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A difícil reconciliação entre armênios e turcos

Manifestação de protesto, dia 16 de outubro em Yerevan, contra a ratificação pelo Parlamento armênio dos acordos assinados em Zurique. Keystone

Sou brasileiro, mas de origem armênia. Para mim, falar desse tema com isenção de ânimo é quase impossível. Trago n'alma as cicatrizes de uma tragédia que quase apagou da face da terra um povo milenar, o povo das minhas raízes.

Por Aharon Sapsezian*

Cresci aos pés de minha avó que foi testemunha ocular do Genocídio de 1915. Ela nos falava, entre soluços, de quando a soldadesca turca invadiu sua casa em Marash e, às coronhadas, levou embora seus quatro filhos. Anos depois, reencontrou um deles, que viria a ser meu pai. Os outros três desapareceram para sempre. Seu ódio pelos turcos era visceral e implacável. Encarnava todo o fel da turcofobia própria da sua geração. Quando lhe dizíamos “vovó, o Evangelho nos ensina que devemos perdoar até aos nossos inimigos”, ela respondia: “aos inimigos sim, mas aos turcos jamais!”.

Animosidades antigas



As animosidades entre armênios e turcos vêm de longa data, desde o século 16 quando os turcos otomanos invadiram e ocuparam a Anatólia oriental. Essa porção da Ásia Menor sempre foi terra histórica da antiga nação armênia. Desde há muito os armênios criaram aí uma civilização, construíram cidades, plantaram vinhas, ergueram igrejas e mosteiros, prosperaram e viveram felizes. Mas tudo mudou sob jugo do ocupante.

Como outras nações no Império Otomano, os armênios foram reduzidos à condição de millet, ou seja, uma comunidade étnico-religiosa, autorizada a gerir seus afazeres internos, mas submissa ao califado de Constantinopla. E, sobretudo, obrigada a pagar pesados impostos.

Foi uma longa era de coabitação forçada entre turcos e armênios. Por vezes pacífica, essa coabitação era quase sempre tensa e de mútua desconfiança. Os camponeses armênios eram frequentemente terrorizados por bandos armados que pilhavam seus bens e violentavam suas mulheres e filhas. E as autoridades turcas prometiam punir os criminosos; prometiam, mas nada faziam.

As coisas pioraram a partir de fins do século 19 quando o vasto Império Otomano dava sinais de esgotamento e declinava a olhos vistos. A corrupção e os desacertos dos governantes aceleravam a degringolada. Movimentos independentistas eclodiam desde os Bálcãs até a Anatólia. Búlgaros, macedônios, gregos e armênios reclamavam suas terras ancestrais. E as potências ocidentais já faziam planos de repartição dos territórios do império falido.

Os armênios incomodavam



Constantinopla reagia como uma fera acuada: rugia de ódio e usava as garras contra qualquer veleidade de independência dos súditos. Ainda assim, as nações balcânicas conseguiram livrar-se do jugo opressor. Mas a sorte dos armênios foi outra. O partido ultranacionalista do Jovens Turcos, que se instalara no poder em 1908, havia decidido salvaguardar, custasse o que custasse, a posse da Anatólia oriental. E já planejava criar um novo império sobre as ruínas daquele que estava ruindo. Mas, desta vez, um império panturco, que abrangeria as nações turcófonas do oriente médio e da Ásia central, passando pelo Azerbaijão. Um império só de povos turcos, etnicamente “purificado”. Os armênios eram um obstáculo à realização desse projeto; um espinho na carne que devia ser arrancado de vez!

A Grande Guerra de 1914-1918 foi a ocasião ideal para a perpetração da “solução final” do problema armênio. Quem hoje não conhece a tragédia que se abateu sobre os armênios em 1915? Ainda assim, os descendentes daqueles armênios não se cansam de repeti-la, de clamá-la aos quatro ventos. Tanto é que toda vez que se fala dos armênios, a associação é feita com a hecatombe que os dizimou. Se a repetimos aqui, em poucas linhas, é para refrescar a memória.

Enquanto o mundo estava às voltas com a maior conflagração militar de todos os tempos, os Jovens Turcos, sob o manto da chamada Organização Especial, levaram a cabo seu sinistro projeto. Ao estrondo ensurdecedor das bombas que explodiam por toda a Europa, uma operação macabra foi executada com premeditada precisão. E uma nação inteira foi assim, em poucos meses, varrida de suas terras ancestrais e sumariamente sacrificada.

Restaram os poucos sobreviventes, que se espalharam mundo afora em busca de abrigo. Estes e seus descendentes de hoje são os que denunciam o crime hediondo de que foram vítimas seus pais. Estes são os que hoje clamam por justiça. Estes constituem a “diáspora armênia” que reage com incontida emoção a qualquer tentativa de reconciliação com a Turquia.

Números não expressam um drama humano



Para eles, o crime de que acusam a Turquia não é, como esta pretende, mera questão de números. Que a Turquia fale em “300 mil”, ou que o escritor turco, Prêmio Nobel de Literatura, Orhan Pamuk prefira dizer “um milhão”, e que os armênios retruquem categoricamente com “um milhão e meio”, não é o que importa.

Números não servem para expressar um drama humano. A dor de uma nação não é coisa quantificável. O importante é que se reconheça a monstruosa natureza do crime; e que se faça justiça. A palavra “genocídio” não existia ao tempo dos fatos aqui mencionados. Ela foi criada em 1944 pelo jurista Raphael Lemkin para caracterizar a shoah dos judeus. E se os armênios de hoje se servem dela e lutam pelo seu reconhecimento universal, é porque ela descreve bem a tragédia do seu povo. Que ninguém acuse os armênios de serem obcecados pela palavra “genocídio”. Para que haja justiça internacional é necessário dizer as coisas como são, sem falseá-las, sem maquiá-las, sem banalizá-las.

A diáspora armênia, ou seja, os cerca de quatro milhões de armênios descendentes dos sobreviventes de 1915, são os que hoje acompanham com apreensão as tentativas de normalização armeno-turca promovidas pelos governantes da República da Armênia.

Quando os Protocolos sobre essa normalização foram divulgados em 21 de agosto, eles os leram atentamente, procurando interpretar cada palavra neles utilizada. E constataram que não havia nenhuma referência ao genocídio, e que, ao contrário, falava-se em normalização “sem precondições”.

Não surpreende que esse “sem precondições” tenha sido interpretado como “renúncia” do reconhecimento do genocídio. E não deve surpreender tampouco que um clamor quase unânime tenha ressoado por toda a diáspora exigindo dos governantes que aqueles documentos sejam revisados, reescritos, ou simplesmente repudiados. Fato sem precedente: pela primeira vez essa diáspora, dispersa pelos quatro cantos do planeta, se empolgava como um todo por uma questão de política externa da República da Armênia. Pela primeira vez ela fazia ouvir sua voz em uníssono para contestar e interpelar os dirigentes da Armênia independente.

Clamor emocional


Até no Brasil, onde os cerca de12 mil brasarmênios constituem uma das menores células da diáspora, houve uma imediata tomada de consciência coletiva em torno da candente questão. Um “fórum de debates” foi criado em São Paulo e líderes comunitários, intelectuais e chefes religiosos fizeram questão de exprimir-se a respeito.

O clamor emocional da diáspora armênia deve ter pegado de surpresa o próprio Presidente Serge Sarkissian que se sentiu no dever de empreender um périplo pelas principais comunidades dessa diáspora para “explicar os Protocolos” e tentar ganhar sua adesão a eles. Não convenceu muita gente! Ao contrário, quando pediu que os armênios da diáspora fossem mais racionais e menos emotivos ao lerem os Protocolos, não percebeu que estava pedindo o impossível.

Essa diáspora jamais poderia fazer abstração da carga emocional que acompanhava uma eventual reconciliação com o algoz de seus pais. Não obstante a opinião da diáspora, esses Protocolos, sem nenhuma mudança em sua redação, foram solenemente assinados pelos ministros do exterior dos dois países, em cerimônia realizada em Zurique, na presença de altos representantes estrangeiros. A diáspora não ocultou sua imensa decepção e reafirmou sua determinação de repudiar aqueles documentos e tudo fazer para que a próxima etapa do processo, a saber, sua ratificação pelos parlamentos nacionais dos dois países, não se concretize.

Durante os debates sobre a normalização travados nestas últimas semanas, outra questão paralela à do reconhecimento do genocídio veio à baila: a das suas implicações no tocante às reivindicações territoriais dos armênios.

A palavra “genocídio” é hoje um termo técnico, utilizado no vocabulário da ONU para caracterizar a imprescritibilidade de um crime contra a humanidade. Um país que perpetra um genocídio é, para sempre, culpado e não pode eximir-se de suas responsabilidades, inclusive a de fazer reparações materiais e territoriais pelo crime perpetrado. Os Protocolos em discussão não fazem a mínima alusão a isso e, ao contrário, frisam o dever do respeito mútuo das fronteiras entre os dois países. Ora, os armênios da diáspora são aqueles cujos pais foram massacrados e varridos de suas terras históricas da Anatólia.

Reivindicações territoriais


Eles guardam indelével na memória o célebre Tratado de Sevres, de 1920, assinado pelas potências ocidentais e pela Turquia, no qual os massacres de 1915 foram um dos temas principais. Esse Tratado estipula com todas as letras que cerca de 52.000 km2 (mais de dez vezes o território da atual República da Armênia) das antigas terras armênias da Anatólia devem reverter aos armênios para aí se implantar uma Armênia Independente. Esse Tratado foi repudiado por Kemal Ata Turk, o novo senhor da Turquia, proclamador do princípio “a Turquia para os turcos”. Mas, jamais esquecido ou renunciado pelos armênios, mormente os da diáspora, herdeiros diretos dessa Armênia sacrificada.

Para os quatro milhões de armênios dessa diáspora, o reconhecimento do genocídio de 1915 e suas implicações de reparação territorial não podem ser escamoteados em qualquer acordo de normalização que a Armênia venha a fazer com a Turquia. Que os governantes da Armênia tenham como prioridade vital a abertura das fronteiras com seu vizinho, é compreensível e legítimo. Mas que isso se faça a expensas da justiça entre os povos e dos direitos inalienáveis e perenes da nação armênia, jamais.

A diáspora sabe que a concretização desses direitos é um sonho remoto; que a Turquia, potência regional e aliada estratégica dos EUA, não cederá à pressão de uma pequenina Armênia para reconhecer o genocídio, e que o Tratado de Sevres, como tantos outros tratados solenemente firmados no passado, não será reabilitado porque não corresponde mais aos interesses dos signatários. Apesar de todas essas desvantagens e fatores adversos, a tenaz diáspora armênia reafirma que prosseguirá a luta pelo direito da nação. Por que essa teimosa “irracionalidade”? Porque o coração tem razões que a razão desconhece!

Tudo indica que o acalorado debate intra-armênio sobre essa questão continuará. E podemos antever o quão longa será a marcha da difícil reconciliação entre armênios e turcos. Parece até que a síndrome anti-turca da minha avó continua reverberando em nossos dias!

*Aharon Sapsezian, teólogo e autor
Commugny, VD
21 de outubro de 2009

O primeiro protocolo: define o princípio do restabelecimento das relações diplomáticas e suas consequências: o respeito da integridade territorial e reconhecimento das fronteiras atuais.

O segundo protocolo: trata do desenvolvimento econômico, técnico, cultural e histórico das relações entre os dois países. Em particular, a questão da abertura da fronteira turco-armênia e o estabelecimento de uma comissão de especialistas para estudar o desaparecimento(genocício) de armênios da Anatólia em 1915.

Insegurança: o primeiro-ministro turco repetiu que não abriria as fronteiras enquanto o conflito do Nagorno Karabakh não for resolvido. Pressões armênia tentam convencer o presidente Serge Sargsian a adicionar uma cláusula de rescisão aos protocolos, que obrigaria a Turquia a abrir a fronteira no prazo de dois meses e meio após a assinatura em Zurique em 10 de outubro.

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