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A suíça que fugiu dos nazistas e mudou o fotojornalismo brasileiro

Praça da Sé, São Paulo, 1940.
Praça da Sé, São Paulo, 1940. Instituto Moreira Salles

Hildegard Rosenthal, que fugiu da Europa no fim dos anos 1930, tornou‑se pioneira do fotojornalismo na América Latina ao documentar o dinamismo urbano de uma São Paulo em plena transformação. Seu trabalho continua a inspirar fotógrafos brasileiros.

Um menino sorridente, usando um boné e roupas simples, segura um jornal com uma manchete que capturava o medo e a tensão de uma Europa em guerra. A fotografia mostra um jovem vendedor de jornais, apresentando um exemplar com a manchete em português: “20 divisões alemãs na fronteira da Suíça”.

O contraste entre a inocência do menino e a gravidade das notícias ilustra o clima de incerteza dos primeiros dias da Segunda Guerra Mundial – quando a neutralidade suíça era testada pelos movimentos militares nazistas que impactavam o mundo todo.

Essa foto foi tirada em 1939 por Hildegard Rosenthal, suíça de nascimento, em São Paulo, a maior metrópole brasileira. Ela havia emigrado para o país dois anos antes, para escapar da perseguição nazista. 

A fotografia de Rosenthal capturava a transformação social do Brasil através de um estilo moderno e de influência europeia, unindo arte e jornalismo. Como fotojornalista pioneira, ela transpôs perspectivas únicas e intimistas para o cenário brasileiro. Hoje, é celebrada como um dos primeiros e mais influentes nomes do fotojornalismo na América Latina. 

Vendedor de jornal
Vendedor de jornal anunciando uma “invasão iminente da Suíça pelas tropas alemãs” no início da Segunda Guerra Mundial, São Paulo, 1939. Instituto Moreira Salles

Com sua câmera de pequeno formato, Rosenthal capturou com rapidez uma São Paulo em transformação. Suas imagens de trabalhadores, cafés, canteiros de obras e mulheres em movimento retratavam um país ávido por modernidade, mas ainda sobrecarregado por traumas profundamente enraizados, como a grande desigualdade social. Por trás de suas lentes, Rosenthal carregava uma perspectiva moldada pela cultura visual europeia, introduzindo uma nova linguagem fotográfica no Brasil com a ajuda da tecnologia emergente.

Passada a guerra que levou Rosenthal à América do Sul, o conjunto de sua obra se apresenta como um contraponto marcante às narrativas de exílio e trauma. Ela conta uma história de criação e reinvenção. Sua vida simboliza a imigração por meio da resistência silenciosa e da contribuição artística e, nos 80 anos transcorridos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, contribuiu para moldar a memória coletiva da Suíça muito além das fronteiras do país.

Brasil: lugar seguro

Rosenthal nasceu em Zurique em 1913. Ainda criança, mudou-se para a Alemanha, onde desenvolveu seu interesse pela fotografia. Ela viveu como “au pair” na França e, na década de 1930, começou a fotografar enquanto trabalhava como babá e estudava Pedagogia.

A ascensão do nazismo na Europa, no entanto, era motivo de preocupação. Walther Rosenthal, então noivo de Hildegard e de origem judaica, deixou a Europa e seguiu para o Brasil em 1936, a fim de escapar da perseguição crescente.

Mulher trabalhando em um laboratório fotográfico
Hildegard Rosenthal trabalhando em seu ampliador fotográfico, ao lado de uma bandeja de café, 1942. Instituto Moreira Salles

O Brasil tornou-se a única opção para Hildegard, que não podia voltar para a Suíça com seu noivo, pois o país não aceitava refugiados judeus. “Durante a Segunda Guerra Mundial, a Suíça esteve, na maior parte do tempo, cercada pelas potências do Eixo. Tal situação, agravada pela intensidade do conflito, tornava a emigração impraticável. Ou seja, a Suíça também fechava suas fronteiras para os refugiados judeus”, afirma Michael Schmitz, pesquisador do Centro de Estudos de História Internacional e Globalização Política da Universidade de Lausanne.

Hildegard atravessou o oceano para se juntar a Walther, com a guerra iminente. No entanto, observa Schmitz, tendo em vista a possibilidade de emigrar para a América Latina, o Brasil não parecia particularmente atraente para os europeus que fugiam do conflito devido às medidas governamentais que impunham obstáculos.

“Os Estados Unidos e o Brasil tinham cotas de imigração. O regime de Getúlio Vargas, no Brasil, estava mais interessado em trabalhadores inexperientes, que pudessem atuar na agricultura, do que em trabalhadores para a indústria ou o comércio. E a turbulência política provavelmente reduzia ainda mais o interesse pelo Brasil”, afirma Schmitz.

Engraxate
Engraxate, sem data. Instituto Moreira Salles

Os desafios não terminaram com a chegada no país. Adaptar-se à sociedade brasileira e a seu mercado de trabalho, dominado por homens, foi complexo naquele período, em que o país se encontrava na transição de uma economia agrária para a industrialização, com milhares de homens e mulheres deixando o campo e se mudando para as cidades.

“As mulheres que ingressaram na profissão de fotógrafa na primeira metade do século 20 enfrentavam um duplo desafio: entrar em um campo que ainda estava em desenvolvimento e, ao mesmo tempo, enfrentar as barreiras impostas pelo patriarcado”, diz Lúcia Lima, da Universidade de São Paulo (USP), estudiosa da biografia de Rosenthal.

Embora nunca tenha falado publicamente sobre as dificuldades que enfrentou ao chegar no Brasil, o trabalho de Rosenthal deixou vestígios desses desafios. Em um depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som (MIS, São Paulo), em 1981, Rosenthal deixou clara a essência de sua fotografia: “Fotografia sem pessoas não me interessa”.

Essa frase revela mais do que uma mera preferência estética. A afirmação reflete uma estreita conexão com o cotidiano de um Brasil urbano em transformação – um país que ela escolheu retratar não através de seus monumentos, mas por meio da vida anônima que pulsava nas ruas. Essa escolha exigiu um processo de adaptação, dadas as condições de trabalho distantes do padrão europeu e o desafio de propor uma nova linguagem fotográfica em um ambiente ainda pouco acostumado à experimentação.

Estádio esportivo no passado
Algumas coisas permanecem as mesmas, como o Estádio do Pacaembu, fotografado durante sua inauguração em 1940. O estádio foi fortemente inspirado na arquitetura Art Déco do Estádio Olímpico de Berlim, que sediou as Olimpíadas de 1936. Instituto Moreira Salles

Leica e estilo

Hildegard Rosenthal chegou ao Brasil com formação em fotografia adquirida na Alemanha e na França. Inicialmente autodidata, ela mais tarde estudou técnicas de laboratório na França e teve aulas com o fotógrafo alemão Paul Wolff quando esteve na Alemanha. Wolff ensinava seus alunos e suas alunas a treinar o olhar e a prestar muita atenção na luz. Para ele, o ângulo de visão era decisivo para o sucesso na fotografia, e a câmera Leica, com sua mobilidade, era a ferramenta ideal para explorá-lo.

Colagem
Veia modernista: Jornaleiro, fotomontagem, 1940. Instituto Moreira Salles

“Entusiasta da Leica, Wolff foi muito influente no cenário alemão da década de 1930 e ajudou a formar toda uma geração de fotógrafos. Ele explorava as possibilidades das câmeras de pequeno formato para desenvolver uma linguagem visual moderna”, afirma Helouise Costa, professora da Universidade de São Paulo (USP).

Costa observa que essas câmeras eram bem mais leves se comparadas aos modelos anteriores, que exigiam tripés, permitindo maior agilidade na fotografia de rua. Elas facilitaram a produção de imagens nítidas e espontâneas e o uso de ângulos incomuns e fortes contrastes de luz. “Essas técnicas faziam parte do repertório da chamada Nova Fotografia, que surgiu dos movimentos de vanguarda do início do século 20”, completa.

Com uma carta de recomendação para Lasar Segall, influente pintor lituano radicado no Brasil, Rosenthal encontrou trabalho rapidamente. Ela começou em um estúdio fotográfico antes de passar a atuar como fotojornalista para veículos importantes de comunicação, como Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e revistas como A cigarra, Sombra e Rio.

Sociedade leitora

As lentes de Rosenthal capturaram a transformação e a modernização de uma São Paulo que, nas décadas de 1930 e 1940, buscava inspiração na Europa, mas ainda carregava o peso do machismo e da pobreza.

Essa influência podia ser vista nos projetos de revitalização urbana e na arquitetura do centro da cidade, moldada pelas aspirações da elite local. No entanto, suas fotografias revelam algo mais profundo: um ciclo constante de destruição e reconstrução que viria a definir a cidade.

“Hildegard dedicou-se intensamente a fotografar o ambiente urbano, seja em trabalhos para a imprensa ou em suas explorações da fotografia moderna. Suas imagens registram avenidas ladeadas por edifícios, bem como o movimento das multidões, criando perspectivas em consonância com outros fotógrafos modernos, como André Kertész e Germaine Krull em Paris, ou Berenice Abbott em Nova York”, diz Lima.

Mulher e um homem conversando e um carro
O charme indiscreto da burguesia paulista: Motorista de Táxi, 1939. Instituto Moreira Salles

O trabalho de Hildegard Rosenthal aborda a estética das metrópoles modernas, ao mesmo tempo em que captura as particularidades de uma cidade marcada pela desigualdade de classe e gênero. Ser mulher deu a ela acesso a espaços e experiências que seus colegas homens raramente documentavam, oferecendo perspectivas únicas sobre a presença feminina na paisagem urbana.

“Há uma relação direta com as pessoas, com o registro da vida urbana e dos indivíduos, mas a maneira como ela constrói essa abordagem, a partir de diferentes pontos de vista, mostra claramente uma influência estética da nova era da fotografia. É uma marca registrada das décadas de 1920 e 1930 na Europa que se mantém presente em seu trabalho”, analisa Sergio Burgi, curador e coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles.

Legado duradouro

A perspectiva europeia que Rosenthal transpôs para a América Latina deixou um legado pioneiro. Ela faleceu em 1990, mas sua influência permanece no fotojornalismo brasileiro, especialmente no desenvolvimento de uma linguagem visual distinta que inspirou gerações.

“Seu trabalho chama a atenção no contexto daquele período justamente por sua elaboração estética, que, embora enraizada nos debates contemporâneos, vai muito além de um exercício formal de linguagem. É algo mais profundo, em diálogo com o tempo em que foi produzido”, afirma Burgi.

Duas meninas japonesas
Meninas comendo sorvete na Liberdade, bairro japonês, 1940. São Paulo é a cidade com a maior população japonesa e descendente de japoneses fora do Japão. Instituto Moreira Salles

“Essa construção de uma visão da cidade revela algo profundo sobre São Paulo. Costuma-se dizer que o Brasil não é para amadores – e São Paulo menos ainda. É um lugar complexo, em constante transformação. Hildegard Rosenthal fez parte do processo de aproximação e interpretação de uma cidade em intensa metamorfose”, acrescenta Burgi.

Para Lima, as fotografias de Rosenthal combinam a linguagem moderna da fotografia com formas de representação e temas negligenciados por seus contemporâneos homens. 

“As noções de modernidade não são universais, como muitas vezes se supõe. As fotografias de Hildegard Rosenthal mostram a diversidade de experiências, espaços e relações que moldaram a sociedade moderna na primeira metade do século 20. Seu legado é parte da contribuição significativa dos imigrantes para a produção fotográfica e a cultura visual latino-americana. Seu trabalho revela um olhar sobre as experiências das mulheres na Modernidade e acrescenta novas camadas à nossa compreensão da fotografia moderna”, conclui Lima.

Edição: Virginie Mangin e Eduardo Simantob/gw

Adaptação: Soraia Vilela

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