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Quando o Estado suíço suspeitava até de estrangeiros

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3 de março de 1990: protesto organizado pelo "Comitê contra o Estado-espião" nas proximidades do Palácio Federal, a sede do governo em Berna. Keystone / Str

Entre os anos 1950 e o final dos 80, o governo espionou numerosos ativistas, políticos e organizações de esquerda na Suíça. Dos ativistas políticos controlados, muito eram até estrangeiros. 

A descoberta do chamado “Escândalo das Fichas” no final de 1989 provocou uma grande crise institucional na Suíça. O Conselho Federal (o corpo de sete ministros que governa o país) decidiu responder às duras críticas feitas ao iniciar uma investigação do caso e explicar como o Estado foi capaz de montar um sistema de espionagem da própria população. 

Em maio de 1990, o governo encarregou o historiador Georg Kreis e dois outros juristas de fazer um relatório sobre o fichamento de ativistas políticos e o sistema de segurança do Estado.Link externo

Este relatório (Proteção do Estado Suíço: desenvolvimento de 1935 a 1990) finalmente confirmou o que muitos já sabiam: desde a Segunda Guerra Mundial, e especialmente a partir dos anos 1960, o sistema de vigilância serviu como um instrumento para espionagem, principalmente de indivíduos e organizações de esquerda.

Medo do comunismo

O relatório tentou descobrir que tipo de pessoas estava sendo monitoradas, mas também queria lançar luz sobre os arquivos criados, nem todos destinadas ao monitoramento de atividades políticas.

Cerca de um quinto das fichas estavam relacionadas com atividades políticas. Entre elas, metade era de cidadãos suíços, mais de um quarto de estrangeiros residentes na Suíça, um quinto, pessoas que visitaram a Suíça, – geralmente quando viviam em um país do Bloco Comunista – e um pequeno número de refugiados.

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aparelho de espionagem soviético

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Como o medo do comunismo transformou suíços em espiões

Este conteúdo foi publicado em Janeiro de 1957: Martha Farner dirige-se normalmente para sua consulta no dentista, em Schwyz.  Ao sentar-se na cadeira, seu dentista começa a gritar: “Espere, espere, antes de servir, você tem que renunciar! “Renunciar a quê?” “Tens de renunciar ao comunismo!” Como um exorcista, ele exigiu de sua paciente a Abrenuntiatio diaboli. Segundo conta ela em suas memórias, os comunistas…

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Entre os “fichados” suíços estavam pessoas envolvidas com os movimentos juvenis, pacifistas, feministas, ambientalistas, esquerda, dentre elas líderes e ativistas do Partido do TrabalhoLink externo (PdA, na sigla em alemão).

Entre os estrangeiros que viviam na Suíça, metade das fichas era dedicada a italianos. Segundo os autores do relatório, o número de cidadãos italianos registrados era devido a força do Partido Comunista Italiano na época.

Um deles era o poeta e membro do PC italiano, Leonardo ZanierLink externo (1935-2017), figura central da diáspora italiana na Suíça. Ele esteve sob vigilância da polícia federal e de Zurique durante décadas. Por muitos anos exigiu que as autoridades se explicassem e tinha esperança que um estudo sobre a relação entre vigilância policial e política migratória entre os anos 50 e 70 fosse realizado.

Para muitos comunistas imigrantes, suas atividades políticas podiam levar à expulsão do país. Outros sofriam dificuldades para encontrar emprego, dentre outras.

Segundo Zanier, as autoridades suíças nunca entenderam a natureza democrática da filiação ao PC de uma grande parte dos migrantes italianos. O historiador Paolo BarcellaLink externo confirma a visão de Zanier: “Na comunidade italiana não havia um número significativo de pessoas com intenções revolucionárias. Muito menos entre os líderes das organizações políticas e culturais italianas próximas ao Partido Comunista Italiano (PCI). Contudo, pertencer ao partido podia ter um impacto significativo no trabalho e nas relações com os sindicatos locais.”

“Até o meu irmão e eu sabíamos, quando crianças, que o nosso pai era espionado pela polícia.”
Matteo Rodoni

Livraria italiana

A partir do final da década de 1940, os comunistas italianos na Suíça organizaram-se em uma associação. Entretanto, devido à proibição de atividades em território suíço, se viram forçados a levar uma existência clandestina até os anos 1980.

Houve muitos casos de expulsão de trabalhadores italianos, talvez vários milhares, o que criou um clima de medo entre os imigrantes mais politicamente ativos. Por isso, entre os anos 50 e 60, o PCI decidiu apostar em Sandro Rodoni, originário do Ticino e ativista do PdA, para tentar se fortalecer na Suíça.

Rodoni não corria o perigo de ser expulso do país. Assim, se tornou uma das figuras-chave do Partido Comunista Italiano na Suíça. Ele conseguiu envolver muitos trabalhadores italianos em atividades políticas.

Buchhandlung
A Livraria Italiana foi aberta em 1961 em Zurique. Per gentile concessione di Matteo Rodoni

Em 1961, ele e sua esposa Lisetta inauguraram a Livraria ItalianaLink externo no bairro Kreis 4, em Zurique, que até hoje funciona. Ela se tornou um dos locais mais vigiados pela polícia de Zurique. E também não faltavam denúncias feitas por moradores locais.

Lisetta Rodoni, hoje viúva, ainda é a alma da pequena livraria apesar da idade avançada. Ela não quer falar sobre este tempo, que considera um capítulo doloroso na vida. Mas o filho, Matteo Rodoni, conta: “Até o meu irmão e eu sabíamos que nosso pai era espionado pela polícia. Mas nunca imaginamos o que descobriríamos mais tarde. Foi quando, em 1990, meu pai recebeu 14 quilos de papel, relatórios sobre ele e, indiretamente, nossa família.”

“Estávamos cercados”

Entre os migrantes próximos a Sandro Rodoni estava Bruno Cannellotto. Ele tinha chegado à Suíça nos anos 1950, aos 18 anos de idade, para trabalhar como operário nas construção civil em Zurique. O jornalista da swissinfo.ch o encontrou em um lugar que é histórico para a migração italiana e espanhola: o Ponto de Encontro, onde ainda podem ser vistos os sinais do passado comunista.

Bruno Cannellotto
Bruno Cannellotto: “Também havia muitos denunciantes italianos. Isso não era uma exclusividade dos suíços.” Mattia Lento

Cannellotto sabia exatamente que estava sendo observado: “Se você encontrasse a mesma pessoa mais de uma vez, talvez aos sábados ou domingos, sabia imediatamente que estava sendo observado. Lembro-me de uma reunião, após a qual tivemos de sair do edifício um a um, porque nos arredores havia mais do que um policial a postos.”

O aposentado, originário de Friuli, ao norte da Itália, se lembra também de ter desmascarado um informante: “Havia um italiano que falava alemão perfeitamente e estava sempre nas nossas reuniões. Mas um dia tive de ir à delegacia de polícia.  De repente me deparo com o sujeito. Ele estava traduzindo à polícia um discurso feito por mim. Havia bastantes delatores italianos: o anticomunismo não era uma exclusividade suíça.”

As fichas, hoje visualizadas pela swissinfo.ch, mostram que Cannellotto estava sob observação desde 1966. Ele era membro da Associação Michelangelo, em Zurique. O último registro feito na ficha é de 1986, quando fez um discurso no Dia do Trabalhador. Entretanto, Cannellotto era um funcionário do “Sindicato da Indústria e ConstruçãoLink externo” (GBI, na sigla em alemão). No documento está escrito que ele “se apresentou como orador na Helvetiaplatz e não houve interferência.”

Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos

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