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As eleições da Geórgia nos EUA mostram as porcas e parafusos da engrenagem democrática

Alexandra Dufresne

A professora de direito Alexandra Dufresne, americana que vive em Zurique, enxerga nos recentes fatos políticos dos EUA tanto pontos positivos como sinais de advertência para as democracias mundiais.

O ataque à capital dos Estados Unidos por extremistas de direita, compreensivelmente, dominou as manchetes de notícias em todo o mundo. Quase todos os americanos que conheço estão com raiva, assustados e com o coração partido. Com 373.000 mortos vítimas da Covid-19, devastadoras perdas de empregos e milhões de crianças impossibilitadas de frequentar a escola, parece que uma época particularmente sombria toma conta dos Estados Unidos.

No entanto, não se deve permitir que um vídeo dramático de violência extremista ofusque uma tremenda – e histórica – boa notícia. Esta notícia é monumental para os Estados Unidos e também impactará a Europa.

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No início do mês, dois candidatos democratas, Raphael Warnock e Jon Ossoff, venceram as eleições de segundo turno para o Senado na Geórgia, dando aos democratas a maioria na câmara de 100 cadeiras e conferindo o voto de desempate à vice-presidenta eleita, Kamala Harris.

O controle dos democratas sobre o Congresso é essencial para a capacidade do presidente eleito Joe Biden de concretizar suas propostas políticas em relação à saúde, economia, imigração e meio ambiente. Embora o poder executivo possa tomar algumas decisões por meio de ação executiva, as reformas em grande escala só podem acontecer por meio do processo de legislação e análise conduzido pelo Congresso. O controle na mão dos democratas também significa que os republicanos não poderão bloquear ou atrasar a nomeação de juízes federais ou outras nomeações importantes vindas do presidente. Isso permitirá que o governo Biden comece a trabalhar imediatamente, o que deve ser feito para manter a pandemia Covid-19 e a economia sob controle.

O placar em favor dos democratas também afetará a Suíça e o resto da Europa. O efeito mais significativo provavelmente será no campo do combate às mudanças climáticas, uma das principais prioridades do governo Biden. Embora o presidente eleito possa reverter várias portarias prejudiciais ao meio ambiente outorgadas por Trump e voltar a aderir ao Acordo de Paris sem o apoio do Congresso, ele precisará de ambas as casas legislativas para fazer investimentos significativos e duradouros em energia verde.

Capacitando eleitores

Eu cresci em Atlanta, Geórgia. Saí em 1992, quando tinha 18 anos e retornei poucas vezes para a terra natal. Ao longo dos anos descobri que é quase impossível explicar a alguém que não visitou a Geórgia o grau de segregação e desigualdade racial, ou quão politicamente conservador o estado é – ou foi. Eu e maioria dos meus amigos e colegas da América do Sul – de todas as origens raciais e étnicas – estamos radiantes com os resultados das eleições, mas profundamente surpresos. Eu pessoalmente nunca fiquei tão feliz por estar errada.

A maioria atribui a vitória à liderança inspiradora de Stacey Abrams, ex-membra da legislatura do estado da Geórgia e ex-candidata a governadora, que começou a lançar as bases para as vitórias democratas na Geórgia há muitos anos, quando muitos pensavam que seu sonho era impossível. Se você escutar Abrams falando ou ler seu livro, Our Time is NowLink externo, perceberá imediatamente que ela é uma visionária de raro talento político.  

Mas Abrams não fez isso sozinha. Sua liderança foi eficaz porque inspirou milhares de pessoas a investirem na infraestrutura – os parafusos e porcas – da política eleitoral: base, empoderamento comunitário e mobilização. Ela se concentrou não apenas nas metas políticas gerais, mas também nos detalhes intermináveis ​​e meticulosos do combate às técnicas de supressão de eleitores para proteger o direito de voto de todos. Legiões de ativistas e organizações de baseLink externo trabalharam para obter o votoLink externo em comunidades anteriormente privadas de direitos ou ignoradas – passando de um modelo “transicional” de política, em que os candidatos pedem o apoio dos eleitores durante a temporada de campanha, para um modelo baseado em empoderamento, em que os ativistas locais e as lideranças das comunidades envolvem seus vizinhos em questões importantes, mesmo durante anos não eleitorais. Esses grupos construíram um terreno comum entre eleitores rurais, urbanos e entre eleitores de diversas origens raciais ou étnicas.

Toda essa dedicação voltada às lideranças e mobilizações locais valeu a pena. Mais de 4,4 milhões de pessoas, 60% dos eleitores elegíveis, votaram no segundo turno do Senado, o que é mais do que o dobro do recorde anterior de comparecimento em um segundo turno. Os afro-americanos e particularmente os jovens votaram em taxas históricas – o que é notável, dados os desafios da pandemia.

Nenhuma democracia é perfeita

Os últimos quatro anos ensinaram muitos americanos a não considerar nossas instituições democráticas como algo garantido. Sempre me intriga quando outros americanos expressam choque e descrença de que agora estamos nos comportando como “um daqueles outros países” que associamos à violência política. Grande parte da minha carreira foi passada representando pessoas que fugiam de perseguições políticas. Mas é óbvio: os EUA podem ser como outros países que enfrentam a violência política. Esquecemos 1775, 1860, 1968? Nós realmente pensamos que éramos especiais?

Não é preciso ler muita história para reconhecer que a tirania, a anarquia e a guerra são o padrão e que a paz, o Estado de direito e a democracia são a exceção. A democracia é uma coisa frágil. Você tem que cuidar dela, mesmo quando – especialmente quando – a sua democracia particular não está em crise.

Muitas vezes ouço pessoas na Suíça expressando sentimentos de surpresa semelhantes ao que ouço nos Estados Unidos. A Suíça é um estado pacífico, democrático e governado pelo Estado de direito em um mundo caótico. Mas as coisas que fazem a democracia funcionar – um sistema educacional forte, um ambiente de mídia robusto, igualdade social, diálogo aberto, uma compreensão crítica da própria história, limites ao poder das corporações e outros interesses especiais, um sistema de justiça imparcial, infraestrutura eleitoral sólida – consomem muita energia e vigilância para se manterem. E quando alguém vê as rachaduras no sistema pode ser tarde demais para evitar muitos dos danos.

A experiência nos Estados Unidos nos últimos quatro anos me fez aconselhar as pessoas na Suíça a serem vigilantes quanto à proteção das normas necessárias para tornar a democracia sustentável. Isso inclui pessoas do lado progressista do debate. Algumas organizações progressistas, amigos e líderes de pensamento – inclusive na Suíça – compartilham informações nas redes sociais que são imprecisas ou enganosas. As deturpações podem parecer inofensivas por si mesmas, mas elas diminuem – ainda que gradativamente – o bem público da informação precisa.

Fazendo o trabalho duro

O problema é que zelar pela democracia de forma eficaz costuma ser enfadonho, trabalhoso e tedioso. É mais fácil reclamar nas redes sociais do que ligar de volta e bater de porta em porta. É mais fácil culpar o tio por acreditar em teorias da conspiração do que pesquisar o mercado da mídia que o teria radicalizado e os fatores econômicos e sociais que o teriam levado a ser um alvo fácil para a radicalização baseada em queixas. É muito fácil privilegiar as vozes dos ricos e poderosos sobre as de pessoas que foram marginalizadas ou tratadas como invisíveis. Embora seja essencial se envolver em tópicos chamativos importantes – como o combate às mudanças climáticas – é, neste momento, ainda mais importante se envolver com questões estruturais, como propostas controversas para a definição de distritos eleitorais, sistemas de votação do tipo “o vencedor leva tudo”, privação de direitos do eleitor, primárias polarizadas e lobbies corporativos descomunais.

Em relação à construção da democracia nos Estados Unidos, é essencial que todos façam sua parte. É profundamente injusto esperar que pessoas das comunidades de cor – especialmente mulheres – continuem a fazer todo o trabalho pesado. Fazer a própria parte não significa compartilhar memes nas redes sociais ou envergonhar a família que apoia Donald Trump. Significa dedicar um tempo para se educar em questões estruturais e unir forças com organizações sem fins lucrativos de defesa, ativistas e organizações comunitárias para reconstruir a infraestrutura de nossas instituições democráticas em nível local e nacional. Cidadãos americanos no exterior podem fazer sua parte pesquisando reformas eleitorais, arrecadando fundos para organizações políticas de base, obtendo votos, ligando para membros do Congresso, escrevendo cartas aos editores, amplificando as vozes de ativistas de base, compartilhando as melhores práticas de outros países, ajudando as pessoas com o registro e os requisitos técnicos para votação ou participando de protestos e manifestações.

Esse trabalho infraestrutural de porcas e parafusos é necessário porque no final do dia não é difícil incitar as pessoas a usarem a violência para derrubar as coisas. Não é complicado persuadir as pessoas de que o sistema é fundamentalmente manipulado contra elas, que “verdade” é o que é conveniente no momento, flertando com teorias da conspiração. E não é difícil convencer-se de que o sofrimento dos “outros” – sejam liberais ou conservadores – não é real ou não importa.

É complexo e difícil, no entanto, inspirar as pessoas a canalizar sua resiliência duramente conquistada para a construção de algo real, robusto e potencialmente duradouro. Felizmente, o trabalho árduo de indivíduos e comunidades na Geórgia demonstrou que, mesmo em meio a uma pandemia, o investimento em atividades básicas de organização e empoderamento da comunidade pode servir de exemplo para democracias em todos os lugares.  

Alexandra Dufresne leciona direito dos EUA, direito internacional e direitos da criança em instituições de ensino superior na Suíça. Ela trabalha com refugiados, ONGs de direitos humanos e desenvolvimento na Europa e é cofundadora da ‘Action Together: Zürich, CH’, um grupo de ação de cidadãos dos EUA na Suíça.

Os pontos de vista expressos no presente artigo são unicamente da autora e não necessariamente refletem os pontos de vista de SWI swissinfo.ch .

Série de opinião

SWI swissinfo.ch publica artigos de opinião de colaboradores que escrevem sobre uma ampla gama de tópicos – questões suíças ou que afetam a Suíça. A seleção dos artigos apresenta uma diversidade de opiniões que visa enriquecer o debate sobre os temas discutidos.

Adaptação: Clarissa Levy

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