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Digitalização lenta protege democracia suíça de abusos internos e externos

Talinn, laptop, mão e cartão do plano de saúde
Uma estoniana consultando seu cartão digital de saúde. Admissão em Talinn, 2018. Fabian Weiss / Laif

Um novo estudo da Universidade de Basileia mostra que uma digitalização lenta, como a da Suíça, traz vantagens para proteger a democracia contra inimigos internos e externos. Como pioneira digital, a Estônia seguiu outro caminho. Quais são os aprendizados?

A Suíça não é considerada um exemplo em digitalização. Muitas pessoas no país ficaram entre chocadas e entretidas ao saber que, no início da pandemia de coronavírus, médicas e médicos enviavam notificações ao Departamento Federal de Saúde por fax. O jornal NZZ chamou isso de uma “piada recorrente da pandemia”.

Desde então, muita coisa mudou. No entanto, a Suíça continuou sendo alvo de ironias por sua digitalização lenta em várias áreas. Alguns viam nisso as fraquezas do federalismo e da democracia direta: os processos são demorados.

No eGovernment BenchmarkLink externo da União Europeia de 2023 já se dizia: “Em muitos países europeus, a autenticação com e-ID é quase tão comum quanto o uso do passaporte físico”. Como pioneira, a Estônia introduziu a e-ID em 2002. Os eleitores votam em setembro de 2025 sobre a introdução de um documento de identidade digital.

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Foto simbólica: uma mão segurando um celular

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Mas a lentidão pode se revelar uma vantagem: “A digitalização lenta e descentralizada da Suíça pode proteger a democracia”, afirma Christian R. Ulbrich, codiretor do Centro de Pesquisa para Digitalização no Estado e na Administração (e-PIAF, na sigla em inglês), sediado na Universidade da Basileia.

Doge e Elon Musk

Na primeira metade deste ano, Elon Musk assumiu como empresário privado uma função especial no governo dos EUA. As atividades dele e de sua equipe na chamada Agência DogeLink externo deveriam identificar potenciais de economia nos gastos públicos. Em seu procedimento, eles conectaram bancos de dados governamentais existentes, mas mostraram pouca sensibilidade para o fato de que isso é delicado. Muitas cidadãs e cidadãos têm outras expectativas sobre como o Estado deve lidar com seus dados.

Foto de Elon Musk exibindo uma camiseta
Elon Musk exibindo sua camiseta “DOGE” em março de 2025. DOGE significa “Departamento de Eficiência Governamental”, mas também se refere à criptomoeda Dogecoin, da qual Musk é fã. AP Photo/Jose Luis Magana

Esse episódio aumentou, segundo Ulbrich, a conscientização de que não basta proteger a infraestrutura digital apenas contra-ataques externos, mas também contra atores internos mal-intencionados.

Digitalização compatível com a democracia

“Em muitos países temos fortes correntes populistas, que não veem o sistema democrático como algo valioso, mas sim como inimigo”, diz Ulbrich. E se estas chegarem ao poder? “Acredito que uma das principais tarefas do sistema democrático é distribuir o poder sobre muitos ombros, e garantir que não haja poder demais em apenas um”, afirma ele.

Essa preocupação também aparece na leitura da primeira parte do estudoLink externo sobre a “digitalização compatível com a democracia do Estado”, publicado recentemente pela sua equipe. Nele, a digitalização das autoridades, do governo, do parlamento e da justiça em quatro democracias liberais é comparada: Suíça, Alemanha, Reino Unido e Estônia.

Conteúdo externo

A Estônia foi incluída por ser considerada modelo: o Estado pós-soviético digitalizou 100% de seus serviços administrativos. Lá vigora o princípio do Only-once, ou seja, o de que a cidadã e o cidadão devem fornecer uma informação à administração apenas uma vez, e depois todas as instituições públicas devem poder acessá-la. Na Suíça, ainda se está longe disso.

Câmeras de reconhecimento

O e-IDLink externo é promovido na página de divulgação e-estonia à comunidade internacional como “a pedra angular de uma sociedade digital integrada”. “Nós construímos uma sociedade digital e podemos mostrar como”, saúda o site e-estonia seus visitantes. Ao mesmo tempo, parece que alguns debates dessa sociedade digital não ocorreram na Estônia – e agora precisam ser feitos retroativamente.

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Assim, a polícia – frequentemente via autoridades locais – instalou uma rede nacional de mais de 200 câmeras que reconhecem automaticamente placas de veículos. “Uma rede de câmeras desse porte…nunca foi debatida publicamente na Estônia nem na sociedade, nem no nível do Riigikogu [o parlamento estoniano]. Também não é mencionada em nenhuma lei”, escreve a plataforma ERRLink externo. No decorrer do debate político que emergiu este ano, a polícia foi instruída a usar os dados coletados apenas de forma restritivaLink externo.

No estudo realizado pela equipe de Ulbrich, a Estônia obteve o melhor resultado entre os quatro países analisados. Mas os pontos críticos são profundos: o “sistema estoniano poderia ser usado com poucas alterações para fins (antidemocráticos) e em detrimento dos cidadãos.”

Mas, “Reconhecimento” é devido à Estônia, afirma Ulbrich: o país foi pioneiro e “construiu algo realmente notável com o conhecimento e a tecnologia da época.”

Dominando o sistema

Pessoa mostrando uma carteira de identidade
Em janeiro de 2002, um cidadão estoniano mostrando seu novo cartão de identidade, com o qual ele pode assinar documentos digitalmente. Timur Nisametdinov / Keystone

Existem pontos centrais de vulnerabilidade. Como alguém com intenções duvidosas poderia dominar o sistema? Essa foi uma das questões levantadas por Ulbrich, em seu monitor.

Na Estônia, ele encontrou um grande registro central de moradoras e moradores e cidadãs e cidadãos, no qual muitas informações – endereço, pais, dados pessoais – estão reunidas. Essas informações estão ligadas a um número de identificação único, que é “quase público”, já que inclui a data de nascimento. Esse número, atribuído a cada cidadã e cidadão, está impresso em todos os documentos físicos. “Todas as autoridades também o possuem, porque é o identificador para quase tudo. E aí me pergunto: não deveríamos implementar isso nos dias de hoje de forma mais segura contra abusos?”

A espinha dorsal da digitalização estoniana é a X-Road. Esse sistema de software, regulamentações legais e princípios permite uma troca de dados segura e descentralizada pela internet. “Embora a X-Road seja descentralizada, há dois componentes nela – os Trust Services (serviços de confiança, em tradução livre) e o Operator (operador, em tradução livre). Quem controla ambos, controla todo o sistema.”

Na Estônia, existe uma consciência do problema – quase toda consulta é rastreável em um cockpit de proteção de dados. “Mas, quando olho no mapa do globoLink externo de quem compra o sistema, fica claro: países autoritários como a Arábia SauditaLink externo certamente não vão integrar proteção de dados.”

Uso de novas tecnologias

Ulbrich trabalhou por um período como consultor na PricewaterhouseCoopers. Lá, ele observou também autoridades fiscais internacionais e chama de “loucura” o que encontrou mundo afora. Por exemplo, o caso sobre a autoridade fiscal mexicana SAT – que criou discretamente um dos maiores bancos de dados biométricos do mundo. E outros casos: na França, Espanha e Itália imagens de satélite e drones são avaliadas para identificar piscinas não declaradas.

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Segundo Ulbrich, o padrão é de que novas tecnologias sejam primeiro utilizadas por serviços de inteligência e polícia. Depois, as autoridades fiscais as adotam – e a partir daí elas se espalham pelo restante do setor público.

Na Estônia, a autoridade contra lavagem de dinheiro está atualmente sendo criticadaLink externo. Ela tinha o direito de consultar os dados bancáriosLink externo de milhares de pessoas?

“O discurso mudou um pouco”, relata o cientista político estoniano Mihkel Solvak, professor na Universidade de Tartu. Antes, dizia-se que o país era uma “terra digital das maravilhas”. Mas alguns “casos proeminentes de roubo de dados” levantaram a questão de “se não estamos compartilhando demais”. As consultas de dados de Musk nos EUA também repercutiram na opinião pública estoniana, mas a preocupação mais significativa ainda é com a Rússia, o “hostil vizinho a Leste”. “Isso gerou alguma oposição à criação de novos bancos de dados e à conexão dos já existentes, com busca suportada por IA (inteligência artificial)”, explica Solvak.

Tendo em conta também que o Estado usou dados em “escala maior do que se sabia publicamente”, agora há mais vozes críticas pedindo controles mais rigorosos de proteção de dados e maior supervisão.

Uma proposta é expandir o cockpit de proteção de dados da X-Road. “Ele não está implementado em toda parte”, observa Solvak. Por um tempo, foi possível visualizar todas as consultas feitas. “Podia-se entrar em um portal estatal e ver quais informações diferentes autoridades e municípios haviam acessado e quais dados as pessoas pareciam querer saber”, explica. Na época, o cockpit de proteção de dados foi “o serviço digital mais utilizado” e estudos mostraram que isso aumentava a confiança.

Dilema da confiança

A confiança é, de acordo com Solvak, o tema central na digitalização da infraestrutura pública. “Você tem uma tecnologia que deve proteger outra tecnologia, e assim gerar confiança”, afirma. Antes havia recibos e documentos em papel. “Hoje, não se pode mais verificar os processos por conta própria.” Isso pode se expandir indefinidamente: é possível introduzir uma tecnologia que monitora a segurança de outra tecnologia, que por sua vez monitora outra…” e assim sucessivamente.

O problema básico permanece: “Tenho que simplesmente acreditar que essa tecnologia funciona a meu favor.” Solvak não vê nisso uma boa solução, mas aponta um caminho: “Incluir mais atores”.

Pessoas sentadas em cadeiras e outras à mesa
A comissão eleitoral da Estônia verificando os primeiros resultados eleitorais online nas eleições municipais de outubro de 2005. RAIGO PAJULA / AFP

Na Estônia, é possível votar online há 20 anos. “As pessoas não entendem realmente como funciona o voto online.” Mas, se os resultados eleitorais fossem verificados não apenas por uma instância, mas por várias – por exemplo, com diferentes visões de mundo – a confiança poderia aumentar. “É, em princípio, uma mudança de procedimento, não uma nova tecnologia”, e, segundo Solvak, não seria difícil de implementar.

“Impotente” se não digitalizar

Essa também é uma linha de reflexão do monitor da democracia liderado por Ulbrich: existem soluções tecnológicas que são desaconselháveis. Ele vê de forma crítica o fato de que, no Reino Unido, “todos os poderes do Estado (…) migraram muito cedo para a nuvem da Microsoft”, tornando-se dependentes de um fornecedor privado. Por outro lado, iniciativas de digitalização benéficas para a democracia, segundo o monitor, não são tecnologias novas.

Se os tribunais hospedam seus próprios dados, isso é uma proteção, afirma. Se os dados ficam distribuídos entre municípios e cantões, em vez de estarem em um banco centralizado, isso também é uma proteção. No processo de digitalização, o monitor identifica “uma leve tendência a maior centralização”, mas, no geral, a Suíça teria “o maior potencial em relação a uma digitalização compatível com a democracia”.

Ulbrich afirma que o Estado é lento, mas com razão. Diferente de empresas privadas, o Estado precisa da aceitação de toda a população. Ao mesmo tempo, não tem escolha, segundo ele: “Se o resto do mundo todo se digitaliza, o Estado também precisa se digitalizar – caso contrário, ficará impotente”. Por isso é preciso observar cuidadosamente como se fará isso.

Edição: Samuel Jaberg

Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos

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