
Conflitos com UE podem prejudicar suíços com cidadania única

A nova cláusula de salvaguarda entre Suíça e União Europeia, criada para conter a imigração, pode gerar tensões que atingiriam diretamente os suíços que vivem na Europa. Embora os riscos sejam mais teóricos, cidadãos com nacionalidade exclusivamente suíça podem ser excluídos de benefícios sociais como forma de retaliação.
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A livre circulação de pessoas é especialmente controversa nos novos acordos entre a Suíça e Bruxelas. O Conselho FederalLink externo (n.r.: o corpo de sete ministros que governa a Su´íça e representa o Poder Executivo) admite abertamente que ela é o preço que a Suíça paga pelos demais acordos com o mercado interno, dos quais obtém benefícios econômicos.
Por que a Suíça quis uma cláusula de salvaguarda?
O governo federal também sabe que, internamente, a batalha será em breve travada em torno da imigração. Além disso, todos os sinais e as experiências prévias indicam: se houver novamente atritos entre Berna e Bruxelas, o motivo mais provável será a livre circulação de pessoas.
Isso foi levado em consideração nos novos acordos. Não à toa, a Suíça insistiu até o último momento em uma cláusula de salvaguarda, que lhe permite frear a imigração em caso de necessidade – e não à toa a UE aceitou essa exigência. (AquiLink externo está o texto do tratado, na página 21).
Contudo, quão eficaz é essa cláusula de salvaguarda ainda não está claro. Para poder ativá-la, a Suíça teria primeiro de comprovar que a imigração está causando “graves problemas econômicos ou sociais”, por exemplo, na forma de um forte aumento no desemprego, no número de trabalhadores fronteiriços ou na taxa de pessoas dependentes de assistência social.
O que acontece se a Suíça ativar a cláusula de salvaguarda?
O procedimento é claro. Mas quais seriam as consequências para a Suíça se a cláusula for ativada, ainda permanece em aberto.
O processo é o seguinte: se a imigração para a Suíça ultrapassar certos limites pré-definidos, o Conselho Federal pode convocar o tribunal arbitral conjunto. Esse tribunal analisará se a Suíça tem o direito de adotar medidas de restrição. Nesse caso, porém, a UE também passa a ter uma ferramenta à disposição: ela pode compensar os prejuízos que sofrer devido à ativação da cláusula de salvaguarda suíça.
Como a UE pode reagir à cláusula de salvaguarda?
Interessantes são os cenários que podem surgir a partir disso. Até agora, a Suíça tem uma história marcada por dificuldades sempre que não correspondeu às expectativas de Bruxelas.
Prevaleceu uma política de “alfinetadas” (Nadelstiche), ou seja, medidas de pressão que a UE implantou, especialmente após o “não” suíço ao Acordo-Quadro em 2021.
Exemplos disso são: a recusa de participação no programa de pesquisa Horizon, no programa de intercâmbio Erasmus, bem como entraves na homologação de produtos médicos suíços na UE. Um pouco mais atrás no tempo está a recusa em reconhecer a equivalência das bolsas de valores.
Por que os suíços residentes no exterior podem entrar na mira?
Contra todas essas medidas, a Suíça protestou reiteradamente com o argumento de que eram “irrelevantes ao tema” e “desproporcionais”. A experiência suíça com a política de alfinetadas de Bruxelas está agora refletida no novo tratado. Nele, está escrito, pela primeira vez, que medidas compensatórias devem ser pertinentes ao assunto e “proporcionais”.
Pertinente ao tema significa: se a Suíça ativar a cláusula de salvaguarda, a UE, no futuro, também deverá adotar medidas compensatórias no âmbito da livre circulação de pessoas. Essa coerência temática foi uma exigência da Suíça e, ao menos até certo ponto, foi alcançada.

Com isso, os suíços e suíças no exterior na UE acabam quase inevitavelmente entrando na mira. Eles são – junto com os cidadãos e cidadãs suíços que emigram para a UE – os únicos diretamente afetados pela livre circulação de pessoas.
“É concebível que os suíços e suíças residentes no exterior possam ser excluídos de certos benefícios sociais nos países da UE onde residem”, descreveu o jornal NZZ um cenárioLink externo desse tipo, ou seja, exclusão de seguros-desemprego ou de benefícios relacionados a doença, idade ou família.
Quantos cidadãos e cidadãs suíços seriam concretamente afetados?
O jornal também cita o professor emérito de Direito Europeu e defensor da integração europeia, Thomas Cottier: “O objetivo é que doa”. A medida afetaria cerca de meio milhão de suíços residentes no exterior.
De fato, 64% dos 820 mil suíços que vivem no exterior residem em países europeus, principalmente na França, seguidos pela Alemanha e pela Itália. Porém, uma grande parte deles possui dupla cidadania, ou seja, também são cidadãos da União Europeia.
Para estes, eventuais medidas compensatórias não seriam facilmente aplicáveis. Assim, restaria como possível alvo de potenciais restrições a comunidade de suíços com cidadania única que vive na UE. Estes somam 118 mil pessoas (dados de 2024).
Uma medida sobre os suíços no exterior teria algum efeito?
Mas será que a União Europeia conseguiria realmente pressionar a Suíça por meio dos suíços e suíças residentes no exterior? E qual é, afinal, a probabilidade de que justamente essa comunidade seja afetada por medidas compensatórias?
Ela é mais de natureza teórica. O NZZ observa que uma medida contra os suíços residentes no exterior poderia criar pressão interna; sobretudo porque eles têm um lobby relativamente poderoso.
No entanto, há fortes argumentos que contrariam essa visão: em primeiro lugar, a capacidade da UE de influenciar a política suíça por meio de medidas direcionadas a 118 mil suíços com cidadania única seria bastante indireta.
Em segundo lugar, o professor de ciências políticas Marc Bühlmann, da Universidade de Berna, relativizou recentemente no programa “Let’s talk” a força do lobby dos suíços residentes no exterior. Segundo Bühlmann, essa comunidade é demasiado heterogênea e carece de meios de bloqueio no território suíço para exercer pressão política significativa.
Ainda menor seria o impacto sobre os cidadãos suíços que desejam emigrar para a UE. Embora fosse possível dificultar ou até impedir sua entrada, eles simplesmente não constituem uma massa crítica capaz de influenciar decisões políticas.
A emigração líquida anual da Suíça para a UE é de apenas cerca de seis mil pessoas – contra 64 mil imigrantes líquidos provenientes do espaço da UE/EFTA.

Em terceiro lugar, tudo isso também se relativiza ao considerarmos as alternativas: uma medida compensatória dentro do acordo de livre circulação de pessoas é, para a UE, apenas uma entre várias opções – e provavelmente nem sequer a preferida.
Como funciona o modelo de escalonamento na cláusula de salvaguarda?
Para resolver conflitos, a Suíça e a UE estabeleceram, por assim dizer, três níveis de escalonamento. O procedimento de menor intensidade é recorrer ao comitê misto, composto por especialistas de ambas as partes. Esse comitê é acionado principalmente quando há necessidade de interpretação dos acordos e tratados existentes.
O segundo nível de escalonamento é recorrer ao tribunal arbitral, composto paritariamente. Como já mencionado, uma compensação neste procedimento teria que ser proporcional e relacionada ao tema em questão.
Qual reação da UE é mais provável?
O tribunal arbitral pode, no caso de uma cláusula de salvaguarda ativada, chegar à conclusão de que os problemas da Suíça não se devem à imigração ou não são graves o suficiente.
Nesse caso, a Suíça teria de recuar. Mas se, ainda assim, ela decidisse controlar a imigração por conta própria, a UE poderia acionar um terceiro nível de escalonamento: o mecanismo “normal” de resolução de disputas entraria em vigor.
Nesse cenário, a UE teria todo um arsenal para exercer pressão sobre a Suíça. “Nessa configuração, a UE também poderia adotar medidas compensatórias nos outros acordos do mercado interno”, explica a especialista em direito europeu Astrid Epiney, da Universidade de Friburgo.
Ou seja, justamente onde dói mais: nas áreas que afetam a economia suíça ou o fornecimento de energia. “Porém, apenas nos acordos de mercado interno, não, por exemplo, na cooperação em pesquisa ou no sistema de asilo”, acrescenta ela. A agricultura também permanece explicitamente excluída.
Haverá novas alfinetadas?
Um tal mecanismo de compensação seria, então, tão desprovido de relação direta quanto as antigas alfinetadas. A novidade, porém, é que agora também se aplica o princípio da proporcionalidade.
“Sobre a proporcionalidade, pode até haver disputas”, explica Astrid Epiney. Mas mesmo para isso existe agora um tribunal arbitral. E, nessa questão, o Tribunal de Justiça da União Europeia ficaria de fora.
Epiney fala de um “mecanismo regulado de resolução de conflitos” que a Suíça antes não tinha. Para a jurista em direito europeu, a era das alfinetadas está encerrada: “Quando falta um procedimento ordenado, isso sempre leva as partes contratantes a pensar em como impor seus interesses de outras formas”, diz ela. Isso agora foi superado.
Até aqui, os suíços e suíças residentes no exterior estavam entre os mais firmes defensores dos Acordos Bilaterais, pois se beneficiavam muito da livre circulação de pessoas e, em geral, dependem dela. Com os novos acordos, contudo, a situação se torna mais ambígua: eles se tornam também um alvo em potencial no âmbito da livre circulação de pessoas, embora, provavelmente, apenas na teoria.
Edição: Samuel Jaberg
Adaptação: Karleno Bocarro

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A população suíça no exterior em cinco gráficos

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