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Como uma organização regulamenta prestadores de serviços no setor militar

Militares ao lado de veículos
funcionários da firma de segurança Blackwater embarcando em um helicóptero na cidade iraquiana de Hillah em setembro de 2007. Wathiq Khuzaie/Keystone

Forças privadas de segurança estão substituindo os soldados nos campos de batalha de hoje. Através de um código de conduta, a Suíça pretende fazê-las respeitar o direito internacional.

De seu escritório, situado em uma torre comercial no bairro internacional de Genebra, Jamie Williamson acompanhou de perto quando vieram à tona novos detalhes sobre o recrutamento de prisioneirosLink externo e possíveis crimes de guerraLink externo praticados pelo “Grupo Wagner” – depois que um de seus recrutas desertou e foi para a Noruega em janeiro. Esse exército privado, liderado por um oligarcaLink externo russo, tem sido fundamental para reforçar a presença da Rússia na Ucrânia e em vários países africanosLink externo

Este é um dos exemplos mais evidentes da forte tendência à privatização da guerra e da segurança. Dados a respeito do número exato de recrutas e do volume de dinheiro envolvido em segurança privada são escassos, divergindo, com frequência, entre especialistas do setor. Segundo a Future Market Insights, o valor desse mercado foi de 80 bilhões de dólares em 2022, com expectativa de crescimento médio de 3,7% até 2032.

Entretanto, a Vantage Market Research apontava um valor de 242 bilhões de dólares para o setor em 2021, com projeção de crescimento anual de 7,2% até 2028. A estimativa inclui operações militares. O Centro Genebrino para a Governança do Setor de Segurança (DCAF) estima que em 2017, em 2017, pelo menos 11 milhões de funcionários foram empregados por 77 mil empresas privadas militares e de segurança. Os números são conservadores, pois o DCAF conta apenas empresas de segurança privada registradas e seus funcionários e não inclui os significativos mercados obscuros que existem para os serviços de segurança privada. Acredita-se que os números tenham aumentado desde 2017.

Williamson trabalha justamente para prevenir crimes de guerra como esses relatados sobre o Grupo Wagner. Ele dirige a associação responsável pelo Código Internacional de Conduta de Provedores de Segurança Privada (ICoCA, na sigla em inglês).

O Código remete a uma iniciativa suíça, criada em 2010 na sequência da guerra conduzida pelos EUA no Iraque, depois que prestadores contratados pela empresa Blackwater mataram 14 civisLink externo em uma praça central de Bagdá. Governos, forças de segurança privada e organizações da sociedade civil entraram em acordo sobre uma série de princípios comuns, tendo em vista o respeito aos Direitos Humanos e ao Direito Humanitário. Em 2013, foi criado então o ICoCA, entidade registrada como organização suíça sem fins lucrativos. 

“Esse campo é muito mais amplo do que o Grupo Wagner”, explica Williamson em seu pequeno escritório, referindo-se às coberturas do Código. “Segurança é algo oferecido em qualquer lugar, e onde quer que haja risco de violação dos direitos humanos por serviços privados, o Código é relevante”, completa. Isso inclui centros de asilo, se forem vigiados por prestadores de serviço contratados; operações de mineração, que dependem de segurança externa; ou zonas de guerra, quando os militares terceirizam tarefas como treinamento, transporte ou gerenciamento de munições.

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Elevar os padrões, em uma indústria sigilosa e em crescimento, pode parecer um exercício fútil. Uma transparência maior é percebida como risco de reputação ou de segurança por muitos prestadores privados, mesmo que a maioria das empresas não lide com armas. A parcela de mercado que o ICoCA cobre é ínfima.

No site da organização, há 117 empresas listadas, o que significa que elas teriam se comprometido a operar de acordo com o Código, cumprindo suas exigências de relatório, monitoramento e avaliação. Apenas 54 entre essas empresas tiveram suas práticas de negócios revistas externamente, o que as qualifica, assim, como “membros certificados”.

Algumas das maiores organizações de segurança, como a G4S ou a GardaWorld, subscreveram agora o Código, levando outras a seguir o exemplo. “As empresas que são membros do ICoCA operam em mais de 50 lugares diferentes, reunindo dezenas de milhares de funcionários”, declara Williamson.

Constellis, o grupo que absorveu a estrutura remanescente da Blackwater, após várias rodadas de rebrandingLink externo da empresa, certificou em 2017 sua subsidiária ativa no Afeganistão e no Iraque. Michelle Quinn, vice-presidente global para desenvolvimento de negócios da Constellis, passou a integrar o conselho-diretor do ICoCA. “Uma avaliação detalhada deixou claro que eles são muito diferentes da Blackwater,” justifica Williamson. 

Apostando na prevenção

A princípio, o ICoCA está apto a envolver qualquer empresa que tenha impacto neste setor, até mesmo o próprio Grupo Wagner. “Porém, para eles, seria praticamente impossível se tornarem membros”, esclarece Williamson, que trabalhou para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC) em diversas áreas de crise antes de se juntar ao ICoCA. “Mas temos que abarcar as empresas com históricos negativos — é exatamente isso que vai fazer a diferença para prevenir qualquer delito futuro e garantir a responsabilização”. 

Na Ucrânia, contudo, onde os prestadores do Grupo Wagner estão lutando na guerra de Vladimir Putin, fazer contato com a empresa não surtiu os efeitos pretendidos, diz Williamson. “O modelo na Ucrânia é novo. Eles não são o Estado, mas estão claramente ligados ao Estado – uma ala privada do militarismo russo. O debate e as soluções migraram para um nível muito mais político e governamental”, completa.

Do ponto de vista legal, os combatentes do Grupo Wagner na Ucrânia não são mercenários. As Convenções de Genebra definemLink externo que os mercenários não podem ser nacionais de uma das partes envolvidas no conflito e precisam estar motivados pelo desejo de obter lucros particulares.

Williamson explica, contudo, que, em outros países, a maior parte dos serviços oferecidos pelo Grupo Wagner poderia estar sendo executada por qualquer empresa de segurança. “Eles cooperam com mantenedores da paz e treinam tanto a polícia local, quanto forças militares. Muitas empresas ocidentais fizeram exatamente isso durante décadas”, observa.

O ICoCA, por sua vez, tenta abordar qualquer prestador, para que ele compreenda os parâmetros legais e os limites de suas ações. O objetivo é evitar danos civis, mas o ICoCA também explica aos prestadores qual é o ponto no qual eles passariam dos limites e se tornariam, eles próprios, também combatentes, perdendo assim o status de civis.

“É tudo sobre prevenção”, diz Williamson. “Quando um tiro é disparado ou um civil ferido, aí já é tarde demais”, completa.

O poder do comprador

Os governos também precisam exercer um papel-chave no controle e na regulamentação dos prestadores de serviços de segurança privada. Em 2008, diversos Estados reafirmaram suas obrigações de garantir padrões mínimos, para que empresas de segurança privada possam atuar em seus territórios. Esses Estados aderiram ao Documento de MontreuxLink externo, outra iniciativa da Suíça e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, para aumentar a concordância das empresas privadas militares e de segurança com o Direito Internacional.

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Como clientes de prestadores de segurança contratados, as autoridades nacionais determinam os padrões que esperam que essas empresas respeitem. Os Estados Unidos exigem, por exemplo, que os prestadores contratados para segurança diplomática em ambientes de alto risco sejam certificados pelo ICoCA. Outros países, como o Reino Unido, incluem referências em documentos de aquisições. Mas quanto mais as atividades em questão estejam associadas a operações militares, mais complicado se torna qualquer tipo de supervisão, visto que as informações são frequentemente sigilosas, explica Williamson. 

De maneira geral, o ICoCA continua sendo um clube ocidental, do qual participam governos de países como Austrália, Canadá, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido e EUA. “Encorajamos todos os governos a se unirem ao ICoCA, com o objetivo de aprimorar os padrões de segurança”, escreve o ministro suíço das Relações Exteriores, em resposta a uma pergunta da SWI sobre o status da Rússia e da China. “Com sede em Genebra, o ICoCA interage com missões permanentes relacionadas a padrões de segurança privada”. 

Atualizando a legislação nacional

Em 2013, a Suíça também atualizou sua legislação federal no sentido de banir empresasLink externo dentro de suas fronteiras que participam de hostilidades no exterior. Essa mudança veio depois que a British Aegis Defence Services, uma das maiores empresas envolvidas com operações de guerra no Iraque e no Afeganistão, transferiu sua sede para a Basileia, na Suíça.

Garantir a neutralidade suíça foi um dos fatores que levaram à adoção da lei que proíbe expressamente empresas sediadas no país de prestarem serviços ligados a violações sérias dos direitos humanos. A lei exige que as empresas suíças notifiquem previamente as autoridades se pretenderem prestar serviços de segurança fora do país — e as obriga a aderir ao Código Internacional de Conduta.

Enquanto o Grupo de Trabalho da ONU, voltado para a questão do envolvimento dos mercenários, elogiou, em uma visita à Suíça em 2019Link externo, o empenho internacional do país neste contexto, a regulamentação interna dos serviços de segurança oferecidos dentro do país foi criticada: “A ausência de padrões uniformes no setor representa uma preocupação especial, visto que o número de agentes de segurança privada supera o número de policiais”, escreveram os especialistas.

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Zwei männliche Soldaten im Schatten.

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Além dos governos, outros agentes capazes de influir em uma melhoria da conduta da segurança privada são as corporações multinacionais. “A avalição cautelosa dos direitos humanos é a chave”, enfatiza Williamson. Como clientes, as multinacionais têm voz na questão dos padrões a serem seguidos pelos prestadores de serviços de segurança que contratam.

A BP, companhia britânica de petróleo e gás, que se manteve como observadora do ICoCA durante anos; a Glencore, do setor de commodities; e a Holcim, empresa global que fabrica materiais de construção, acabaram de aderir ao Código. Outras grandes corporações, que dependem de serviços de segurança externa para suas operações globais, podem vir a fazer o mesmo. A ideia é se amparar em um protocolo estabelecido, para evitar abusos de direitos por parte dos prestadores contratados – evitando assim também as repercussões que isso poderia acarretar para as respectivas multinacionais.

Prestação de contas em falta

Os especialistas da ONU em questões relativas aos mercenários apreciam o Código de Conduta, mas exigem mais. Em um relatório recenteLink externo do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, acentuou-se a necessidade de um tratado internacional, “a fim de assegurar uma regulamentação homogênea das empresas privadas militares e de segurança em todo o mundo, garantindo adequadamente a proteção dos direitos humanos”.

Sorcha MacLeod, do Grupo de Trabalho da ONU, explica por e-mail que os mercenários raramente são responsabilizados pelas atrocidades cometidas. O sigilo em torno de tais agentes de segurança privada, estruturas empresariais complexas e lacunas na regulamentação são as razões disso, conclui MacLeod.

Quatro guardas da empresa Blackwater foram condenados por um tribunal dos EUALink externo por assassinatos em Bagdá, mas, mais tarde, receberam um indultoLink externo do ex-presidente estadunidense Donald Trump. Um primeiro caso contra o Grupo Wagner foi rejeitado por um tribunal russo em 2022Link externo e está agora pendente no Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

“Uma das maiores mudanças recentes em relação ao emprego de mercenários é a escala. Vemos agora milhares de mercenários sendo mobilizados em múltiplos conflitos armados. Historicamente, esses números eram bem menores”, explica MacLeod. 

Em seu escritório genebrino, Jamie Williamson concorda que os agentes privados chegaram para ficar: “Vislumbramos mais grupos como o Wagner no futuro. Será impossível para nós retroceder a um mundo onde você só tem forças armadas convencionais”, conclui o especialista. 

Uma das consequências diretas é a linha tênue entre operações em áreas com e sem conflito. Williamson chama isso de “questões em comum”: problemas como condições injustas de trabalho, assédio sexual, falta de treinamento, uso indevido da força, apreensão ou detenção vão ocorrer em qualquer contexto.

Em um setor, no qual os recursos são facilmente transferíveis, os nacionais de terceiros países, que trabalham como guardas no Iraque, podem ir para Copa do Mundo no Catar ou para as Olimpíadas de Paris na sequência, explica Williamson. “Você tem os mesmos motores de mercado. A indústria da segurança é o espectro”, completa.

Edição: Virginie Mangin

Adaptação: Soraia Vilela

Artigo atualizado em 30 de março para especificar as estimativas do Centro Genebrino para a Governança do Setor de Segurança (DCAF) para as empresas privadas de segurança.

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