Perspectivas suíças em 10 idiomas

Um músico de múltiplas raízes (continuação)

Jovino Santos Neto em Basileia. swissinfo.ch

Jovino Santos Neto começou a tocar piano aos 12 anos. Depois estudou Biologia no Canadá. Foi ao Brasil estudar ecologia na Amazônia, mas encontrou Hermeto Pascoal e virou músico.

Mora nos Estados Unidos e diz que fica momentaneamente à vontade em muitos lugares, inclusive em Basileia na Suíça, onde tocou recentemente. Na entrevista a seguir, ele explica sua concepção da música.

Ele passou 15 anos tocando com Hermeto Pascoal. Depois, foi morar nos Estados Unidos, onde, além de tocar, leciona. “Nunca ganhei um centavo com Biologia”, diz. A música ia ser hobby, mas foi a biologia que virou hobby, e ele, um músico de primeira. Aos 55 anos, casado com a suíça Luisa e pai de dois filhos, Jovino apresentou-se em Basileia no clube de jazz Bird’s Eye.

E o álbum Alma do Nordeste? Foi um projeto que misturou a Biologia e a música?

Mais ou menos isso. Eu gosto de ter uma narrativa no meu trabalho, como um fio que amarre uma coisa à outra. Prefiro ter um tema, que funciona como um corrimão. A ideia surgiu do livro de Nery Camelo, Alma do Nordeste, escrito em 1936. Tinha uma dedicatória dele ao meu avô e o livro estava na casa da minha família. Comecei então a pensar em fazer um retrato do Brasil, mas queria mais do que apenas tocar música nordestina. Queria sentir os cheiros, conhecer mais a cultura da região.

Por onde você passou?

Eu e minha mulher percorremos 1.800 quilômetros. Passamos por Campina Grande, Caruaru, Arapiraca. Mas conhecemos pessoas, comidas, sotaques, cheiros e percebemos os lugares. A música, na realidade, é o final. O que nos inspira são todas essas coisas: cheiros, sotaques, sol, praias. É uma crônica passada para a linguagem musical.

Você poderia dar um exemplo desta percepção cultural na música? Dessa crônica musical?

Quanto menos pensado melhor. Você não pode controlar demais. Tem de deixar a influência cultural entrar, sem controlar demais. Todas as músicas têm um pouco da minha percepção do nordeste.

A música “Festa da Macuca”, por exemplo, foi em homenagem à fazenda da Macuca, perto de Garanhuns, na região de Poço Comprido. O dono, Zé da Macuca, nos deu um banho de imersão na cultura da região: quilombos, samba de coco, pessoas dali. Nada a ver com Recife. A tradução que fiz foi um forró que parece tradicional, mas não é. Tem coisas dentro dele bem diferentes: é um 7 por 4. É até meio corrido para dançar, mas se dança.

Outro exemplo é a música título “Alma do nordeste”. É um diálogo de flautas com Carlos Malta numa forma modal que expressa a cultura nordestina, mas é uma influência direta do cantar medieval ibérico. Naquela época, músicos viajavam e as pessoas encomendavam músicas: eles improvisavam temas dedicados às pessoas.

Há semelhanças com os repentistas nordestinos?

Muita. A versão brasileira do CD tinha versos do cordelista Marcos Aurélio. Acho que as coisas são ligadas…

E a criação dessa crônica musical? Você demorou para compor?

Na volta do Brasil passei duas semanas na Califórnia, num trabalho com alunos o dia todo. A maioria das músicas compus lá: nas aulas, nas pausas. Fiz alguns arranjos muito soltos e, em agosto, voltei para o Brasil e gravei. Foi tudo muito espontâneo. Tentei fazer algo diferente, com a minha visão de uma região com a qual sempre tive muita identificação: meu avô é sergipano, o Hermeto, alagoano.

Você pensa em outros projetos por regiões do Brasil?

Nesse projeto tive apoio da Petrobrás e permitiu que fizéssemos um trabalho profissional. Caso consiga algo assim, já pensei na Diamantina: ali há uma encruzilhada entre o Barroco religioso mineiro e a cultura africana que seria interessante de trabalhar. Mas são ideias.

Como você vê a aceitação da música brasileira no exterior? E qual música brasileira?

A imagem musical do Brasil sempre ficou muito no samba, bossa nova, Carmem Miranda. As pessoas ficam surpresas quando veem a riqueza musical que há. Há muitas sutilezas musicais da influência medieval na música nordestina.

De volta à Biologia: é como descobrir uma espécie nova. Tomo um cuidado danado de não deturpar a música. Isso não significa que vá deixá-la estagnada, morta, não sou etnomusicólogo. Tomo cuidado de usar a essência dela como ponto de partida para criar uma arte contemporânea .

É uma releitura, que leva em conta o uso de instrumentos com uma concepção musical contemporânea, como o improviso do jazz, por exemplo. E é preciso lembrar que há conexões da música brasileira com a música árabe.

Você pode explicar isso?

As escalas das músicas nordestinas vieram da Pérsia. Do norte da Índia foram para a África, Marrocos, Egito, Tunísia e Algéria. Dali subiram para a península Ibérica.

A música de um lugar deserto e árido não floresceu na Europa, mas se enraizou no interior do nordeste. O cantador de viola é muito semelhante aos cantadores do Marrocos que vêm das montanhas. Olha, estive na Índia, e as pessoas adoravam baião. Pode-se fazer a conexão da música sem deturpá-la.

Você pensa em voltar a morar no Brasil?

Gosto de muitos lugares no mundo e me sinto bem em muitos deles. Saí do Brasil e não perdi raiz brasileira, acho que a expandi. Quando estou no Brasil me sinto imerso.

Fora do Brasil parece que tenho mais objetividade para ver a cultura brasileira e fico fascinado por ela. Essa concepção da raiz num lugar único mudou um pouco. Hoje pode-se ter raízes múltiplas. E eu me sinto muito bem em Seattle, aqui em Basileia ou em outra cidade da Europa. Embora não pertença a nenhum desses lugares, me sinto parte deles momentaneamente.

Lourdes Sola, swissinfo.ch

Jovino Santos Neto é carioca e cresceu no Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro.

Em 1977 começou a tocar com Hermeto Pascoal. Durante 15 anos colaborou como pianista, flautista , co-produtor de sete discos, além de organizar os concertos internacionais do grupo.

Conheceu sua esposa Luisa em 1978, quando ela, suíça, viajava pelo Brasil. Eles têm dois filhos e moram em Seatle, nos Estados Unidos.

Entre 95 e 97 tocou com Airto Moreira e Flora Purim. Em 2003 gravou um duo com o bandolinista Mike Marshall.

Já recebeu duas indicações ao Grammy Latino. Em 2004 pelo álbum Canto do Rio e em 2006 pelo Roda Carioca, considerado o melhor disco latino de jazz do ano.

Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!

Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR