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Luz, Claudia, Ação

Claudia Andujar sentada na penumbra
swissinfo.ch

Uma idosa suíça de quase 90 anos é empurrada na cadeira de rodas por um italiano ancião, na profunda floresta amazônica. Ela é Claudia Andujar e ele é Carlo Zacquini, missionário laico da Consolata. A trilha serpenteia em meio ao calor, a umidade e a densa folhagem das margens cercadas por árvores majestosas. Ela traz uma camera fotográfica apoiada no colo e sacoleja pelo caminho.

“A Claudia queria ajudar a transportar os equipamentos de alguma maneira”, conta para swissinfo.ch, Mariana Lacerda,  a diretora do documentário “Gyuri”, por telefone, da sua cidade natal, Recife.

O filme foi realizado em São Paulo e na aldeia Demini, no coração da Amazônia brasileira, dentro do território dos Yanomami – demarcado 30 anos atrás pelo governo brasileiro graças, principalmente, à luta de Claudia Andujar, do xamã Davi Kopenawa e do missionário Carlo Zacquini, co-fundadores  da Comissão pela Criação do Parque dos Yanomami.

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Amazonie

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O delicado testemunho suíço da cultura Yanomami

Este conteúdo foi publicado em 1974. Claudia Andujar retorna ao território Yanomami após sua primeira visita, três anos antes. Ela tem tudo planejado para uma longa estadia, incluindo uma centena de filmes fotográficos embalados em caixas de poliestireno para protegê-los da umidade. Imprescindível, afinal chove à cântaros neste canto da Amazônia, e seu gravador e a bela rede comprada em…

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“Existe uma crise humanitária em curso, é um momento de guerra, uma guerra silenciosa. O filme trata disso. E está ali dito. A Claudia sai de uma guerra e entra em outra”, conta a diretora Mariana Lacerda para swissinfo.ch, sobre a trajetória de vida de Claudia Andujar. Da fuga dos nazistas à linha de frente para salvaguardar os índios do extermínio. “Já o Carlo é um gigante nesta história toda. Muito reservado, sempre na dele”, comenta ela.

Mariana Lacerda
Mariana Lacerda. swissinfo.ch

Minha nós, Claudia

Na aldeia Demini, Claudia Andujar chega amparada por Carlo Zacquini e por um Yanomami. O clima é de festa dentro da maloca construída com cobertura de folhas de palmeiras e cercada por ripas de maçaranduba. Ela é recebida com cantos e como a mãe de 25 mil índios, espalhados por 322 aldeias, em 96.650 quilômetros quadrados. Com suas fotos, a suíça deu à luz a importância da cultura indígena ao mundo.

 “Estava com saudade”, diz um Yanomami de mãos dadas a Claudia Andujar. “Minha mãe”, exclama ele, “Meu filho”, responde. “Minha floresta, minha nós”, completa o índio revelando que na aldeia, como afirma Mariana Lacerda para a swissinfo.ch, “não existe um meu mas existe um nosso”.

Os microfones capturam os diálogos entre Claudia Andujar, Carlo Zacquini e Davi Kopenawa. “Eu conhecia muito pouco, foi o René Furst…”, comenta no filme o italiano Carlo Zacquini, da missão Consolata, sobre quem primeiro lhe apontou a estratégia da demarcação da terra, que existiam leis para isso. Em 1961, já tinha sido criado o Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso.  A semente plantada pelo etnólogo suíço René Furst frutificaria, desta vez, em Roraima e no Amazonas, em meio a tantos percalços.

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Uma suíça que se revelou fotógrafa no Brasil

Este conteúdo foi publicado em Aos 84 anos, ela continua a morar em São Paulo, onde chegou em 1955. “Eu vim para visitar a minha mãe que tinha vindo para cá atrás do namorado húngaro com quem se casaria aqui… e acabei ficando. Gostei muito do país, muito mais do que dos Estados Unidos”. A infância e a adolescência foram marcadas pelos…

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Para os índios, a ideia da demarcação da terra era inconcebível. Um rio une e não separa. “Na cultura Yanomami não existe isso. Eu nunca tinha visto demarcação de terra. O meu Brasil é livre. Então, a Claudia está lutando para desenhar a terra aonde os Yanomami estão morando”, diz o xamâ e porta-voz desta etnia, Davi Kopenawa, durante a conversa na aldeia com Claudia Andujar e Carlo Zacquini. “Ela veio ver mim. Ela veio salvar nós”, afirma ele durante as filmagens na maloca.

Naquele período, no começo da ditadura militar, a luta pela preservação indígena tornou-se ficção científica. Carlo Zacquini tinha acabado de chegar, em primeiro de maio de 1965. A metamorfose de frade Carlo em indigenista Zacquini foi longa. “Eu tinha sido preparado para outras atividades. Depois me vi lançado na confusão de uma floresta. Uma confusão que amei logo. Fortemente, dei-me conta da existência desta questão”, conta Carlo Zacquini, por telefone, de Boa Vista, para a swissinfo.ch.

Encontros

O xamã Davi Kopenawa conta no filme como confiou em Claudia Andujar. “Eu tinha que conhecer a alma da pessoa, dentro por dentro. E essa pessoa precisa conhecer a alma do índio. Ela me contou o que tinha acontecido na sua terra, que vinha de uma guerra onde milhares de homens, mulheres e crianças eram mortas com bomba. Assim que acreditei na luta da Claudia”.

“Ela ficava lá na missão Catromani, tirando foto. E eu perguntava para a Claudia, “por que está tirando tantas fotos dos Yanomami?”, me explica o que você vai fazer com estas imagens? Imprimir e deixar no papel?”, relembra ele.

No filme, Claudia Andujar, escuta a versão de Kopenawa que responde no lugar dela…”Olha Davi, eu sou fotógrafa, tiro foto e vou colocar as fotos num livro e mostrar para outras pessoas. Quem conhecer o seu povo vai respeitar um pouquinho. Seu eu não mostrar a foto do Yanomami, assim, pintado com o urucum, o napö – branco para os Yanomami- não vai acreditar, todos com roupas, eles não vão acreditar, vocês são diferentes, vocês são da floresta, nascidos, criados e moradores na floresta, eles devem conhecer vocês através de fotos.”

Claudia e Kopenawa
Claudia Andujar e o xamã Davi Kopenawa swissinfo.ch

Claudia encarna nele: ”Para nós,brancos, é importante mostrar a sua imagem a quem não conhecer os índios, com as fotos, e respeitar um pouco. Já tem dono, a terra Yanomami. O branco entra na terra indígena e mata. Para não acontecer isso, aqui no Brasil, a Claudia veio, para avisar a gente, para avisar mim, para eu aprender a defender”, diz Davi Kopenawa, também presidente da Associação Hutukara .

O governo militar logo a enquadraria na Lei de Segurança Nacional. A suíça virou suspeita de espionagem. Em 1976, ela seria obrigada a abandonar as terras indígenas como relembra Claudia Andujar: “Apareceu no Catrima, o Amâncio, da Funai (órgão oficial do governo para as questões indígenas, ndr)…’olha queremos você voltando para Boa Vista com a gente’, e eu estava assim, sabe, morando lá. Como? Vou deixar tudo? ‘Sim, dou meia hora para juntar toda a bagagem e você vai voltar com a gente! Não queremos mais você aqui’. Eu não tinha escolha. Peguei o que eu podia, aliás, deixei um carro né?!”. Curiosamente, em dezembro do mesmo ano, Amâncio contrataria o jovem Davi Kopenawa como tradutor para afirma-se na chefia do posto da Funai.

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A suíça de alma indígena

Este conteúdo foi publicado em Essa suíça de voz rouca e fala mansa, recebe swissinfo.ch, vestida de branco, numa sala branca, poucos móveis, com amplas vidraças, paredes cobertas por livros e três grandes fotografias de índios, em meio às plantas e objetos de artesanato indígena. “Eu soube da existência de uma xamã Ianomâmi, mas não cheguei a conhecê-la. Foi uma raridade”, conta…

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Enlace de dois mundos

Corta para “o cantinho dela”, o seu apartamento, no centro de São Paulo.  Ali ela foi entrevistada sobre a sua infância e pré-adolescência, na língua húngara. Depois Claudia Andujar seria levada para a Amazônia onde conversaria em português, com seus companheiros de luta.

“Eu pensei que, talvez, este relato dela pudesse alcançar outras camadas de memórias se narrado na língua na qual os fatos aconteceram. Toda língua é um universo próprio. E então veio a proposta de entrevistar a Claudia em húngaro”, revela à swissinfo.ch, Mariana Lacerda.

O encontro foi conduzido pelo filósofo húngaro-brasileiro Peter Pál Pelbart. Claudia Andujar viveu a sua infância e puberdade na Hungria – terra do pai, Siegfred Haas, judeu – onde se transferiu após o nascimento, em 1931, em Neuchâtel, na Suíça – pátria da mãe, Germain Guye, evangélica. O casal se separaria logo depois. O idioma iluminou as memórias de Nagyuárhd (atual Oradea, na Romênia), reais e sobrenaturais.

“Eu conversava com as empregadas. Elas diziam que quando era meia noite, vinham essas visões, elas ouviam quando vinham os espíritos, então precisávamos estar muito silenciosas para que não nos machucassem e eles sabiam tudo o que eu fazia na escola…e eu sempre acordava quando era meia noite e, até as três da madrugada, tinha medo que algo pudesse acontecer. Essa lembrança ficou”, relata Claudia Andujar a Peter Pál Pelbart enquanto a floresta amazônica, verdejante e vista do alto, em meio às névoas, desliza pela tela do cinema.

De certa forma este mundo fantástico preparou-a para conviver com o universo sobrenatural dos Yanomami. “No filme, vemos um pouco todo mundo dormindo. Isso é porque para os Yanomami, o sonho não é um lugar aonde não acontecem os encontros, no sonho acontecem coisas que equivalem ao momento que você está acordado. Você não está sonhando, você está vivendo”, diz Mariana Lacerda para a swissinfo.ch.

“Gyuri é o espírito amoroso de criança, um jeito indígena de pensar. A trilha sonora do O Grivo remete a canções de ninar e que cobre boa parte de cenas como a das crianças jogando futebol, brincando de esconde-esconde, nadando no igarapé e pintando o corpo com urucum”, comenta a diretora.

Na sua “oca” instalada no vigésimo andar, o céu entra pela janela e ilumina a decoração com as fotografias e os objetos dos índios. Ali, no seu cantinho, Claudia Andujar reviu-se na menina dentro da guerra mundial. E vieram à tona o derradeiro encontro de despedida com o pai, deportado para Auschwitz. “Ele me disse que não tinha sido correto comigo”, e o primeiro e último beijo a Gyuri. Seu amor de adolescência é também levado para o mesmo campo de concentração. “Meus lábios ferviam depois do beijo”, diz enquanto fecha os olhos.

índios jogando futebol
Futebol na aldeia. swissinfo.ch

E agora?

Na maloca, Claudia Andujar sente-se em casa. Tem a sua própria rede. A camera de filmagem mostra a fotógrafa “cutucando” a memória de Kopenawa. “Eu chamo ele de Dawiwo. Você lembra que a gente foi em Oslo, na Noruega, tivemos amigos muito bons lá, se lembra? Não, não se lembra… Eles foram realmente os primeiros que apoiaram o nosso trabalho. Você lembra que fizemos uma exposição lá? Com fotos… e fomos muito bem tratados” relembra Claudia Andujar.

Na época, o Ministério do Exterior da Noruega foi um dos patrocinadores da expedição sanitária entre dezembro de 1980 e 1983.  O cadastro de saúde da população Yanomami acabaria por ajudar no processo de demarcação do território.

“Nós fracassamos. O que fizemos e fazemos é insuficiente. Mas o sucesso maior, que temos, tivemos, a gente que se dedicou a estas coisas, é que existe um número cada vez maior, ainda pouco, de indígenas que aprenderam e estão aprendendo a se defender, estão fazendo progresso falando por conta própria. Talvez seja hora da igreja parar de celebrar missas com cálice de ouro banhado por sangue Yanomami”, sacramenta Carlo Zacquini para a swissinfo.ch.

A cultura Yanomami profetiza a queda do céu como o fim do mundo. Sem dar-se paz, ele cria o Centro de Documentação dos Indígenas, em Boa Vista, no estado de Roraima. E Claudia Andujar cede parte dos direitos internacionais das suas imagens à causa. Ambos ajudam a sustentar a abóboda celestial.

(Edição: Fernando Hirschy)

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