Precisamos de mais bom senso ao invés de IA na agricultura
Os principais desafios dos sistemas agroalimentares não podem ser resolvidos com inteligência artificial (IA) e tecnologias digitais.
Assine AQUI a nossa newsletter sobre o que a imprensa suíça escreve sobre o Brasil, Portugal e a África lusófona.
Semanas atrás visitamos um grupo de produtores orgânicos e pudemos ouvi-los, direto de suas lavouras, sobre como cuidam da qualidade do solo ou o que pensam das últimas tendências na produção de alimentos. Quando a expressão “agricultura regenerativa” (ideia de sistemas agrícolas sustentáveis que se concentra especialmente em solos saudáveis e no bom manejo da terra), apareceu na conversa, ouvimos comentários desanimados. Alguns consideram o uso da expressão como apenas um novo rótulo na moda.
Para vários dos produtores rurais, a agricultura orgânica em si já regenera os solos e o que a agricultura regenerativa propõe não é novidade; essas práticas já eram adotadas há séculos, apontam. “Não faz sentido vender o mesmo vinho antigo em garrafas novas”, disseram. Na mesma conversa, ouvimos mais uma porção de críticas à reciclagem de discursos do movimento orgânico com objetivos comerciais duvidosos e práticas de greenwashing – em poruguês “lavagem” ou “maquiagem verde”, expressão define campanhas ou ações de marketing que se valem de um discurso ecológico, criando uma falsa aparência de sustentabilidade.
Mostrar mais
Legumes ajudam a agricultura suíça a combater as mudanças climáticas
Mas, para outros agricultores, a agricultura regenerativa é vista com uma lente mais positiva. Em entrevistas, alguns nos disseram que sua subsistência depende da saúde do solo e do aumento e manutenção da fertilidade da terra. Eles apontam que, em muitos casos, é possível fazer mais pela saúde do solo e estão abertos a qualquer esforço que coloque as condições do solo no centro da produção de alimentos.
Ambos os pontos de vista são justificados e discutir conceitos não é muito útil. De qualquer forma, substratos saudáveis são fundamentais para a agricultura e os agricultores sabem como formar e manter solos saudáveis. Lamentavelmente, esse conhecimento não é implementado em todos os lugares e nem todos os agricultores cultivam seus solos de forma a evitar sua degradação.
Adicionar tecnologia ou bom senso?
Uma solução que aparece no radar é adotar inovações digitais, como robótica, inteligência artificial e dados de sensoriamento remoto. No entanto, nesse ponto as opiniões também divergiram entre os agricultores com quem conversamos. Alguns são a favor do uso de tecnologias como fertilização de precisão, mapeamento do solo e dispositivos robóticos leves que trabalham a terra com o mínimo de perturbação.
Outros pediram mais bom senso do que inteligência artificial. Um fazendeiro se referiu à mineração de carvão marrom, que é altamente poluente. “Faria sentido extrair esse carvão com máquinas movidas a energia renovável?”, perguntou ele. “E faria sentido investir em inovações para desenvolver usinas de energia de carvão marrom mais eficientes?”. Talvez não. Talvez o abandono total da mineração de carvão marrom seja uma solução melhor.
Uma lógica semelhante também se aplica à agricultura. Outro fazendeiro, por exemplo, nos contou sobre uma parceria entre McDonalds, a produtora de carne Lopez Foods e a empresa agrícola Syngenta que visa teoricamente tornar a produção de carne bovina nos EUA mais sustentável, alimentando o gado com uma variedade especial de milho, no que é defendido como um bom exemplo de uma abordagem holística. Ao trazer esse exemplo, o fazendeiro mencionou uma declaração do CEO da Syngenta, de Jeff Rowe, que disse que o “princípio orientador da empresa não é vender produtos, mas desenvolver soluções que ajudem os fazendeiros a produzir alimentos saudáveis para a sociedade de forma sustentável”.
Mostrar mais
Como a agricultura regenerativa e a IA podem impulsionar a agricultura sustentável
Bem, para nós, isso soa como um conto de fadas. Não estamos buscando transformar o sistema agroalimentar atual para tornar a agricultura e a produção de alimentos mais sustentáveis e, ao mesmo tempo, garantir a produtividade? Que papel a carne bovina criada com milho especial geneticamente modificado poderia desempenhar nessa transformação? Nenhum. Essa produção é claramente voltada para a obtenção de lucros. As empresas ganham dinheiro com a venda de seus produtos, enquanto os custos ocultos da poluição ambiental, do sofrimento dos animais e do impacto sobre a saúde humana são arcados pela sociedade como um todo.
Nenhum dos fazendeiros com quem conversamos via a carne bovina alimentada com milho como uma solução holística para transformar a agricultura em um sistema alimentar sustentável. A IA pode nos dizer como desenvolver a produção mais eficiente de carne bovina alimentada com milho, mas o bom senso nos diz, em primeiro lugar, que desenvolver esses sistemas não é uma boa ideia.
Qual caminho seguir
As ferramentas de IA não conseguem raciocinar de maneira independente, mas são muito boas em identificar padrões em bases de dados enormes. Nesse sentido, a IA pode ajudar, por exemplo, quando determinadas combinações de dados locais sobre o o clima ou o solo sugerem surtos iminentes de pragas ou escassez de nutrientes em determinadas áreas.
A IA é menos útil quando os dados são escassos e a coleta é cara, por exemplo, para identificar quais práticas agrícolas são mais adequadas para aumentar o sequestro de carbono do solo. Nesse caso, o conhecimento dos agricultores sobre práticas orgânicas e agroecológicas para o manejo do solo e a rotação de cultivos pode ser mais útil do que linhas de dados instáveis baseados no sensoriamento remoto de algumas variáveis da superfície do solo.
Mostrar mais
Suíça volta a investir em melhoramento genético na agricultura
Por fim, o bom senso costuma ser melhor conselheiro do que a IA quando precisamos entender o panorama geral. Quando é necessário tomar uma decisão sobre produtividade, por exemplo, estamos mais interessados na alta eficiência com altos rendimentos para um único produto ou preferimos produzir uma quantidade razoável de diversos produtos alimentícios alternando cultivos com impacto limitado sobre o meio ambiente? Se a escolha for pelo primeiro cenário, a carne bovina alimentada com milho terá um papel central, enquanto no segundo caso, os ruminantes alimentados com capim como parte de um sistema alimentar circular serão a melhor solução.
No final das contas, a peça central da agricultura sustentável é o rico conhecimento e o bom senso dos agricultores. Sem dúvida, isso pode ser combinado com a IA como uma ferramenta muito potente para casos específicos, mas a IA não fornecerá soluções nem tomará decisões difíceis em nosso nome. Os grandes pontos de alavancagem para uma transformação rumo à agricultura e aos sistemas alimentares sustentáveis já são bem conhecidos. A lista inclui solos saudáveis (como promovem a agricultura orgânica e regenerativa e a agroecologia), menos fertilizantes onde o excedente de nutrientes é alto, como em todos os países industrializados, rotações de culturas otimizadas, variedades de culturas adaptadas localmente, nenhuma produção de ração em terras agrícolas além do que é agronomicamente necessário e redução do desperdício de alimentos.
Edição: Virginie Mangin e Anand Chandrasekhar/fh
Adaptação: Fernando Hirschy
Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch
Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch
Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!
Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.