Qual é o custo de matar trabalhadores humanitários?
Em 3 de maio, nós, da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), acordamos chocados, indignados e em luto.
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Nosso hospital em Old Fangak, no Sudão do Sul, havia sido atacado: um helicóptero de combate destruiu a farmácia e bombas foram lançadas, com drones bombardeando o mercado. Pacientes e funcionários fugiram enquanto estilhaços atravessavam o hospital. Foi aterrorizante – e uma clara violação do direito internacional humanitário.
Experimentamos novamente o mesmo sentimento de indignação quando soubemos de dois outros ataques em massa terríveis que ocorreram recentemente, matando profissionais da saúde.
Em 23 de março, o exército israelense em Gaza matou 15 pessoas, incluindo oito funcionários da Sociedade do Crescente Vermelho Palestino (PRCS, na sigla em inglês). Oito dias depois, os corpos e os veículos destruídos foram descobertos em uma vala comum. Registros em vídeo mostraram que o ataque visou deliberadamente equipes médicas e ambulâncias que estavam nitidamente identificadas.
Em 11 de abril, no campo de deslocados de Zamzam, na região de Darfur do Norte, no Sudão, nove profissionais da saúde da organização humanitária Relief International foram brutalmente assassinados quando soldados das Forças de Apoio Rápido entraram em uma clínica – a última ainda em funcionamento – durante sua ofensiva contra o campo.
Esses são apenas os exemplos mais recentes – e particularmente chocantes – de ataques contra profissionais da saúde e trabalhadores humanitários em todo o mundo. Também vimos ataques horríveis na Ucrânia, no Haiti, na República Democrática do Congo, entre outros. Sejam eles diretamente contra equipes e hospitais da MSF ou de outras organizações, nós – trabalhadores humanitários – nos sentimos atacados. Compartilhamos a dor de todos os colegas da saúde e humanitários que trabalham ao nosso lado, atuando com a mesma urgência para cuidar de pessoas doentes e feridas.
Os ataques que vêm sendo feitos contra trabalhadores humanitários e da área da saúde são excepcionalmente graves – não apenas pela brutalidade e pelo número de vítimas, mas pela profunda indiferença que se seguiu. Com exceção de declarações das Nações Unidas e de posicionamentos isolados – como o pedido do Reino Unido para que se investigueLink externo os ataques em Gaza e a reação da FrançaLink externo ao bombardeio do hospital de Old Fangak – não há revolta ou comoção internacional. Não há um forte impulso político e, certamente, nenhuma ação concreta contra os perpetradores. As condenações verbais soam vazias quando não são acompanhadas de consequências reais.
Parece quase inútil se perguntar: o que está impedindo que isso aconteça novamente, amanhã mesmo?
Todos os ataques do tipo deveriam enfrentar uma condenação veemente e inequívoca. Deveríamos ver comoção, mobilização e uma reação firme. Investigações independentes deveriam ser instauradas automaticamente para identificar os responsáveis, e as leis e convenções internacionais devidamente aplicadas – sem espaço para negociação ou flexibilização.
A justiça deve ser feita para as famílias e colegas das vítimas. O mundo deveria exercer pressão concreta sobre as autoridades políticas que toleram, viabilizam ou até mesmo encorajam ativamente tais ataques. Quase quatro anos após o assassinato brutal de nossos três colegas no Tigré, na Etiópia, as autoridades etíopes ainda não conduziram uma investigação confiável, transparente e imparcial.
Na ausência de uma resposta internacional significativa, parece-nos que a realização desses ataques está cada vez mais isenta de custos para os responsáveis. Que preço político, legal, econômico, social ou moral eles estão pagando? E que Estado, órgão ou instituição está realmente disposto e comprometido a responsabilizá-los?
A ideia de que se pode matar trabalhadores humanitários e da saúde – pessoas que estão arriscando suas vidas para cuidar dos outros – com pouca ou nenhuma consequência deveria ser inimaginável. Não se trata apenas de preservar a viabilidade do nosso trabalho; trata-se de defender valores fundamentais como solidariedade e empatia.
Deixe-me ser claro: ataques a profissionais da saúde e trabalhadores humanitários não são novidade. Não ansiamos pelo retorno de uma “era dourada” mítica, na qual nosso trabalho era universalmente aceito ou nossa segurança garantida. Pelo contrário, a MSF tem denunciado consistentemente essas agressões e exigido mudanças.
Em 2016, após uma série de ataques contra nossas equipes – incluindo o bombardeio realizado pelos Estados Unidos ao hospital de Kunduz, no Afeganistão – e em meio a campanhas sistemáticas contra hospitais na Síria e no Iêmen, apoiamos a adoção da Resolução 2286 da ONU, destinada a proteger doentes, feridos, profissionais da saúde e trabalhadores humanitários em conflitos armados. Desde então, porém, o que temos visto é que seu impacto tem sido desastrosamente limitado.
Não estamos sozinhos nessa luta. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) continua liderando a campanha “Assistência à Saúde em PerigoLink externo”. Em 2024, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 2730Link externo – de iniciativa da Suíça – conclamando todos os Estados a respeitarem e protegerem os trabalhadores humanitários.
Ainda em 2024, um grupo interministerial formado por Austrália, Brasil, Colômbia, Indonésia, Japão, Jordânia, Serra Leoa, Suíça e Reino Unido emitiu uma declaração conjuntaLink externo comprometendo-se a desenvolver uma nova Declaração para a Proteção do Pessoal Humanitário. No entanto, até agora, esse esforço coletivo não teve êxito. Não vimos a transparência, a responsabilidade e a mudança que se esperavam. É raro obter até mesmo o reconhecimento básico por parte dos autores desses ataques.
A morte e o ferimento de profissionais da saúde e trabalhadores humanitários geralmente fazem parte de um padrão mais amplo, igualmente chocante e intolerável, de violência indiscriminada – e até mesmo deliberada – contra as comunidades que eles atendem. Em Gaza, mais de 52 mil pessoas foram mortas desde 7 de outubro de 2023, segundo autoridades locais. No Sudão, é impossível ter uma estimativa realista do número de civis mortos, embora estudos sugiramLink externo que ele pode chegar às centenas de milhares.
Atualmente, diante de um ataque sem precedentes às organizações multilaterais, às Nações Unidas e às instituições jurídicas – exemplificado pelo número crescente de países que se opõem ao Tribunal Penal Internacional – a questão não é apenas a falta de pressão política ou de justiça, mas o desmonte deliberado dos próprios canais de responsabilização e mudança.
Apelamos a todos que ainda acreditam na humanidade e na solidariedade para que condenem veementemente esses ataques. Precisamos que se unam, onde quer que estejam, e se engajem em novos pedidos de responsabilização jurídica e política. Os cidadãos devem exigir que os Estados que afirmam defender as convenções e tratados internacionais adotem medidas políticas concretas e exerçam pressão política para pôr fim à normalização e à ocultação dos ataques contra profissionais da saúde e trabalhadores humanitários – em Gaza, no Sudão, no Sudão do Sul e em todo o mundo.
Agora, mais do que nunca, precisamos que as partes em conflito – assim como os Estados que as apoiam política, econômica ou militarmente – reconheçam que atacar e matar trabalhadores humanitários constitui um ataque aos próprios valores que defendem.
Matar trabalhadores humanitários não deveria apenas ter um alto custo – deveria ser totalmente inviável.
(Adaptação: Clarice Dominguez)

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