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“A Suíça não pode se esconder atrás da neutralidade”

Odier
Keystone / Salvatore Di Nolfi

Patrick Odier, herdeiro de uma das mais prestigiadas dinastias de banqueiros da Suíça, me trouxe um caldeirão de chocolate.

Muita coisa mudou no setor bancário suíço durante os 40 anos da carreira de Odier na empresa de sua família. Dentre as grandes transformações, na última década Odier testemunhou o tumultuado fim do sigilo bancário inflexível – até então, uma das características mais celebradas do ecossistema de bancos da Suíça.

É uma sexta-feira de inverno em Genebra e a neve está caindo forte. No fim de semana a cidade vai celebrar a Fête de l’Escalade, comemorando uma vitória sobre o ducado católico de Saboia em 1602. A heroína da festividade é uma velha senhora e seu caldeirão – que, segundo reza a lenda, em uma noite jogou seu caldeirão pela janela para alertar o vigia da cidade sobre uma tentativa das tropas de Carlos Emanuel I de invadirem as muralhas. Desde então, são oferecidos pequenos caldeirões de chocolate à população em sua memória.

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“Aconteceu logo ali”, Odier me conta, emendando em uma pequena aula de história sobre sua cidade natal, enquanto aponta para uma rua coberta de lama que vai em direção à universidade.

Estamos nos encontrando para almoçar no Le Philanthrope, um restaurante francês moderno que, eu sugiro provocativamente a Odier, ele teria escolhido por causa do nome em um movimento não tão sutil de relações públicas. Ele protesta: uma de suas filhas trabalha como advogada do outro lado da rua, diz, e este é seu local de almoço. E, além disso, os frequentadores do restaurante são muito agradáveis: há, visivelmente – o próprio Odier aponta isso – muito poucos tipos de banqueiros por ali. Lâmpadas de filamento penduradas elegantemente em cabos circulares e um papel de parede dão um ar um pouco exagerado ao salão, mas o restaurante está lotado.

Aconselhando os ultra-ricos

Odier, 67, é magro e ágil, veste um terno cinza escuro, uma camisa branca e um colete azul claro. “Sempre tive que garantir que minhas palavras correspondessem ao meu dever… mas agora se eu puder me expressar um pouco mais abertamente, eu o farei”, diz ele, sorrindo, manejando habilmente a ressalva condicional.

A Suíça não tem uma aristocracia, mas, se tivesse, Odier estaria no topo dela. O setor bancário é considerado uma instituição nacional e o Lombard Odier – fundado em 1796, ultra cuidadoso, ultra discreto, de propriedade e controlado por apenas seis sócios – provavelmente chega perto de incorporar seu ideal.

Mas Odier também é um tanto radical dentro de seu setor. Quando o sigilo dos bancos suíços foi finalmente questionado internacionalmente, Odier diz que pressionou seus colegas, como chefe do poderoso lobby bancário do país, a aceitar a mudança. Mais recentemente, ele tem sido uma das figuras mais expressivas do setor financeiro no debate sobre mudanças climáticas e finanças. Ele é um grande patrono das artes e da filantropia médica. E por meio de sua esposa, a ex-bailarina greco-egípcia Cynthia Odier, planeja uma aposentadoria trabalhando em projetos culturais em Atenas. Sem contar seu interesse por política e diplomacia internacional.

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Tudo isso não desvia a atenção do fato de que, durante a maior parte de sua carreira, Odier foi antes de tudo um conselheiro discreto e leal dos muito, muito ricos do mundo.

A espinha dorsal da fantástica riqueza bancária da Suíça – e sua questionável reputação internacional, para alguns – é o private banking. A modalidade consiste na oferta ultra personalizada de serviços bancários e financeiros para clientes privados com grande volume de aplicações financeiras, detentores de grande patrimônio.

De todo o dinheiro que os ricos do mundo guardam fora das fronteiras de seus países de origem, um quarto é mantido no país alpino, cuja população é de quase 9 milhões. O banco Lombard Odier detém cerca de US$ 335 bilhões (CHF 310 bilhões) desses ativos – bem como mandatos de um punhado de grandes clientes institucionais.

Existem muitas razões pelas quais os ricos colocam seu dinheiro na Suíça e, na maioria das vezes, são legítimas. Mas os bancos suíços seguem uma linha tênue. Lombard Odier tem cerca de US$ 800 milhões em ativos congelados em seu cofre por serem montantes ligados à corrupta oligarca uzbeque (e ex-socialite suíça e filha de um ex-presidente do Uzbequistão) Gulnara Karimova, que após uma mudança na política em seu país agora está na prisão de Tashkent.

Quando seus clientes são as pessoas que possuem as riquezas do mundo, você está na linha de frente da geopolítica. O cofundador do Lombard Odier, Henri Hentsch, também sabia disso, inclusive por ter sido o banqueiro de Napoleão Bonaparte, que usou os escritórios do banco quando passou por Genebra a caminho de saquear a Itália.

A linha de frente pode ser um lugar lucrativo para se estar. “Cada crise global, seja uma crise macroeconômica, uma crise bancária, uma crise militar ou uma crise de saúde, levou [os bancos suíços] a aumentar sua participação no mercado”, diz Odier.

De fato, os ricos do mundo nunca foram tão ricos. Graças à flexibilização quantitativa e ao aumento nos preços dos ativos globais, o 1% mais rico, de acordo com o mais recente relatório de riqueza global do Credit Suisse, possui cerca de 50% do dinheiro do mundo. Enquanto os 50% mais pobres possuem cerca de 1% de toda a riqueza.

Imagem manchada

Um garçom serve amuse-gueules: uma panna cotta de couve-flor delicadamente aquecida em uma pequena xícara de barro, com uma espuma de mostarda aromática e alguns grãos de arroz tufado que dão um contraste de textura.

Parece que chegamos à questão da duvidosa moralidade dos bancos suíços. Tomo um gole do vinho Aligoté local que Odier selecionou e, com a maior indiferença possível, pergunto por que ele acha que a reputação de sua profissão e país ainda está tão profundamente manchada no mundo ocidental.

Em primeiro lugar, o setor bancário não é uma profissão fácil de moralizar, observa ele, especialmente quando se trata de cuidar da riqueza dos ricos. “Sempre haverá perguntas sobre quem é o dono do dinheiro, quem não é o dono do dinheiro, quem é o dono legítimo e quem não é o dono legítimo e assim por diante… portanto, é difícil associar o papel das finanças a qualidades maravilhosas e românticas”.

Mas a imagem feia da Suíça como um centro de dinheiro sujo está, diz ele, ultrapassada, e ele espera que suas marcas desapareçam. “Nos últimos 10 a 15 anos, vimos o sistema mudar radicalmente”, diz.

O sigilo bancário total foi extinto na Suíça acompanhado de uma série de medidas após a crise financeira de 2008, que culminaram na assinatura pelo governo suíço da Lei de Conformidade Fiscal de Contas Estrangeiras dos EUA em 2013. Os bancos suíços agora são legalmente obrigados a compartilhar informações limitadas com reguladores estrangeiros sobre contas mantidas por seus cidadãos.

“Não sou ingênuo. Há muitas coisas que poderiam ser melhoradas em nosso centro financeiro, mas acho que administramos a transição de maneira bastante sólida”, diz Odier, que chefiava a poderosa Associação Suíça de Banqueiros na época. Tivemos a coragem para reconhecer que o sigilo se tornou um problema – e que durou o suficiente. Passamos algum tempo defendendo nossa abordagem… mas depois passamos pela transformação muito, muito rápido. Em 2018 tudo havia mudado.” A Lombard Odier pagou $100 milhões em 2015 para finalmente resolver quaisquer questões pendentes com as autoridades dos EUA sobre os assuntos fiscais de seus clientes.

Para Odier, o sucesso da Suíça desde o fim do “dever de silêncio absoluto” (como a lei o definia) prova que o sigilo, pelo menos para evitar impostos, nunca foi o único argumento que tornava a Suíça vantajosa no mercado financeiro. “Temos séculos de experiência como banqueiros aqui”, diz ele, acrescentando que os clientes valorizam isso. “Nenhum banco quebrou ou desapareceu quando encerramos o sigilo.”

Nossas entradas chegam. Odier escolheu uma salada mesclun com delicadas tiras rosadas de truta defumada do lago, enquanto eu comi um foie gras salteado sobre um pedaço de brioche grelhado.

É nesse ponto que eu comento ter lido que Odier praticava esgrima quando menino. Eu também havia tentado o esporte anos antes. E recordo para ele, enquanto espeto um pedaço brilhante de fígado, a lenta frustração de enfrentar um oponente mais habilidoso. Então, talvez seja hora de redobrar a conversa.

Existe um paradoxo sobre o sucesso da Suíça, eu sugiro a Odier: todas as coisas que a tornam atraente para os ricos do mundo – sua estabilidade política, independência, estado de direito e discrição – são coisas que mais atraem aqueles que carecem delas em seus próprios países. E muitas vezes essas pessoas são bandidos, autoritários ou ambos.

“Olha, nenhum banco tem interesse em emprestar mais só porque pode, e nenhum banco tem interesse em assumir um risco de reputação porque pode”, diz Odier. “Em última análise, a lição é nunca aceitar nada de alguém se você não estiver completamente convencido de que a resposta sobre de onde vem é a correta.”

Ressalto que nem sempre foi assim em seu próprio banco, e ele suspira cansado, visivelmente magoado com os dois exemplos que dou: as já mencionadas contas de Gulnara Karimova e, em 2005, as dezenas de milhões de dólares desviados por Yasser Arafat. O líder palestino até costumava se gabar de sua riqueza escondida no banco suíço.

“Você não gosta de ter seu nome associado a algo desagradável, embora eu ache que a história ainda contará em ambos os incidentes o que realmente aconteceu”, diz Odier, reticente em explicar o que quer dizer. “Fui mencionado pessoalmente em um artigo de imprensa dizendo que eu era o banqueiro [para Arafat] – completamente falso! Eu era simplesmente o chefe da empresa”, acrescenta, um tanto indignado.

Quando terminamos nossas entradas, tomo um copo de um Pinot Noir local leve para acompanhar meu prato principal, enquanto Odier optou por algo um pouco mais sofisticado; uma mistura com uma variedade de uva suíça, Gamaret.

“O risco reputacional era algo do qual nos sentíamos completamente protegidos, graças a um processo interno de tomada de decisões que seguimos ao pé da letra, mas que acabou sendo insuficiente”, diz ele.

A lição, acrescenta ele, foi que marcar caixas nunca é suficiente. “Você pode ser convencido pelas pessoas erradas [com evidências falsas] ou pode simplesmente aceitar na 10ª vez a mesma resposta duvidosa porque não quer ouvi-la pela 11ª vez.”

Uma aposta na moral

Girando meu vinho no copo, pergunto se esse julgamento, para ele ou seus banqueiros, é moral? “Uma condição moral tornaria isso extremamente difícil”, diz ele. “Tem que ser sobre critérios legais e judiciais.”

Acho que talvez tenha alguma simpatia por isso: nenhum banco deveria simplesmente recusar um cliente, rico ou não, porque eles, sua política ou sua linha de negócios são subjetivamente desagradáveis. Por outro lado, critérios legais e judiciais têm se mostrado, até agora, bastante frágeis. Aqui, suponho, está o cerne da questão.

Para Odier, é um erro esperar que os próprios bancos sejam árbitros sociais e políticos. “Tive que lutar muito contra o nosso governo [na Suíça] contra algumas medidas, onde eles basicamente colocariam os banqueiros na posição de policiais olhando para os clientes com olhos que basicamente diziam ‘me prove que você é honesto’. Esse tipo de abordagem é ingênua”, diz ele.

“De tempos em tempos você tem que enfrentar seus riscos… o importante é reconhecer se você os tomou por vontade própria ou não”.

O prato principal chega: bacalhau grelhado com batata amassada e legumes com cobertura de trufas para Odier e um filé de porco basco para mim, com um molho brilhante e pequenos redemoinhos de mousseline de pommes.

Então, eu pergunto, um pouco maliciosamente agora que o vinho está fazendo efeito, se nos encontrarmos novamente para almoçar daqui a 10 anos, não terei lido nada de ruim sobre Lombard Odier nas manchetes?

“Parte do risco geral desta profissão”, ele encolhe os ombros, com um leve sorriso, “é que de vez em quando você tem que enfrentar seus riscos… o importante é reconhecer se você os tomou por vontade própria ou não.”

Odier, no entanto, não é um defensor do isolacionismo moral suíço e, enquanto nossos pratos são retirados, pergunto a ele sobre a decisão “neutra” da Suíça de igualar as sanções da UE à Rússia.

“Estou feliz por termos conseguido… tivemos uma evolução dramática da situação geopolítica e uma violação das leis e convenções internacionais… A Suíça simplesmente não pode se esconder atrás de um conceito abstrato de neutralidade que se recusa a ver a realidade como ela é.”

É, no entanto, essa postura que está causando problemas para seu setor econômico, acrescenta Odier. Grandes clientes em todo o mundo estão se perguntando o quão acessível seu dinheiro na Suíça “neutra” pode ser, se seus governos também romperem com a ordem ocidental.

Mas na verdade, os últimos anos da carreira de Odier não foram dominados por questões sobre sigilo bancário ou dinheiro sujo, mas sim sobre mudanças climáticas.

Hoje em dia, a questão do “investimento sustentável” tornou-se quase ultrapassada. É difícil separar a preocupação genuína do que é falado em Davos entre os muitos financiadores. Odier é mais franco e apresenta mais nuances nessa discussão.

Ele fala longa e eloquentemente sobre seu trabalho no tema das mudanças climáticas e sobre seus planos, agora que deixou o banco para se concentrar na defesa internacional e conectar melhor os financiadores com os formuladores de políticas de mudança climática. Em particular, menciona seu trabalho na ONU no apoio à iniciativa Building Bridges.

Mas sua grande preocupação, ele me diz, está se voltando para as crises sociais eminentes que a descarbonização está criando. “Você não pode simplesmente dizer a uma província no Canadá que ela deve parar de produzir petróleo fóssil – você não vai transferir toda a população para o outro lado do país onde há empregos”, diz ele.

“Temos que falar com urgência sobre o que podemos fazer para mitigar os efeitos de tudo isso sobre grupos econômicos e sociais vulneráveis em nossas próprias sociedades – assim como fazemos com o sul global. Nosso tecido social depende disso – será o principal problema que enfrentaremos nos próximos anos.”

A questão é ainda pior, continua Odier, esquentando o tema, porque o período desde 2008 foi um período sem precedentes de “capitalismo assimétrico”, no qual as recompensas dos esforços para evitar o desastre financeiro e manter as economias caíram quase exclusivamente no colo dos ricos proprietários de ativos.

Ele acrescenta a esse cenário a rápida queda dos padrões de vida – “quando você vive em um mundo com taxas de juros zero, tudo ficará caro no final” – e os próximos anos, diz ele, “serão incrivelmente desafiadores”.

Os cafezinhos expressos chegam. Nossa discussão se volta para a Grécia e descobrimos um amor compartilhado por Mani, a península selvagem e árida na parte sul do Peloponeso. Trocamos lembranças e recomendo com prazer a escrita de Patrick Leigh Fermor, um herói de quem Odier nunca ouviu falar. Ele rabisca seu nome no verso de um cartão de visita.

Então ele me conta que, com sua esposa, está financiando a criação de um centro cultural em Atenas para abrigar a escola suíça de arqueologia, a embaixada suíça e um centro de artes. Ele também se lembra com nitidez e carinho de alguns dias que passou vivendo em uma cela quase vazia no Monte Athos – um dos locais mais sagrados da ortodoxia grega.

“Acho que posso ser considerado um banqueiro meio estranho”, diz ele. E eu pergunto, enquanto pegamos nossos casacos, o que você seria se não fosse um banqueiro? Ele ri. “Um veterinário!”

Sam Jones é o correspondente do FT na Áustria e na Suíça

Copyright The Financial Times Limited 2023

(Adaptação: Clarissa Levy)


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