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Cineasta suíço transforma campo de refugiados em uma Babel de intenções

Woman walks back from riot
Isabelle Carré interpreta uma diplomata encarregada de organizar um encontro entre Macron e Merkel em um campo de refugiados na Sicília. BANDITA-Simona-Pampallona

Lionel Baier questiona o pano de fundo indecoroso da política em sua nova comédia. swissinfo.ch encontrou o cineasta suíço em Cannes e questinou seu trabalho e o papel de um suíço na Europa. 

Baier, celebrou a estreia mundial de seu novo longa-metragem “La dérive des continents (au sud)” (n.r.: A deriva dos continentes (no Sul)” em Cannes, na França. A sátira social nos põe em frente de um espelho desconfortável: a chanceler alemã e o presidente francês deverão visitar um campo de refugiados na Sicília. Para isso, contudo, o campo tem que ser preparado em conformidade, porque, tal como está agora, não é suficientemente impressionante – precisa de mais sujeira, mais miséria.

O roteiro denso e inteligente é apoiado por um elenco versátil e confiante de atores e atrizes. Isso inclui Ursina Lardi, nascida no cantão dos Grisões, que assume o papel da resoluta mulher de relações públicas da chanceler alemã. Apesar da seriedade do tema, o filme nunca perde sua leveza; sempre encontra um caminho para imagens poéticas, quase como um conto de fadas. 

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swissinfo.ch: Onde o senhor filmou? Em que baseou a sua representação do campo de refugiados? 

Lionel Baier: Na Itália, muitos campos estão alojados em antigas instalações militares, em espaços com arquitetura fascista ou em antigas vilas de férias. Filmamos em uma base militar americana abandonada, que transformamos um pouco.

Esses campos são muito diferentes dos que existem na Grécia, por exemplo. Estão mais organizados e em muito melhores condições, não há barracas e tendas simples.

Nosso campo no filme não deve ter esse aspecto. Mesmo correndo o risco de frustrar as expectativas.  Aconteceu comigo mesmo! Gostaríamos de ver uma imagem de miséria, pois há algo de tranquilizador nisso. Estamos acostumados a uma imagem de miséria. E isso confirma-nos em nossas certezas e opiniões.  

swissinfo.ch: Na Itália, pode acontecer que nos aproximemos inesperadamente de um canteiro de obras, que o espaço público não esteja tão limpo ou que encontremos algumas dessas palavras de ordem insultantes e racistas pintadas com spray nas paredes. Quanto disso o senhor teve realmente de encenar?  

L.B.: Colocamos os slogans onde os queríamos. Mas eles existem, isso é certo. Vejo-os também na França, na Suíça, em todos os lugares.

Penso sempre na agressão que deve ser para alguém que vem de outro país, por qualquer motivo. Como ela pode ser chocante para alguém que recolhe lixo em nosso país e faz um trabalho que a população local não quer fazer e depois ainda é insultado.

Isso é um ato de violência inacreditável. Cada vez que vejo isso, penso nessas pessoas e é indigno, uma falta de dignidade que é insuportável para mim. 

swissinfo.ch: De onde veio a ideia do meteorito com o qual o protagonista é confrontado no filme?

L.B.: Há esta expressão em francês: “As estrelas, o céu, caem sobre a minha cabeça”, para dizer que o mundo está desmoronando.

Quando contemplo a bandeira europeia, que eu amo, e na qual acredito, penso que as doze estrelas são um símbolo de perfeição. Embora eu sinta orgulho da União Europeia, há muito tempo que não tem sido perfeita, nunca o foi.

Isso não significa que se deva desistir. Mas há que perceber que essas estrelas estão prestes a cair, e esse céu pode desmoronar sobre nossas cabeças. Estamos perdendo estrelas ao longo do caminho, perdemos uma com a Grã-Bretanha. Os sinais têm de ser levados a sério.

Three men talk a round a table in a refugee camp
Baier gosta de trabalhar com atores que falam outros idiomas além de sua língua materna. Bandita – Losange

swissinfo.ch: No seu filme é perceptível que o senhor mistura uma variedade de línguas e culturas, o elenco vem de Québec, Senegal, Suíça – por que essa polifonia de sotaques?

L.B.: Nos filmes franceses, vemos sempre os mesmos atores. Gosto de escolher atores e atrizes que não são francófonos e vêm de outras culturas. Até o ator que interpreta o francês no filme é de Québec. Muitas vezes falamos uma língua que não é a nossa materna. Ou misturamos várias ao mesmo tempo. 

Adoro quando as pessoas falam francês com sotaque. Mesmo que se cometa erros, é um sinal de atenção especial e cortesia para com outra cultura. Levou-se tempo para aprender a língua de outra pessoa. Por meio de diferentes línguas, o filme diz algo essencial sobre a Europa. No filme, cada personagem tem uma realidade diferente devido à sua origem. Os italianos, os franceses, os alemães e os suíços têm todos uma relação diferente com os migrantes, e eu queria mostrar isso.

Portrait of Lionel Baier
Lionel Baier: “Sim, sou um cineasta suíço, mas isso não significa nada”. Keystone / Urs Flueeler

Tenho muito orgulho de ser europeu porque é uma mistura de muitas coisas diferentes. Do mesmo modo, alegro-me de ser suíço, porque não há uma cultura suíça, mas muitas.

Muitas vezes acho engraçado que as pessoas me apresentem como um cineasta suíço. Isso é verdade, mas também não significa nada. Porque quando encontro meus colegas na Suíça de língua alemã, vejo que não temos muito em comum. E sinto-me bastante contente com isso. Acho muito enriquecedor. Porque digo a mim mesmo que, embora pertençamos à mesma família cinematográfica, não nos conhecemos inteiramente e, portanto, nos aborrecemos uns aos outros. 

swissinfo.ch: O senhor mostra quão importante é a língua para a formação da identidade. Um personagem do filme, um imigrante senegalês, fala um excelente francês. Os franceses, que se definem a si próprios pela sua língua, sentem-se ameaçado por isso? 

L.B.: Muitas vezes, a relação que nós, francófonos, temos com a língua é incrivelmente autoritária. Corrigimos frequentemente as pessoas quando elas falam, enquanto os falantes de inglês, por exemplo, quase nunca o fazem, apesar de falarmos com o nosso terrível acento francês. Nós, por outro lado, somos muito pedantes. Além disso, falamos com frequência um francês muito ruim.

Isso é particularmente perceptível em comparação com os quebequenses ou com as pessoas oriundas da África, pois geralmente falam francês muito bem. Olham frequentemente para nós de maneira questionadora porque cometemos erros. Isso me diverte. Adama Diop é um ator de teatro senegalês e fala um francês perfeito. É bastante intimidante devido à precisão das palavras que ele usa e à beleza da linguagem.

swissinfo.ch: A personagem principal do filme é francesa, que vive na Itália há anos. Em uma cena, ela espontaneamente faz um tour pela cidade para um grupo de turistas chineses. Ela fala com uma paixão inebriante sobre um país no qual é considerada uma estrangeira. Até certo ponto, o senhor também adota com o seu filme uma perspectiva semelhante a de uma pessoa de fora. 

L.B.: Admiro as pessoas que vivem em outro país e se esforçam para aprender tudo sobre ele. Como suíço, muitas vezes fico fascinado com a forma como são julgados os nossos compatriotas de origem estrangeira que querem tornar-se suíços.

É de se perguntar se eles têm o nível certo, a fim de provar em um exame que conhecem a Suíça. Mas nós, suíços por nascimento, não seríamos capazes de responder às perguntas.

Muito frequentemente, as pessoas que se candidatam a pertencer a um país conhecem-no melhor do que os habitantes locais. Eles sabem-no melhor porque o querem realmente. Meu passaporte foi-me dado por minha família, não tenho, portanto, nenhum mérito nisso. As pessoas que se candidatam a ele dedicam-lhe um grande esforço. Precisamente como suíço falar sobre a Europa e a União Europeia, soa semelhante. 

swissinfo.ch: “La dérive des continents (au sud)” é o terceiro filme de uma série de quatro partes….

L.B.: O quarto filme será ambientado na Escócia e ocupar-se-á do tema se a Escócia deve ou não sair da União Europeia.

Os quatro filmes irão abarcar um total de vinte anos de história da Europa. 2005/2006 foi uma época de grande esperança quando a Polônia aderiu à UE, 2012 assistiu a crise quando a Europa ameaçou explodir, em 2022 temos a crise migratória e em 2026 um estado pode ter que sair de um outro a fim de se tornar independente – ou não. Veremos.

Adaptação: Karleno Bocarro

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