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Niccolò Castelli mostra o melhor do cinema suíço de 2022 no festival de Solothurn

Porträt Niccolo Castelli
Niccolò Castelli, o novo diretor artístico do Festival de Cinema de Solothurn, é também diretor e editor de cinema, escritor e produtor. © Thomas Kern/swissinfo.ch

A mostra anual do cinema suíço em Solothurn começa com um novo diretor artístico no timão. Niccolò Castelli contou à SWI swissinfo.ch como sua experiência como cineasta o ajuda a navegar por um mercado cinematográfico em constante evolução.

Apesar de ter produzido, dirigido e editado alguns filmes, Castelli se vê principalmente como um contador de histórias desde o início de sua carreira como jornalista de rádio. Seu novo papel como diretor artístico do Solothurner FilmtageLink externo (o título em alemão significa literalmente”dias de cinema em Solothurn), que apresenta os melhores filmes suíços lançados no ano passado, não muda em nada sua vocação.

“Meu trabalho agora é como contar uma história de uma semana”, diz ele. “Estamos juntando filmes a fim de fazer uma grande história sobre o cinema suíço no último ano”.

Nascido na cidade suíça de Lugano em 1982, Niccolò Castelli começou sua carreira como jornalista da emissora pública suíça de língua italiana RSI, em 1998.

Ele então colaborou na produção de alguns longas-metragens, bem como na redação e direção de curtas-metragens, documentários, reportagens e vídeos musicais. Tutti Giù – Everybody Sometimes Falls (2012), foi seu primeiro longa-metragem. Seu segundo longa, Atlas (2021), abriu o Festival de Cinema de Solothurn e foi selecionado para numerosos festivais, inclusive o 74º Festival de Cinema de Locarno. 

Desde 2021 é diretor da Comissão de Cinema do cantão do TicinoLink externo, que alterna com seu trabalho como diretor artístico do Festival de Cinema de Solothurn.

Se os festivais de cinema são maratonas para cinéfilos, para os programadores é um decatlo hardcore. Castelli e sua equipe assistiram a 642 filmes para selecionar os 217 que serão exibidos entre 18 e 25 de janeiro.

Assistir a filmes, porém, é a parte fácil. O mundo do cinema experimentou uma profusão de novos modelos de negócios e atores no mercado, sobretudo com o advento das empresas de streaming – Netflix, HBO, Disney, Apple e Amazon, entre outras – que mudaram completamente a maneira como as pessoas assistem aos filmes e como eles são distribuídos. Castelli diz que o mercado está em constante turbulência e que os festivais de cinema têm que se adaptar para se manterem relevantes.

Portrait of Niccolò Castelli
Niccolò Castelli: “O que estamos vivendo agora [com a distribuição de filmes] é semelhante ao que aconteceu com a música há 20 anos”. © Thomas Kern/swissinfo.ch

SWI swissinfo.ch: Podemos dizer que o filme suíço Mad HeidiLink externo, financiado num esquema de crowdfunding e que foi lançado on-line no dia 8 de dezembro, é um marco, no sentido de que virou os modelos de produção e distribuição de cabeça para baixo?

Niccolò Castelli: Acho que este é um dos filmes que está abrindo novos caminhos este ano. Mad Heidi foi realmente inteligente, uma das primeiras grandes produções financiadas pelo público. Mas há também outras possibilidades: temos agora a Lex Netflix [em maio de 2022, os eleitores aprovaram uma lei que obriga os serviços de streaming internacional a investir na indústria cinematográfica suíça] e as empresas de streaming estão começando a se interessar pelo nosso cinema. Temos em nosso programa vários filmes co-produzidos com streamers, inclusive nas principais seções competitivas. Polish Prayers é uma co-produção com a HBO, por exemplo.

Até os últimos anos, havia praticamente apenas uma maneira de produzir um filme na Suíça. Pedia-se dinheiro do Departamento Federal de Cultura, de uma das várias fundações de fomento cinematográfico, e da emissora nacional suíça [a Sociedade Suíça de Televisão e Radiodifusão, SRG/SSR, a empresa-mãe da SWI]. Mas agora mesmo produções relativamente grandes estão começando a pensar em como produzir filmes de outras maneiras. Portanto, estamos realmente passando por grandes mudanças.

SWI: Esses diferentes modelos de negócios também implicam um tipo diferente de negociação para um festival de cinema?

N.C.: O caminho de distribuição habitual [para um filme] costumava ser: primeiro nos festivais, depois nas salas de cinema, depois na televisão, depois na internet ou em DVD. Mad Heidi já estreou on-line, e foi distribuído em algumas salas de cinema. Isso nos obrigou a negociar de uma nova maneira e a compreender que fazemos parte de uma cadeia de distribuição mais horizontal. Não há mais pontos fixos, e cada filme é diferente.

Outro exemplo: Natural Born Driver é co-produzido com a Sky Documentaries e já está online no mundo inteiro, mas a Sky decidiu bloqueá-lo na Suíça até o fim do festival. Os produtores suíços não detêm os direitos, mas pediram à Sky que esperasse pelo festival suíço porque era importante que o filme tivesse sua estréia nacional em Solothurn. É o primeiro longa-metragem do diretor, por isso foi importante para sua carreira. Assim a gente vê que é possível negociar, mas o mundo está completamente diferente.

SWI: Que novos aspectos você tem que ter em mente ao negociar um filme para o festival?

N.C.: A maioria dos filmes ainda segue o caminho clássico, mas temos que considerar novas questões, tais como: por que eu deveria mostrar um filme se ele já está disponível on-line? Havia alguns filmes que já estavam disponíveis em todos os lugares, de graça. Nesse caso, temos que deixá-los de lado. Mas outros filmes que já estão on-line, mas em plataformas pequenas ou em plataformas de nicho, decidimos exibi-los e oferecer uma sessão de perguntas com os realizadores após o filme, para que as pessoas possam descobrir mais.

SWI: Isso também significa que, como diretor de um festival, você tem que ser mais proativo e ir atrás de filmes, em vez de apenas escolher entre os filmes enviados?

N.C.: Claro, por isso acho que pediram a um cineasta como eu que assumisse a direção artística de Solothurn. Eu produzi, fiz filmes e tenho experiência com co-produções internacionais. O festival precisa ter uma noção de como funciona a indústria. Temos que ser mais proativos, e também temos que dar algo a essas plataformas, distribuidores ou agentes de vendas. É muito mais trabalho.

Uma das inovações do Festival de Solothurn este ano é a possibilidade de estender digitalmente o alcance do festival ao exterior por meio de um modelo B2B (business-to-business). Através da plataforma online Festival Scope ProLink externo, profissionais do cinema (realizadores de festival, agentes de vendas globais, cineastas, jornalistas, distribuidores, embaixadas, cineclubes) podem assistir e exibir os filmes das principais seções (Prix de Soleure e Opera Prima) em qualquer lugar do mundo.

SWI: Como as distribuidoras e as streamers têm reagido a essa abordagem?

N.C.: A primeira coisa que os produtores e as streamers perguntam é: como é a visibilidade? Você pode promover o filme? Você pode garantir alguma cobertura de mídia? Porque o problema agora é que há tantas plataformas de streaming, tantos canais de televisão, então como posso garantir uma audiência? Como esse público pode ficar sabendo que esse filme foi feito e que está disponível?

Por exemplo, Natural Born Driver é sobre um piloto de Fórmula 1 dos anos oitenta na Itália. Ninguém sabe que há um cineasta suíço e uma equipe suíça por trás do filme. Assim, graças ao Festival de Solothurn, eles podem chegar a um novo público, talvez não tão interessado no tema, mas mais interessado na realização do filme e no aspecto “made in Switzerland”.

Plakat 3 Sprachen
Três versões do pôster do festival deste ano. Solothurn Film Festival

SWI: No programa você menciona sexualidade, racismo, classismo, identidade, gênero, e assim por diante, que são questões globais. Há algum tema especificamente suíço abordado?

N.C.: Se compararmos o cinema suíço de 20 ou 30 anos atrás com as produções atuais, vemos que se tratava principalmente de uma perspectiva suíça do mundo. Os filmes eram feitos principalmente por diretores de cerca de 40 ou 50 anos de idade com suas raízes na Suíça, saindo do país e descobrindo o mundo. Ou ficando na Suíça, descobrindo aspectos da identidade suíça.

Agora temos uma nova geração e a maioria dos diretores tem entre 25 e 40 anos de idade. A maioria deles são suíços, nascidos na Suíça, mas com outras raízes, com pelo menos 50% de suas raízes vindas dos Balcãs, Portugal, Itália, Polônia, Geórgia, e assim por diante.

Portanto, agora o mundo já está nas raízes dos autores que contam as histórias. A perspectiva, o olhar que temos sobre o mundo é completamente diferente. Porque não só as co-produções são internacionais, mas também os autores.

SWI: Como é que isso aparece nos filmes?

N.C.: É uma perspectiva mais horizontal, e mais próxima das emoções pessoais, a meu ver. Não é mais uma perspectiva de pessoas cultas da alta sociedade que olham para o mundo. Também traz algo interessante para a Suíça, como no futebol: a seleção nacional é suíça, mas com muitas raízes diferentes. Há muitas identidades dentro da Suíça, e penso que muitas pessoas que virão a Solothurn serão confrontadas com a questão de qual é a nova identidade da Suíça? O que é também a “nova neutralidade” da Suíça?

SWI: Boa pergunta. Como é essa nova neutralidade?

N.C.: No passado não éramos realmente parte do mundo. Éramos esta ilha no meio da Europa, onde nada acontece, mas podíamos ser neutros e receber pessoas para falar de questões globais. Agora somos parte do mundo. Portanto, ser neutro significa também estar envolvido. E o cinema suíço pode desempenhar um papel nessa discussão.

SWI: Olhando para programas anteriores de Solothurn, a maioria dos filmes suíços – boa parte deles documentários – tratava de temas fora da Suíça. Mas agora estamos vendo isso também em longas-metragens.

N.C.: Absolutamente. É uma consequência da democratização do cinema de ficção. No passado era preciso uma grande quantidade de dinheiro para fazer longas-metragens. Agora é possível encontrar muito bom equipamento a preços acessíveis e com um orçamento baixo é possível fazer um filme para um grande público. O Prix du Publique, por exemplo, é uma seção dedicada ao grande público, a uma grande tela, a grandes orçamentos. Agora, com orçamentos baixos, você também pode contar uma grande história, e nós estamos concentrados nas histórias, nos temas, no que um filme nos dá. Os aspectos técnicos ainda são importantes, mas temos mais liberdade.

  • Amine – Held auf Bewährung (Dani Heusser, documentário). Um requerente de asilo guineense na Suíça tenta ajudar refugiados ucranianos.
  • Big Little Women (Nadia Fares, documentário). Três gerações de mulheres transgredindo as regras patriarcais na Suíça e no Egito.
  • A Forgotten Man (Laurent Nègre, ficção). O embaixador suíço na Alemanha nazista volta para casa após a guerra.
  • Natural Born Driver – L’incredibile storia di Ivan Capelli (Gionata Zanetta, documentário). Biografia sobre o piloto de Fórmula 1 nos anos 1980.
  • Jours de fête (Antoine Cattin, documentário). As fraturas sociais na Rússia de hoje expostas através de sete festas tradicionais em São Petersburgo.
  • De Noche los Gatos son Pardos (Valentin Merz, ficção). Comédia absurdista de uma equipe de filmagem que desaparece no interior da França.
  • Trained to See – Three Women and the War (Luzia Schmid, documentário). Três correspondentes femininas lançam uma nova perspectiva sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial.

Editado por Mark Livingston.

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