Suíça traça seu próprio caminho para introduzir identidade digital
Muitos países estão introduzindo sistemas de identidade digital (e-ID) para modernizar os serviços públicos. Na Suíça, a abordagem permanece cautelosa, muito diferente do modelo da Estônia, onde a identidade digital é obrigatória.
“Usei minha identidade digital para registrar meu casamento, depois o nascimento do meu filho e, em seguida, solicitar o passaporte dele. Também pude votar nas eleições estonianas em apenas cinco minutos”, conta Marili Milt, cidadã estoniana que mora no Brasil há dez anos.
Para Milt, que atua como gerente de desenvolvimento de negócios em uma empresa americana, a possibilidade de realizar a maioria dos procedimentos administrativos online é uma grande vantagem. “Facilita muito as minhas interações com o governo estoniano”, diz ela.
Ainda assim, há procedimentos que não podem ser feitos online. “Para obter uma certidão de habilitação para casamento, precisei fazer uma procuração para minha avó, que então solicitou o formulário na Estônia e me enviou”, explica Marili Milt.
A cada seis anos, cidadãs e cidadãos estonianos precisam comparecer pessoalmente para fornecer suas impressões digitais e renovar seus documentos. “Como não há nenhuma embaixada ou consulado perto de onde eu moro, preciso viajar para a Europa para fazer isso”, conta Milt.
Decisão determinante
A Estônia é frequentemente considerada a campeã europeia da digitalização. No mais recente eGovernment BenchmarkLink externo, publicado pela Comissão Europeia, ela ficou em segundo lugar, atrás apenas de Malta.
O país se empenha em destacar seus sucessos. Em Tallinn, o centro de informação e-Estonia funciona como uma vitrine tecnológica. Localizado próximo ao aeroporto da capital estoniana, ele recebe regularmente delegações de todo o mundo, que vão ao país para se inspirar no modelo estoniano.
É do e-Estonia que Johanna-Kadri Kuusk, consultora em transformação digital, explica como a digitalização tem sido central para o projeto nacional da Estônia desde sua independência, em 1991, após a dissolução da União Soviética. “Estava um caos. Era preciso reconstruir tudo, inclusive a legislação. Decidimos focar no aspecto digital para compensar nosso atraso em relação ao Ocidente”, conta Kuusk.
A e-ID, um cartão de identidade digital, foi introduzida no país em 2002 e se tornou obrigatório. Para Kuusk, essa decisão foi determinante. “Isso ajudou a garantir uma alta taxa de adesão e evitar que os cidadãos recorressem a soluções privadas”.
O calendário não foi escolhido ao acaso. “Era o ano em que os primeiros passaportes emitidos após a independência expirariam. Aproveitamos esse momento, quando as pessoas precisavam renovar seus documentos de qualquer forma, para oferecer-lhes uma versão moderna”, explica a consultora.
As novas ferramentas
Assim, cidadãs e cidadãos estonianos receberam carteiras de identidade digitais. Elas eram feitos de um material rígido, possuíam um chip e tinham o formato semelhante ao de um cartão de crédito. As identidades digitais permitiam que as pessoas comprovassem sua identidade online, votassem, assinassem documentos e consultassem seus registros médicos. Posteriormente, foram lançadas duas ferramentas digitais que permitiam utilizar diretamente o smartphone para se identificar: a Mobile-ID, integrada a um chip SIM, e a Smart-ID, um aplicativo independente que não exige um plano de telefonia móvel.
O desafio, contudo, era convencer a população a utilizar a nova identidade. “No começo, as pessoas diziam que a nova carteira de identidade digital servia principalmente para raspar o gelo do para-brisa do carro”, lembra Johanna-Kadri Kuusk, rindo. Foram necessários cinco ou seis anos para conquistar a confiança do público.
“Desde o início, o governo trabalhou com o setor privado, especialmente os bancos, para demonstrar a utilidade da e-ID”, conta a especialista. Os serviços pioneiros na digitalização foram: o voto eletrônico em 2005, os registros médicos digitais três anos mais tarde e, depois, as prescrições médicas digitais. Atualmente, 98% dos serviços são acessados de forma digital, segundo Kuusk.
Um desafio para pessoas idosas
A digitalização da sociedade estoniana, porém, não foi uma experiência positiva para todos. Marili Milt lembra o caso de sua avó, com quem mantém contato próximo apesar da distância. “Ela tem 79 anos e usar a tecnologia é um grande desafio para ela. Precisa de ajuda para usar o computador e o celular”.
Para ajudar quem tem dificuldade, o governo estoniano oferece cursos de alfabetização digital. Johanna-Kadri Kuusk relembra que todos os trâmites administrativos ainda podem ser realizados presencialmente. Ela também ressalta o papel central das bibliotecas públicas, que, segundo a lei estoniana, devem garantir acesso à informação. “Elas possuem computadores e conexão à internet, e as equipes são treinadas para auxiliar os usuários e usuárias. As pessoas idosas podem recorrer a elas quando precisarem de ajuda”.
Apesar desses esforços, algumas pessoas ainda ficam para trás, observa Marili Milt. “Alguns idosos precisariam de um acompanhamento individual. Minha avó encontrou alguém que vai até sua casa ajudá-la, mas nem todos têm essa sorte”.
Uma pequena peça do quebra-cabeça
Diferentemente da Estônia, a Suíça aparece nas últimas posições no eGovernment Benchmark da Comissão Europeia: 31º lugar entre 37 países.
Annett Laube, professora de ciência da computação na Universidade de Ciências Aplicadas de Berna, apoiou, junto com seu grupo de pesquisa, o lançamento do projeto suíço de e-ID. O ranking europeu, no entanto, precisa ser colocado em perspectiva, alerta a pesquisadora. “Países que não têm e-ID são automaticamente penalizados. Soluções cantonais, como o BE-Login em Berna e o Züri-Login em Zurique, não são contabilizadas, o que acaba distorcendo a avaliação”.
Laube acredita que a Suíça está no caminho certo em termos de digitalização. Ela defende uma transformação digital centrada nas necessidades humanas, e não apenas na tecnologia. “Não basta converter um formulário físico em PDF. Os processos precisam ser realmente repensados”. Desse ponto de vista, a identidade digital são apenas uma pequena peça do quebra-cabeça. “Ela facilita a digitalização, mas sua ausência não é um obstáculo”, conclui.
A particularidade da abordagem suíça
Mesmo assim, mais da metade dos países da OCDELink externo (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – 18 de 33 – oferecem acesso amplo a serviços públicos por meio de uma identidade digital. Em outros nove países, o acesso é parcial.
Mas os sistemas utilizados variam muito de um país para o outro. “Na maioria dos casos, as pessoas conseguem acessar serviços administrativos, assinar documentos online ou se identificar por meio de um aplicativo de celular”, explica Laube.
A Suíça, por sua vez, escolheu uma abordagem diferente, que não existe em nenhum outro lugar, observa a especialista. “A e-ID não terá nenhuma dessas funções. Ela simplesmente substituirá o cartão de plástico utilizado e servirá para provar sua identidade, por exemplo, ao se inscrever em serviços digitais”.
De início, essa identidade digital não será reconhecida pela União Europeia. “Quando a lei entrar em vigor, será necessário firmar um acordo com Bruxelas”, explica Laube. Caso a população suíça aprove o projeto no referendo marcado para 28 de setembro, a e-ID deverá estar disponível a partir do terceiro trimestre de 2026.
O desafio, então, será convencer as pessoas de sua utilidade, alerta Laube. “Pense em quantas vezes você usa sua carteira de identidade! Não é com tanta frequência assim. Provavelmente ocorrerá o mesmo com a identidade digital”.
Democracia é um pré-requisito
Uma identidade digital obrigatória, como na Estônia, ajuda a garantir altas taxas de adesão. Mas Laube não acredita que esse modelo possa ser aplicado em todo lugar. “Não é aplicável na Suíça nem em muitos outros países europeus”.
A especialista destaca que conferir um caráter obrigatório à carteira de identidade digital pode trazer riscos. “Em uma democracia que possui um sistema jurídico sólido, como na Suíça, isso não representa um problema de forma geral. Mas sistemas políticos podem mudar, e um sistema de e-ID poderia ser convertido em um sistema de vigilância ou de crédito social, como na China”.
Para limitar os riscos de rastreamento e criação de perfis, várias medidas técnicas podem ser adotadas, observa Laube. Entre elas estão a minimização de dados, a divulgação seletiva e o uso de códigos de uso único. Mas não existe solução digital que não deixe rastros, diz ela. “Uma democracia funcional, portanto, é um pré-requisito essencial para uma e-ID segura”, enfatiza.
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Edição: Samuel Jaberg/fh
Adaptação: Clarice Dominguez
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