The Swiss voice in the world since 1935

Hero: como a conserva em lata virou símbolo da vida moderna suíça

imagem
Ervilhas em conserva e geleia de cereja da empresa Hero, produzidas entre 1900 e 1938 Musée national suisse

Um pequeno e discreto recipiente de metal, a lata floresceu durante os primeiros anos da sociedade de consumo, na década de 1950. A publicidade dos alimentos enlatados refletia as mudanças sociais e culturais da época.

A swissinfo.ch publica regularmente outros artigos do blog do Museu Nacional SuíçoLink externo sobre temas históricos. Esses artigos estão sempre disponíveis em alemão e, geralmente, também em francês e inglês.

A conserva em vidro foi inventada pelo francês Nicolas Appert no início do século 19, por incentivo de Napoleão. Em 1795, Napoleão, que precisava alimentar suas tropas, prometeu uma recompensa de 12.000 francos para quem encontrasse um método de preservação de alimentos. Nicolas Appert ganhou o prêmio em 1810, após a publicação de seu método de esterilização por calor.

A conserva, que foi aperfeiçoada nas décadas seguintes, era perfeitamente adequada às necessidades do exército. Os alimentos conservados podiam ser mantidos por muito tempo, e seu tamanho compacto facilitava o transporte. Durante o século 20, as conservas foram amplamente utilizadas para construir estoques, especialmente em épocas de instabilidade política. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o governo suíço incentivou a população suíça a comprar conservas para casos de emergência. Ou seja, as conservas eram ideais em situações de crise.

Nos anos do pós-guerra, a ascensão da sociedade de consumo levou a uma queda nas vendas do setor de conservas. Na Suíça, muitas empresas de conservas se viram forçadas a suspender a produção. Para se manterem competitivos e se destacarem da concorrência, os fabricantes precisaram se adaptar aos novos hábitos dos consumidores, fazendo mudanças radicais tanto em suas linhas de produtos quanto em suas estratégias de marketing.

imagem
A fábrica de enlatados Hero em Lenzburg, 1931. ETH-Bibliothek Zürich

A fábrica de conservas Hero, fundada em Lenzburg, no cantão de Argóvia, em 1886, foi particularmente bem-sucedida nessa época. A empresa, que já havia se estabelecido firmemente no mercado suíço antes da Segunda Guerra Mundial, quase quintuplicou suas vendas nos anos seguintes. Além de adaptar sua linha de produtos, a Hero também modificou sua estratégia de publicidade, alinhando-a com os desenvolvimentos sociais e culturais da época.

Preservação de valores e frutas

No início, a disponibilidade de produtos durante todo o ano era o principal argumento de venda da indústria de alimentos em conserva. A partir da década de 1920, as propagandas do setor prometiam alimentos disponíveis em todas as estações do ano. Ao mesmo tempo, as técnicas de esterilização por calor, em especial o famoso método Weck, permitiram que as pessoas experimentassem a “fabricação caseira”. Conforme declarou o Conselho de Administração da Hero em 6 de dezembro de 1950, essas técnicas teriam atrasado as vendas do setor de enlatados.

Na época, acreditava-se que o processo de esterilização por calor devia seu sucesso às donas de casa. Na edição de 22 de novembro de 1963 da revista FrauenblattLink externo, Heinrich Oswald, o futuro diretor-geral da Knorr Foods AG, falou sobre a culpa que as mulheres sentiam quando ofereciam às suas famílias alimentos pré-cozidos, como as conservas:

“Estudos sobre motivação parecem indicar, contudo, que essa tendência de consumo está ligada à ‘consciência pesada’ da dona de casa que sente, no fundo do seu coração, que precisa fazer uma contribuição maior do que a simples preparação de alimentos prontos para servir”.

Heinrich Oswald na Frauenblatt de 22.11.1963

De acordo com o ideal da época, o lugar da mulher era em casa, cuidando da família e servindo refeições frescas, preparadas na hora. O consumo de alimentos industrializados, como as conservas, era a antítese desse ideal.

imagem
Folheto com receitas e informações sobre os produtos Hero. Musée national suisse

Para aliviar a consciência pesada das donas de casa, a Hero lançou uma nova campanha promocional. As propagandas e cartazes destinados às donas de casa visavam legitimar o consumo de alimentos em conserva. Frau Erika, a famosa personagem publicitária da fábrica de conservas St. Galler, que foi comprada pela Hero antes da Segunda Guerra Mundial, é um bom exemplo dessa abordagem.

Frau Erika, como indicavam os cartazes publicitários da década de 1950, representa a dona de casa perfeita. Além de cuidar do marido e dos filhos, ela está sempre linda em todas as circunstâncias. Desde a chegada dos alimentos em conserva, Erika se tornou uma dona de casa ainda mais moderna e eficiente. Graças a essa nova tecnologia, ela está sempre pronta para uma visita inesperada: ela sempre tem algumas latas à mão para preparar uma refeição saborosa em um piscar de olhos. As conservas também economizam o precioso tempo de Erika, que pode se dedicar a outras tarefas domésticas.

imagem
No pôster publicitário de 1954, Frau Erika cuida de seu bebê, assim como do resto da família. Graças à comida enlatada, é claro! Museum Burghalde, collection Hero

No anúncio de 1954, Frau Erika está cuidando de seu bebê recém-nascido. Ela sorri ao olhar com ternura para seu filho, apesar do custo e do tempo envolvidos em ter um bebê. “A jovem mãe se pergunta como conseguirá encontrar tempo para o resto da família”, diz o texto. Felizmente, o ravióli da St. Galler está lá para ajudá-la: graças às conservas, a dona de casa, representada por Frau Erika, pode cozinhar uma variedade de pratos para sua família e cuidar de seu novo bebê ao mesmo tempo.

Na década de 1950, as decisões de compras e a preparação de refeições eram tradicionalmente responsabilidade das mulheres. Apesar disso, a Hero queria conquistar uma nova clientela, composta por pessoas com pouca ou nenhuma experiência na cozinha. Assim, a campanha publicitária de 1956 para os raviólis visava um novo grupo: consumidores e consumidoras para os quais a conveniência dos alimentos em conserva poderia ser um critério de compra decisivo.

imagem
No anúncio de 1956, Herr Professor está tentando esquentar um ravióli enlatado na ausência de sua esposa. Museum Burghalde, collection Hero

O cartaz publicitário de 1956, por exemplo, promovia as conservas para homens (temporariamente) solteiros. O texto nos diz que “Herr Professor”, cuja esposa está fora, está enfrentando um “problema culinário”: ele precisa fazer sua própria refeição. A imagem não deixa margem para dúvidas: o Professor é um novato na cozinha. Ele está tentando aquecer uma lata no fogão. Em vez de despejar o conteúdo na panela, ele mergulha a lata fechada diretamente na água. Com um olhar curioso para o público, ele anuncia com orgulho: “Hoje, sou eu quem está cozinhando!”

A doce vida enlatada

Para vender seus produtos em conserva, a Hero aproveitou as tendências sociais e culturais da época. A invenção da comida enlatada possibilitou a importação de frutas e legumes de outros países. O abacaxi em conserva foi particularmente um sucesso. Embora já existisse, foi somente na década de 1950 que se tornou amplamente disponível. Ele foi popularizado pelo chef de TV alemão Clemens Wilmenrod, que criou a famosa receita da torrada havaiana. Foi essa torrada de queijo clássica com um toque exótico de abacaxi que contribuiu para a popularidade do abacaxi em conserva.

Na década de 1950, outro alimento enlatado vindo do exterior permitiu que a Hero se estabelecesse no mercado: o ravióli. Os raviólis já haviam sido incluídos na linha da Hero em 1948. Mas foi somente em meados da década de 1950, quando eles foram comercializados como uma especialidade italiana, que as vendas dispararam. Cada vez mais suíços tinham condições de passar férias na Itália, e traziam boas lembranças da culinária que haviam descoberto no país vizinho.

imagem
No anúncio de 1956, Onkel Otto relembra suas férias na Itália enquanto come o ravióli Hero. Museum Burghalde, collection Hero

A ligação entre os raviólis Hero e as férias na Itália fica clara neste anúncio de 1956. O personagem, Otto, aparece no centro do cartaz. O texto publicitário nos diz que todo domingo Otto prepara uma refeição especial para si mesmo. No cardápio de hoje: um prato de ravióli Hero.

Como o anúncio sugere, o ravióli tem um sabor muito especial para Otto, lembrando-o de suas férias na Itália. Sua memória é ilustrada no canto do pôster. Com o cachimbo na mão, ele está sentado em um restaurante à beira de uma baía italiana, enquanto uma garçonete lhe traz a refeição. O ravióli foi seguido por outros produtos italianos. Uma variedade de curry indiano chegou a fazer parte da linha no final da década de 1960.

As conservas Hero e sua estratégia de marketing na década de 1950 são um excelente exemplo do surgimento de uma nova sociedade de consumo. De objeto prático utilizado em contextos militares a símbolo da preparação moderna e rápida de alimentos, a conserva se adaptou às necessidades e aos ideais da época. A sua história reflete o papel da dona de casa e as habilidades culinárias de seu marido, bem como o gosto do povo suíço por viagens, incentivado pela crescente prosperidade. Além de sua finalidade original, a lata é um espelho da evolução da sociedade.

Como parte de sua tese de mestrado em história, Chiara Jehle estudou a publicidade dos produtos em conserva da empresa Hero AG.

Leia aqui o artigo original no blog do Museu Nacional SuíçoLink externo

(Adaptação: Clarice Dominguez)

Os mais lidos
Suíços do estrangeiro

Os mais discutidos

Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!

Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR