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“O festival está certo em privilegiar a qualidade”

A chuva diária não espantava os cinéfilos durante as apresentações na Grande Piazza. Keystone

As salas foram fechadas e os prêmios entregues: mais uma edição do Festival Internacional de Cinema de Locarno fecha suas portas com um balanço diverso.

Uns criticam o evento pela ausência de estrelas e outros acham que não existe um lugar melhor no mundo para vivenciar o “verdadeiro” cinema. Mas afinal, quem se preocupa com a discussão tendo a sala de exibição mais bonita do mundo?

O tempo é imprevisível em Locarno. Nessa bela cidade da Suíça italiana, o sol escaldante pode dar lugar, em questão de minutos, a uma tempestade torrencial digna dos trópicos. Logo depois, as nuvens se vão e o céu fica como de brigadeiro. As palmeiras espalhadas na cidade até tentam disfarçar, mas as enormes montanhas no horizonte indicam que estamos na base dos Alpes.

Na Piazza Grande, o ponto nevrálgico do Festival Internacional de Cinema de Locarno, o público pagava entre 22 e 32 francos (US$ 20 e 30 dólares) para assistir de um a dois filmes ao ar livre, no que – graças à combinação de prédios iluminados por holofotes coloridos e o gigantesco telão, auto-intitulado o maior do mundo – fazia seguramente da praça a sala de cinema mais bonita do planeta.

Os filmes que foram exibidos nesse local exclusivo também tinham o seu valor. Dos 18 longas-metragens exibidos, que não participavam da competição internacional, nove eram estréias mundiais. A boa qualidade dos filmes dificultou a escolha, mas ela terminou caindo no filme britânico “Son of Rambow” (Filhos do Rambow), que recebeu o prêmio do público, deixando a impressão de ter sido o ganhador secreto do festival.

Um festival charmoso

Mas o charme de Locarno é que a pequena cidade esconde muitas surpresas. A primeira delas é que ninguém podia prever se a noite terminaria em banho – isso ocorreu em várias delas. De qualquer maneira, os verdadeiros cinéfilos não se incomodavam com a chuva. Mesmo quando a maioria dos espectadores já havia abandonado as suas cadeiras, eles continuavam sentados, com capa e guarda-chuva, limpando com um pano a água que escorria do rosto. Quando o tempo estava bom, a Piazza Grande se enchia. Eram até oito mil pessoas.

Outra surpresa agradável era ver o público aplaudindo com entusiasmo os beijos dados na telona durante as películas românticas ou no encerramento de filmes, uma forma que o público encontrou de homenagear o bom cinema. Para um cinéfilo como eu, a situação até lembrava “Cinema Paradiso”, inesquecível filme de homenagem ao cinema do diretor italiano Giuseppe Tornatore.

Como ocorre em cada verão, desde 1946, o Festival de Locarno costuma reunir na pequena cidade de quinze mil habitantes milhares de profissionais e amantes do cinema de todas as partes do mundo. O símbolo do evento é o Leopardo, cujas cores decoram vitrines de lojas e até mesmo o cabelo de alguns garçons nos restaurantes locais. Também os cineastas que apresentam seus longas e curtas-metragens na mostra competitiva estão atrás de um pequeno leopardo, na verdade um troféu dourado de trinta centímetros, o “Oscar” suíço.

Pode ser que alguns diretores torçam o nariz para Locarno. Afinal, o objetivo não é ganhar um prêmio em Cannes, Berlim ou Veneza? Mas poucos sabem que grandes cineastas como Roberto Rossellini ou Wim Wenders festejaram sucessos no festival suíço quando ainda eram realizadores completamente anônimos.

Glamour ou qualidade?

Obviamente que Locarno também apresenta alguns males dos grandes eventos culturais. Durante o festival, os jornais publicavam detalhes da briga feia entre Marco Solari, presidente do festival, e Nicolas Bideau, chefe do setor “cinema” no Ministério da Cultura suíço. “Eu acho que os filmes da programação de 2008 são pouco acompanhados pelas suas estrelas para lhes personificar”, declarou Bideau nos jornais, no que foi logo rebatido por Solari, explicando ser Locarno “um festival do cinema de autor, das descobertas”.

As vaidades pessoais não importam. Locarno continuará tendo seu espaço garantido no rol dos grandes festivais de cinema, como defende o cineasta brasileiro Cao Guimarães, que participou na 61° edição como membro do júri na seção “Cineastas do presente”.

“Amo os festivais que primam pela qualidade e não pelo glamour. Acho muito chato e desnecessário esse apelo, apesar de saber que esse culto do estrelado faz parte da indústria e da idéia de venda dos filmes. O festival de Locarno está certo em privilegiar a qualidade dos filmes e em buscar cinematografias novas no mundo inteiro e trazê-las para cá”, disse.

As opiniões divergem, mas o fato é que, além do parco rol de celebridades, muitas das festas exigiam “badges” especiais ou eram expressamente só abertas aos convidados VIPs. Num desses rega-bofes, organizado pela Organização do Cinema Suíço, havia pessoas de todos os tipos, a não ser diretores suíços famosos como Marc Forster, que dirigiu o último filme de James Bond, ou a atriz Sabine Timoteo, que quase só trabalha na Alemanha.

Estrelas para tocar

Mas Locarno teve suas personalidades, mesmo daquelas que costumam deixar a marca das suas mãos na famosa avenida de Hollywood. Ao visitar o festival, elas se aproveitavam do caráter reservado dos suíços caminhando incólumes, quase sendo ignoradas pela população local. E assim, para quem gosta do cinema alternativo, a cidade oferece situações únicas. A condição é saber quem é estrela.

Um deles era o DJ Paul Kalkbrenner, um artista muito conhecido no meio da música eletrônica. O alemão foi o principal ator do excelente filme “Berlin Calling”, no qual também fez a trilha sonora. Após a apresentação do longa-metragem no Piazza, ele convidou o público a dançar. Centenas se levantaram das suas cadeiras e transformaram o local em uma enorme pista de dança.

Outra dessas “celebridades” que podiam ser vistas e vividas em Locarno, algo que raramente ocorre nos festivais de massa, era o diretor, produtor, chefe de festival (Turin) e ator italiano Nanni Moretti. Ele havia chegado na quarta-feira (13 de agosto), apesar de ter sido homenageado com uma grande retrospectiva do seu trabalho, e logo se apressou em ir para uma pequena sala de projeção que estava apresentando seus primeiros curtas. Lá ele apresentou desculpas ao público. “Terminei ontem à noite um pequeno filme de 18 minutos, feito especialmente para ser estreado em Locarno. Ele se chama ‘Filmquiz’ (n.r: Enigma de cinema). Não se trata de uma brincadeira, nem de um exame, apenas um pequeno jogo, onde vocês têm de adivinhar 40 títulos de filmes, onde eu conto as minhas lembranças pessoais.”

Nas coletivas de imprensa que logo se seguiram, Moretti parecia até sem graça por estar no centro das atenções. Ele lembrava a todos que “era apenas um diretor que realizou dez longas-metragens em trinta anos”. Animado, ele preferia entrar e sair das salas para conversar com todos que esbarrava a dar entrevistas a jornalistas. Algumas das noites terminaram no restaurante “Casa del Popolo”, onde ele se sentava na mesa, pedia um vinho e começava a contar ao círculo de admiradores suas histórias do cinema.

Você quer comprar um quadro?



Outra surpresa estava escondida em uma viela estreita e escura na parte antiga de Locarno, não muito distante da Piazza Grande. Nela funciona a Ammann Arts, uma pequena galeria de arte que pertence a um casal de suíços alemães, imigrados há décadas para o cantão do Tessin.

Os dois haviam organizado para o período do Festival de Locarno uma exposição única: fotos e gravuras de David Lynch, autor de filmes como “O Homem Elefante” (1980), “O Veludo Azul (1986) e “Coração Selvagem” (1990). Assim como algumas obras do famoso cineasta americano, também seu trabalho de arte era um pouco esdrúxulo. Cada uma delas estava há venda por alguns milhares de francos.

No ano passado, o casal expôs fotos de René Burri, autor dentre outros da famosa foto de Ché Guevara com o charuto na boca. Em cima de uma estante está um cartão postal do famoso suíço feito com colagens diversas. Enviado de Cuba, ele lembra aos dois que estava tendo um tempo ótimo na Ilha.

A sair de uma sessão ou outra nas pequenas salas de exibição, essas e outras histórias vividas na pequena cidade às margens do Lago Maggiore é que dão a sensação de se estar vivendo cinema. Se não é o maior, pelo menos o Festival de Locarno é o único em que todos os habitantes fazem parte da festa.

swissinfo, Alexander Thoele

Nanni Moretti (Bolzano, Itália, 18 de agosto de 1953) é um cineasta, ator e roteirista cinematográfico italiano. Cresceu em Roma e desde a adolescência cultivou suas grandes paixões, o pólo aquático e o cinema.

Suas obras inicialmente caracterizam-se por uma visão em chave irônica e sarcástica dos lugares-comuns e das problemáticas do mundo juvenil de seu tempo, para depois desembocar em uma crítica social intransigente e moralista. (Texto: Wikipédia em português)

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