A Fundação Humanitária de Gaza, apoiada por Israel e pelos Estados Unidos, foi criada para substituir a ajuda humanitária conduzida pela ONU na Faixa de Gaza. Apenas uma semana após seu lançamento oficial, a organização já estava envolvida em grandes controvérsias.

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No final de maio, o lançamento da Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês) foi marcado por cenas caos e tiroteios, quando milhares de palestinos famintos e em pânico correram para um de seus pontos de distribuição de alimentos. Já fazia dois meses que um bloqueio israelense impedia a entrada de alimentos e outros itens essenciais no enclave. O exército israelense afirmou que disparou tiros de advertência para dispersar a multidão.

Depois do lançamento desastroso da fundação, em 27 de maio, a carnificina continuou, com pelo menos mais dois eventos com vítimas em massa no sul de Gaza, próximos aos locais de distribuição da GHF. Em 1º de junho, mais de 30 palestinos foram mortos e outros 170 foram feridos por “tiros de advertência” disparados pelas forças israelenses, segundo autoridades palestinas e testemunhas oculares. A GHF afirmou que os relatos eram “completamente falsos e inventados”. Em um comunicado, o porta-voz do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, disse que estava “chocado” com os relatos e pediu uma investigação imediata e independente.

Em 3 de junho, pelo menos 27 palestinos que buscavam ajuda foram mortos por disparos israelenses, também perto de um local de distribuição da GHF no sul de Gaza. Em um post na rede social X, o exército israelense declarou que os soldados começaram a disparar tiros de advertência quando “vários suspeitos” se desviaram das rotas designadas para a distribuição de ajuda.  Eles dispararam novamente depois que “os suspeitos não recuaram”. O exército afirmou que “os detalhes do incidente estão sendo investigados”.

Esses eventos fatais representam sérios desafios para a GHF. Eles trazem à tona questões já reiteradas pelo alto escalão das Nações Unidas, que questiona se a organização recém-criada é adequada para a tarefa, respeita o direito internacional e segue princípios humanitários.

Críticas severas

Desde a sua criação, a ONU e as organizações não-governamentais que trabalham em Gaza rejeitaram e criticaram duramente a fundação, que tem entidades registradas em Delaware, nos Estados Unidos, e em Genebra, na Suíça. Elas afirmam que a fundação está tentando contornar o sistema de distribuição de ajuda humanitária liderado pela ONU, que já atua em Gaza há décadas. Embora ainda não esteja claro como a fundação planeja operar, parece que a maior parte de suas operações está sendo realizada por meio da entidade de Delaware, nos EUA.

A controversa GHF – uma criação de Israel e dos Estados Unidos – consiste em centros de distribuição de alimentos, também chamados de Locais de Distribuição Segura (SDS, na sigla em inglês), no sul de Gaza, que são gerenciados por empresas privadas dos EUA e protegidos pelos militares israelenses. Há muito tempo, Israel acusa o Hamas de roubar ajuda humanitária, mesmo sem ter provas concretas disso.

Quando questionada em um noticiário dos EUA se o Programa Mundial de Alimentos (PMA) havia testemunhado algum desvio de ajuda por parte do Hamas, Cindy McCain, diretora executiva da organização, respondeu: “Não, de forma alguma. Não recentemente”.

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Palestinos deslocados transportando suprimentos de emergência da Fundação Humanitária de Gaza (GHF). Afp Or Licensors

Após o incidente de 27 de maio – quando o Escritório de Direitos Humanos da ONU (OHCHR, na sigla em inglês) disse ter recebido relatos de que pelo menos 47 pessoas haviam sido feridas enquanto tentavam coletar ajuda em um ponto de distribuição em Rafah, uma cidade no sul de Gaza – o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, descreveu o incidente como uma “perda de controle” momentânea que foi rapidamente “retomado”. Ele fez essa declaração durante uma conferência da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto em Jerusalém.

Em e-mails enviados posteriormente à mídia, a GHF nega que tenha havido mortos, feridos ou caos nos locais de distribuição em 27 de maio. “Relatos contrários vieram do Hamas e estão incorretos”, afirmou.

A ONU e as ONGs têm acusado repetidamente a GHF de militarizar a ajuda e criticam fortemente qualquer envolvimento das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês).

Processo de distribuição de ajuda?

A SWI swissinfo.ch enviou um e-mail à GHF solicitando detalhes sobre o processo de coleta e distribuição de ajuda, mas não obteve resposta. No entanto, em um e-mail enviado aos meios de comunicação em 1º de junho, a GHF afirmou que, desde o início de suas operações no enclave palestino, mais de 4,7 milhões de refeições haviam sido distribuídas por meio de três pontos de distribuição de ajuda em Rafah e um no centro de Gaza.

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Tom Fletcher, coordenador de ajuda emergencial da ONU e um dos maiores críticos da GHF, escreveu na rede social X: “Temos os suprimentos, o plano, a vontade e as redes para fornecer grandes quantidades de ajuda vital aos civis em Gaza, de acordo com os princípios humanitários, como o mundo está exigindo. Chega. Vamos trabalhar. Não há mais tempo a perder”.

De modo absolutamente inesperado, em 25 de maio, um dia antes de a GHF entrar em operação, Jake Wood, diretor executivo da fundação, anunciou sua renúncia.

“Há dois meses, fui procurado para liderar os esforços da GHF devido à minha experiência em operações humanitárias”, disse Wood em um comunicado. “No entanto, está claro que não é possível implementar esse plano e, ao mesmo tempo, respeitar rigorosamente os princípios humanitários de humanidade, neutralidade, imparcialidade e independência, que eu não abandonarei”.

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Vista do carro danificado após um ataque israelense à cidade de Gaza, em Gaza, em 28 de maio de 2025. / Anadolu (Foto de Karam Hassan / ANADOLU / Anadolu via AFP) 2025 Anadolu

Falta de transparência

A ONU e organizações como Mercy Corps, Care International, Project Hope, Save the Children e Catholic Relief Services declararam que não estão participando do projeto da GHF, e não está claro quem trabalha com a fundação em Gaza ou de onde vem seu financiamento inicial. A GHF afirma ter mais de US$ 100 milhões (CHF 82 milhões) prometidos por parte de doadores cuja identidade não foi revelada.

Em imagens publicadas recentemente pela fundação, caixas de papelão com suprimentos – incluindo macarrão, farinha, feijão, chá, biscoitos e outros alimentos – estavam estampadas com a marca da Rahma Worldwide, uma organização sem fins lucrativos sediada no estado americano de Michigan. No entanto, em um e-mail enviado à SWI swissinfo.ch, a organização negou qualquer envolvimento direto com a fundação. Eles alegam que a GHF “assumiu a custódia” das caixas na passagem de Kerem Shalom, em Gaza.

“Vimos imagens de caixas de alimentos com nosso logotipo sendo distribuídas sem o envolvimento direto da Rahma. A Rahma não autorizou essa distribuição, e nenhum membro da nossa equipe teve permissão para participar desse processo”, disse um porta-voz.

“Todos estão confusos”, disse Philip Grant, diretor executivo da Trial International, uma ONG que dedicada à busca de justiça para crimes internacionais. “Neste mundo em que há tantas coisas em jogo, deve haver transparência; não é possível continuar [sem ela],” afirmou.

Com sede em Genebra, na Suíça, a Trial International apresentou recentemente duas ações legais à Autoridade de Supervisão Federal de Fundações e ao Ministério das Relações Exteriores da Suíça solicitando uma investigação da entidade da GHF registrada em Genebra. Grant disse à SWI que as entidades suíça e estadunidense foram criadas essencialmente pelas mesmas pessoas, mas aparentam ser independentes no papel.

As alegações da Trial International envolvem possíveis violações das Convenções de Genebra e da lei suíça que regulamenta o uso de empresas militares privadas – que também inclui operações humanitárias – por parte da GHF de Genebra.

No início de junho, surgiram rumores de que a fundação estaria fechando as portas em Genebra. Isso complicaria ainda mais o processo legal da Trial International, mas, segundo Grant, esse “não é o fim da história”. As solicitações de fiscalização feitas às autoridades suíças pela Trial International ainda podem prosseguir.

Atrasos na distribuição de ajuda

Outro aspecto das operações de ajuda envolve o acúmulo de suprimentos humanitários na passagem de Kerem Shalom, o ponto em que os caminhões israelenses que transportam ajuda entram em Gaza.

De acordo com a ONU, embora um número escasso de caminhões – cerca de 100 por dia para aproximadamente dois milhões de pessoas – tenha sido autorizado a entrar em Gaza pela Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT, na sigla em inglês) do exército israelense, o processo de coletar ajuda, entregar os produtos nos armazéns em Gaza e, em seguida, distribuir a ajuda aos civis tem sido repleto de obstáculos e atrasos impostos à ONU pela COGAT.

Em uma reunião com a imprensa no dia 28 de maio, Jonathan Whittall, um dos chefes do Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) da ONU, descreveu “longos atrasos no recebimento das aprovações necessárias” para entregar ajuda em Gaza e “rotas inadequadas para o transporte de suprimentos”. Ele também mencionou restrições adicionais das autoridades israelenses que só permitem a entrega de farinha a padarias. Os palestinos estão “passando fome” e “sendo alimentados a conta-gotas”, disse ele.

“Gaza é o lugar mais faminto do mundo”, disse o porta-voz da OCHA, Jens Laerke, em 30 de maio. Ele acrescentou que as operações de ajuda estabelecidas estão “prontas para funcionar”, mas foram “colocadas em uma camisa de força operacional”, tornando Gaza “uma das operações de ajuda mais obstruídas” da história recente.

Em um post no X, o chefe da COGAT, Ghassan Alian, acusou a ONU de “não cumprir seu papel” e divulgar “informações falsas e incorretas sobre o sofrimento dos civis”. Israel ampliou as rotas de ajuda e “estendeu os horários de coleta”, acrescentou. “Pedimos à ONU que cumpra a missão que lhe foi confiada como parceiro humanitário fundamental, conforme exigido e sem mais atrasos.”

Nos últimos dias, surgiram rumores de um possível acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas. No entanto, não houve nenhum anúncio oficial sobre o assunto.

Edição: Virginie Mangin/fh
(Adaptação: Clarice Dominguez)

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