Rio conta seus mortos após operação policial mais letal da história do Brasil
Em meio a soluços e ao cheiro de cadáveres, moradores do Complexo da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, enfileiraram dezenas de corpos em uma praça nesta quarta-feira (29), um dia após a megaoperação policial mais letal do país, com o pelo menos 119 mortos.
Um jornalista da AFP viu um corpo decapitado, outro com a cabeça desfigurada, enquanto alguns moradores denunciaram “execuções”.
A letal ‘Operação Contenção’, deflagrada uma semana antes do início da COP30, a conferência climática da ONU, em Belém do Pará, tinha como objetivo enfraquecer o Comando Vermelho, principal facção criminosa que atua nas favelas do Rio.
As autoridades anunciaram um último balanço atualizado desta operação contra o narcotráfico que provocou um cenário de guerra no Rio na terça-feira: 119 mortos, dos quais 115 suspeitos e quatro policiais.
Após permanecer em silêncio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se pronunciou na rede social X na noite desta quarta-feira.
“Não podemos aceitar que o crime organizado continue destruindo famílias, oprimindo moradores e espalhando drogas e violência pelas cidades”, afirmou Lula.
“Precisamos de um trabalho coordenado que atinja a espinha dorsal do tráfico sem colocar policiais, crianças e famílias inocentes em risco”, acrescentou.
– ‘Um sucesso’ –
O governador Cláudio Castro (PL) disse à imprensa que a operação foi um “sucesso” e afirmou que as únicas vítimas foram os quatro policiais mortos na ação.
As autoridades do Rio promovem a linha-dura no combate ao “narcoterrorismo”, enquanto organizações internacionais, como as Nações Unidas, criticaram duramente a atuação policial.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, viajou ao Rio e alinhou-se com Castro. “Dentro do possível, vamos cooperar para sair o mais rápido possível dessa crise de segurança”, declarou.
Os corpos encontrados pelos moradores foram enfileirados em uma das principais vias do Complexo da Penha, uma das áreas alvo da operação.
Tem “pessoas executadas, muitas delas com tiro na nuca, com tiro nas costas, isso jamais pode ser considerado segurança pública”, disse o ativista Raull Santiago, de 36 anos, morador do Complexo do Alemão, região que também foi alvo da operação.
“Degolaram meu filho, cortaram o pescoço dele, penduraram [a cabeça] na árvore, igual troféu”, contou à AFP, do lado de fora do IML, Raquel Tomas, mãe de Yago Ravel, de 19 anos, ao acusar as forças de segurança pela morte do rapaz.
Na terça-feira, houve troca de tiros, incêndios e enfrentamentos entre as forças policiais e supostos criminosos, que usaram ônibus como barricadas e drones para lançar “bombas”.
O governador negou que haja inocentes entre os mortos nesta operação, fruto de uma investigação que durou mais de um ano.
“O conflito foi todo na mata. Não creio que tivesse alguém passeando na mata num dia de conflito e por isso a gente pode tranquilamente classificar” os mortos como “criminosos”, afirmou, em coletiva de imprensa, Castro, aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“Se tiver algum erro de classificação, ele com certeza é residual e irrisório”, acrescentou o governador.
Por sua vez, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, pediu explicações sobre a atuação policial ao governador e o convocou para uma audiência na próxima segunda.
– Investigação ‘imediata’ –
O Estado do Rio utiliza há algum tempo o termo “narcoterrorismo”, “muito influenciado” pela política de Donald Trump de definir assim grupos armados locais, mas “não há nenhum elemento que justifique” essa categorização, explicou à AFP a especialista em crime organizado Carolina Grillo.
“Estamos lidando com grupos armados que operam mercados ilegais […], organizações que visam ao lucro e não à promoção do terror na sociedade”, acrescentou.
A segurança pública promete ser um dos temas principais na campanha presidencial para as eleições de 2026, nas quais Lula pretende buscar a reeleição.
Organismos internacionais e organizações civis como a Anistia Internacional condenaram a operação.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar “muito preocupado” e pediu uma “investigação imediata” sobre a ação policial.
Até agora, a operação mais letal contra o crime da história do Brasil tinha sido o massacre do Carandiru, ocorrido em São Paulo em 2 de outubro de 1992.
Naquele dia, 111 presos foram mortos em uma intervenção da Polícia Militar para controlar uma rebelião no presídio.
A megaoperação de terça-feira provocou caos na capital fluminense. Aulas foram suspensas, o transporte público entrou em colapso e milhares de moradores ficaram ilhados, sem conseguirem voltar para casa.
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