
Diário de viagem bem-humorado nos mostra a Suíça de 1837

O teólogo alemão Carl August Wildenhahn documentou sua viagem pela Suíça do século 19 em uma série de observações bem-humoradas e ilustrações semelhantes a histórias em quadrinhos.
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No início do verão de 1837, Carl August Wildenhahn subiu numa carruagem e partiu de Dresden, na Alemanha, para a Suíça. O teólogo pretendia ver com seus próprios olhos a terra de seus sonhos, com suas “geleiras eternas e graciosas moças de Berna”. Ele documentou sua viagem de três semanas com anedotas divertidas e ilustrações no estilo das nossas atuais histórias em quadrinhos.
Este artigoLink externo foi publicado originalmente no blog do Museu Nacional Suíço em 9 de fevereiro de 2023.
“Saímos de Art[h] às quinze para as seis. O nosso guia, pequeno e robusto, nos conduziu pelo caminho. Seu nome é Xavier Augusti e ele é de Art[h], onde seu pai é barqueiro e pescador. Esse rapaz tem 13 anos e já é um alpinista calejado, sempre marchando à frente, absolutamente infatigável.
De início, o caminho nos leva até Goldau – um vilarejo que foi soterrado por uma avalanche em 1806 e que ainda exibe cicatrizes da devastação – antes de subir a montanha. Grandes gotas de suor logo começam a escorrer pela minha testa. Algumas cabanas de pastores surgem à vista, formando um cenário muito pitoresco. Fazemos uma breve pausa em uma pousada chamada Dächli, que fica empoleirada nas rochas como um ninho de águia. Para recuperar as forças, tomamos um refresco de cereja, que, de acordo com nosso pequeno amigo Xavier, tinha um sabor aceitável.
Enquanto estamos lá, vemos cabras pretas e marrons descendo por penhasco tão íngreme que o deixaria tonto. Já são 7 horas e ainda temos 3 horas de caminhada montanha acima se quisermos chegar ao cume hoje”.

A subida do Rigi é um capítulo particularmente divertido do diário de viagem de Wildenhahn, no qual ele encontra alguns personagens “curiosos” e pinta, de passagem, um quadro surpreendentemente preciso dos primórdios do turismo alpino.
“Segunda-feira de manhã, 7 horas. É aqui que começa o caminho das quatro estações que leva à capela de peregrinação Righi Mater, no local conhecido como Klösterli [pequeno convento]. Essa rota de peregrinação é muito popular. À nossa frente há vários grupos, menores e maiores. Entre eles, uma mulher se destaca pela pressa devota com que passa pelas estações, ajoelhando-se e orando diante de cada uma delas”.

“Xavier parece conhecer muito bem tudo isso, mas mal conseguimos entender uma palavra do que ele diz, pois fala um dialeto suíço-alemão muito carregado. A nona estação é suficiente para fazer mulheres grávidas abortarem e criminosos se arrependerem. Se olharmos através das grades para a penumbra da capela, vemos um par de olhos penetrantes brilhando. Eles pertencem a Cristo, com um par de olhos de vidro, semiprostrado sob o peso da cruz.
Ao seu lado, uma Maria chorando, um judeu sorridente e um carrasco empunhando um chicote. São todas figuras de madeira pintadas, cruéis e horrendas, maiores do que o tamanho natural. Se a luz da lua iluminasse dentro da capela, a cena faria qualquer espectador se arrepiar. E, para piorar a situação, começou a chover torrencialmente. Estávamos cercados pela escuridão e pela neblina. Abrigamo-nos na pousada Staffel, onde fomos muito bem recebidos.
Enquanto isso, a chuva caía lá fora em gotas de chumbo. Naquele momento, um estranho entra no restaurante, seu largo chapéu de palha encharcado, escorrendo tanta água que parecia uma fonte…”

“O recém-chegado se mostra um homem muito simpático, um jovem médico de Liechtensteig, perto de St. Gallen, que já havia subido o São Gotardo em abril para estudar uma doença respiratória que estava ocorrendo na região. Jantamos juntos e saboreamos o vinho Markgräfler – que elevou nosso espírito e soltou nossas línguas – até as onze da noite.
Às dez horas da manhã seguinte, as nuvens se dissiparam, proporcionando-nos uma vista maravilhosa de Lucerna, Schwyz e Zug. Feixes de luz iluminavam a imensidão de tons de verde, salpicada de cidades e vilarejos acolhedores. Tudo parece estar à distância de um toque, e é tão perfeito que poderia ser uma pintura. Ver o mundo natural de Deus em toda a sua glória e esplendor é uma experiência verdadeiramente humilde e edificante. Estávamos com as energias renovadas e, em meia hora, chegamos ao cume (Rigi Kulm), onde fomos recebidos com simpatia em uma pequena pousada bem-arrumada. Mas pouco se falou sobre a vista – todos estavam mais interessados no que estava acontecendo lá dentro”.
“Na grande sala de jantar, havia três jovens: um de Boston e dois de Zurique. Eles haviam passado a noite aqui e não haviam gostado muito. Mas logo chegou um hóspede que trouxe um pouco de distração.
Um monge capuchinho – um homem alto e corpulento, vestindo uma túnica marrom rústica, um cordão branco na cintura. No seu capuz, um lenço de rapé azul; no bolso da manga, uma lata de rapé, que ele inala constantemente sem oferecer a ninguém. Trata-se do padre superior do convento – carrega consigo seu breviário e desfruta dos prazeres mundanos do café, do vinho, do pão e do queijo que o Senhor lhe concedeu. Conversamos em latim, com o qual ele parecia ter dificuldade, mas deu tudo certo. Ofereci-lhe um charuto, que ele recusou: ele me disse que ninguém mais no convento fuma, embora não seja proibido.

Ele nos conta que no inverno ficam apenas dois monges no convento, enquanto no verão há de seis a oito. O dono da pousada chama-se Bürgi, um homem taciturno e um pouco atarracado. Sua esposa, Lisette, por outro lado, é uma jovem bonita que usa roupas tradicionais suíças. Ela morou por algum tempo em Dresden, onde foi enganada por um marido infiel, e agora vive feliz no topo do Rigi, embora, segundo relatos, ela seja mais feliz durante o dia do que à noite.
Inicialmente, confundi a garçonete – uma jovem bonita – com a proprietária, ao que ela respondeu, corada: “Perdoe-me, senhor, mas eu não sou a chefe”. Nessa hora, aparece um inglês com sua esposa. Eles estão aqui há três dias à espera de um bom tempo. Ele tem uma aparência inglesa bem avermelhada, usa um longo mackintosh [sobretudo impermeável tipicamente britânico, ndt] com botões de prata semelhantes a moedas e carrega consigo um guia para viajantes”.
Há algo de cômico nos momentos passados no Rigi. Enquanto o monge capuchinho explica em latim por que não fuma, o inglês, frustrado com o tempo ruim, desaparece repentinamente na névoa densa…
“Então, um sentimento desesperado se apossou dele, que saiu às pressas pela noite enevoada. A mulher e o guia o seguiram, mas ele desaparece no ponto marcado por uma cruz – o local mais perigoso, onde um passo em falso significa uma queda de 5.600 pés. A neblina torna impossível procurá-lo. O guia o chama: ‘Mylord, onde você está? Suba, por favor, não vá lá embaixo! É perigoso!’. Não há resposta. A mulher olha de relance para a encosta íngreme. Mylord desapareceu.
O medo da morte me invade – o que Mylady fará? Ela sorri e volta para a pousada com o guia. Finalmente, depois de meia hora, Mylord se arrasta de volta. Eu mal podia esperar para ver a alegria deles ao se reunirem. Eu o acompanho até a pousada, onde Mylady está sentada no sofá, lendo. Mylord entra. Não há cumprimentos nem perguntas. Eles sequer trocam olhares. O guia balança a cabeça. Que povo estranho, os ingleses!
Aqui, como em toda a Suíça, o café é ruim, mas o leite é melhor, e é por isso que o café é sempre servido com leite. A biblioteca contém a maioria dos grandes clássicos franceses e alemães de ficção”.

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Por que o Jungfrau é chamado de Madame Meyer
“Enfim, a vista do topo do Rigi. A neblina se dissipa lentamente, revelando a paisagem: a oeste, os lagos de Sempach, Hallwil e Baldegg. Entre eles, e mais além, vemos pequenas cadeias de montanhas e belos prados cercados por árvores, mas nenhum campo semeado. Para o leste: o lago de Zug em toda a sua glória, o lago d’Ägeri e o lago de Lauerz, com as ruínas de Goldau. É possível distinguir um pedaço do lago de Zurique e, mais além, os Alpes de Appenzell, cobertos de neve. Ao sul, os magníficos Alpes de Schwyz, nos quais o Mythen [montanha que faz parte dos Alpes de Schwyz, ndt] ergue-se como um avô imponente.
Abaixo e acima, podemos ver o Uri Rotstock e o Stanserhorn [montanhas dos Alpes de Uri e Alpes de Emmental, respectivamente, ndt]. Mas os Alpes Berneses ainda estão envoltos em nuvens, e só é possível distinguir sua silhueta. Um dos guias brincou que o Jungfrau [montanha cujo nome significa “virgem”, ndt], até então intocado, deveria ser chamado de “Madame Meyer”, depois que Johann Rudolf Meyer e seu irmão, Hieronymus, o escalaram pela primeira vez.
Ao nosso lado está o inglês, com as abas largas de seu gorro de pele dobradas para baixo e um mapa na mão. Ele é acompanhado pelo guia, que o segue por toda parte, explicando-lhe tudo enquanto gesticula no ar com seu guarda-chuva. Mylady está por perto, tremendo de frio. Ela segura seu chapéu de palha com as duas mãos, andando para cima e para baixo sob o vento gelado e carregando seu alpenstock [bastão pontiagudo usado por alpinistas, ndt] debaixo do braço”.

“Quando o sol aparece por trás das nuvens, o guia aponta para ele com seu guarda-chuva: ‘Mylord e Mylady, é o sol que vocês podem ver ali!’. ‘Ah, sim, o sol’, responde Mylady, soltando um ‘maldito’ quando uma forte rajada de vento a deixa revelando mais do que gostaria. Enquanto isso, Mylord gira várias vezes o mapa, e o guia precisa lhe mostrar em que direção o sol se põe. Congelados, saboreamos um jantar abundante, composto de sopa, batatas na manteiga, lúcio no molho, empada de frango, vitela assada com salada, carne assada com molho, pudim de maçã e todos os tipos de confeitos, nozes, conservas e tortas. É preciso ter o apetite de um suíço para comer tudo isso!
Às 3 horas, já estava de pé, tamanha a empolgação para ver o nascer do sol. Em pouco tempo, Mylord e Mylady, que – como descobrimos na véspera – são na verdade ingleses americanos, apareceram com seu guia, caminhando alegremente de um lado para o outro a fim de espantar o frio. Faltam-me palavras para descrever o espetáculo: o sol apareceu em toda o seu esplendor, seus raios iluminando os Alpes branco-prateados do Oberland Bernês. O sublime Jungfrau e seus imensos vizinhos oferecem a face ao sol até que suas bochechas nevadas coram de vergonha. Como somos afortunados! Mais do que Mylord, que, apesar das explicações do guia, ainda está tentando distinguir o Jungfrau”.
SWI swissinfo.ch publica regularmente artigos do blog do Museu Nacional SuíçoLink externo. Artigos sobre a história da Suíça são publicados várias vezes por semana em alemão, francês e inglês.
(Adaptação: Clarice Dominguez)

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