Planejamento rígido pode tornar moradia inacessível na Suíça

Com escassez de terrenos e crescimento populacional acelerado, a Suíça pode repetir os erros da Inglaterra e mergulhar em uma crise habitacional nas próximas décadas. O alerta é do economista Christian Hilber, da London School of Economics, que aponta a rigidez no uso do solo como fator central no encarecimento da moradia no país alpino.
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“A Inglaterra precisa reencontrar o equilíbrio entre a proteção ambiental e a necessidade de moradia da população.” Estas são as palavras inusitadas e claras com as quais o primeiro-ministro Keir Starmer abordou a crise habitacional no país.
Seu governo trabalhista apresentou recentemente um plano detalhado para corrigir a situação crítica do mercado imobiliário. A meta ambiciosa: aprovar a construção de 370 mil novas unidades habitacionais por ano, sendo 87 mil somente em Londres. A última vez que a Inglaterra viu tantos novos imóveis sendo construídos foi nos anos 1970.
A Suíça também enfrenta uma crise de moradia com muitas semelhanças. Assim como a Inglaterra, ela limitou severamente o uso do solo. Desde a última grande revisão da Lei de Ordenamento TerritorialLink externo, há 11 anos, na prática não foram mais criadas novas zonas edificáveis.
Como a Inglaterra, a Suíça quer preservar áreas naturais e conter a expansão urbana desenfreada. E como na Inglaterra, também se constrói pouco por aqui, o que não é suficiente para acompanhar a imigração de mão de obra e o consequente crescimento populacional.
Christian Hilber, economista especializado no setor imobiliário e professor de geografia econômica na London School of Economics (LSE), observa essa evolução com crescente preocupação. Em 2024, ele assumiu uma cátedra parcial na Universidade de Zurique, apoiada pelo banco UBS e pela consultoria Wüest Partner. Sua missão: investigar a oferta de habitação na Suíça. SWI swissinfo.ch o entrevistou.

swissinfo.ch: Na Suíça, há pouquíssimos moradias vagas, e os preços das casas atingiram níveis que quatro quintos da população não conseguem mais pagar. O que está acontecendo?
Christian Hilber: O que vemos na Suíça é uma combinação entre uma forte demanda por moradia, tanto de compra quanto de aluguel, e uma oferta que, desde meados dos anos 2010, tornou-se cada vez mais inflexível.
swissinfo.ch: A política habitacional foi reformulada e o uso do solo foi restringido. O senhor vê nisso a principal cause dessa situação?
C.H.: Eu preciso contextualizar um pouco. A Suíça tem um sistema altamente federalista. A combinação entre autonomia fiscal e o planejamento territorial descentralizado levou à dispersão urbana.
Por décadas, os municípios tinham fortes incentivos para criar novas zonas edificáveis, especialmente para atrair bons pagadores de impostos. Dito de forma caricatural: todos queriam atrair um contribuinte como o “Roger Federer”.
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Essa dispersão acabou gerando pressão política, que culminou na iniciativa das segundas residências: em 2012, uma estreita maioria decidiu limitar a construção de casas de veraneio nas regiões alpinas. Em 2013, seguiu-se a revisão da Lei de Ordenamento Territorial, que reduziu drasticamente a autonomia municipal no uso do solo.
swissinfo.ch: Essa mudança também refletiu a vontade política da maioria na Suíça: mais de 60% aprovaram a versão revisada da Lei de Ordenamento Territorial...
C.H.: Sim, mas os efeitos foram totalmente subestimados. Só agora começamos a perceber isso. Eu diria que, por ora, a Suíça ainda não vive uma plena crise de moradia.
swissinfo.ch: Mas os números mostram outra realidade: a taxa de vacância deve cair abaixo de 1% neste ano em todo o país. Isso caracteriza escassez generalizada. Uma casa unifamiliar em Zurique custa em média 3,3 milhões de francos.
C.H.: Ainda assim, não se pode comparar a falta de moradias com o sudeste da Inglaterra ou com Londres. É verdade que os preços de imóveis estão muito altos na Suíça, mas é preciso considerar também o custo do crédito. Os juros de hipotecas suíças são baixos, o que reduz a carga financeira mensal.
Na Inglaterra, dificilmente se encontra uma hipoteca abaixo de 4,5%. E os aluguéis, em média, ainda são acessíveis na Suíça; estou falando aqui das médias gerais, não dos contratos novos. E não em todas as regiões, claro. Bairros atraentes como o Seefeld, em Zurique, tornaram-se extremamente caros, pois há alta demanda e oferta limitada.
Fatos, números e perspectivas futuras. Leia nosso artigo explicativo sobre o déficit habitacional na Suíça aqui:

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Crise imobiliária na Suíça se agrava com alta imigração e construção em queda
swissinfo.ch: A Suíça é um país pequeno com uma infraestrutura de transporte público desenvolvida. Isso e também faz uma diferença?
C.H.: Basta sair 40 minutos de Zurique para encontrar aluguéis bastante acessíveis. Isso é uma grande diferença em relação a Londres. O meu caso, por exemplo: levo uma hora para ir ao trabalho, e passo esse tempo em pé, sem conseguir trabalhar no trajeto. E, ainda assim, sou um privilegiado. O bairro onde moro é inacessível para a maioria.
Mas a principal diferença não é o transporte. O principal problema no lado da oferta: falta habitação. A Suíça caminha na mesma direção da Inglaterra, mas está ainda umas duas décadas atrás.
swissinfo.ch: O que a Inglaterra fez de errado?
C.H.: Na Inglaterra o sistema de planejamento urbano é disfuncional. Na Suíça, existem zonas específicas para residências ou usos comerciais. Na Inglaterra, não funciona desta maneira. Qualquer mudança de uso precisa ser aprovada pelas autoridades locais.
Diferentemente da Suíça, a Inglaterra é extremamente centralizada, inclusive em termos fiscais. Isso significa que enquanto na Suíça existem fortes incentivos para criar zonas edificáveis, isso não é atraente na Inglaterra. Definir zonas edificáveis custa primeiramente dinheiro, pois exige o desenvolvimento da infraestrutura enquanto o retorno é pequeno e só vem mais tarde.
Não há incentivo para fomentar a construção. E a população local não quer novas obras. A maioria são proprietários. Eles são NIMBYs (Not In My Backyard, ou “não no meu quintal” em inglês). Os políticos locais seguem esse desejo.
swissinfo.ch: Qual é o papel da proteção ambiental e do patrimônio?
C.H.: As grandes cidades inglesas estão cercadas por “cinturões verdes”. Neles é proibido construir. Também há restrições de altura e leis rígidas de preservação histórica.
As cidades não podem crescer nem para os lados, nem para cima e tampouco é permitido substituir muitos edifícios, ou seja, aumentar a densidade populacional.
Quase 70% do centro de Londres está sob proteção patrimonial. Tudo isso torna os imóveis inacessíveis e contribuiu para a crise atual.
swissinfo.ch: E o que significa isso para as pessoas?
C.H.: Assim como na Suíça, os mais afetados são os jovens e as pessoas de baixa renda. Há um abismo geracional. Os mais velhos compraram imóveis há tempos e aproveitaram do aumento de seu valor. Os jovens não conseguem adquirir propriedade e são obrigados a alugar num mercado extremamente caro que é o da Inglaterra.
Muitos jovens gastam mais de 50% da renda em aluguel. Outros moram com os pais ou em repúblicas estudantis. Imigrantes frequentemente dividem um pequeno apartamento com até uma dúzia de pessoas.
Na Suíça, quatro quintos das gerações mais jovens não têm mais condições de comprar uma casa. Leia mais sobre isso:

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Jovens já não conseguem comprar casa própria nas cidades
swissinfo.ch: Em cidades suíças como Zurique, esse fenômeno começa a atingir a faixa mais pobre da população...
C.H.: Sim, isso está se tornando realidade por aqui também. Mas o mercado de aluguel é regulado. Quem já tem um contrato está protegido. O problema é para os jovens, imigrantes ou quem precisa se mudar.
swissinfo.ch: Como o senhor avalia o direito locatício suíço, em comparação?
C.H.: Na Inglaterra, há habitação social, mas não existe regulação do mercado privado, o que é algo comum nos países anglófonos. Os inquilinos não têm proteção. Por isso, ninguém quer alugar. Minha opinião é que a Suíça encontrou um bom equilíbrio na regulação dos aluguéis.
Em países como a Alemanha, a regulação se tornou contraproducente: os proprietários não têm mais incentivos para construir ou reformar. A Suíça achou o “ponto ideal” na regulação dos alugueis ao proteger os inquilinos, mas sem excessos.
swissinfo.ch: Em termos de novas construções, como está a Suíça em comparação com a Inglaterra?
C.H.: Hoje, se constrói mais que o dobro da Inglaterra em relação à população. Mas a pressão está crescendo. O que muitos ainda não perceberam é que a nova legislação urbanística tornou a oferta habitacional muito inflexível. Só uma mudança estrutural no planejamento territorial poderia resolver isso.
swissinfo.ch: A estratégia suíça tem sido o “aumento da densidade interna”, com sucesso limitado…
C.H.: A densificação interna é um bom objetivo, mas há muita resistência. Os suíços também são NIMBYs. Se fosse fácil, a reforma teria dado certo.
A cidade de Zurique também não conseguiu alcançar a densificação interna, com consequências espetaculares. Leia mais sobre isso clicando no artigo abaixo

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Na cidade mais rica da Suíça, morar virou privilégio até para a classe média
swissinfo.ch: E não há solução?
C.H.: Se os moradores forem recompensados pelo ganho de valor gerado por construções mais densas, como edifícios mais altos, a ideia funcionaria melhor.
swissinfo.ch: Mas as cidades suíças preferem socializar esse ganho, exigindo moradias populares nos novos projetos...
C.H.: Esse modelo também existe na Inglaterra e gerou enorme insegurança entre incorporadoras. A habitação social soa bem, mas não resolve o problema. Há sempre os “de dentro” e os “de fora”. Os privilegiados são os donos ou membros de cooperativas; são eles que têm a sorte de conseguir uma dessas unidades.
Os “de fora” ficam de mãos vazias. E muitas vezes, na Inglaterra, não são os mais necessitados que conseguem moradia social, mas sim os que sabem manipular o sistema. Isso agrava a desigualdade. Embora haja habitação social, a Inglaterra tem uma das maiores taxas do mundo de pessoas sem moradia fixa.
swissinfo.ch: O que deveria ser feito então?
C.H.: Se quisermos realmente atacar o problema, há somente dois caminhos: construir mais e no lugar certo.
swissinfo.ch: O governo britânico planeja agora uma grande reforma que visa multiplicar o número de novas obras e, para tanto, pretende liberar áreas dos cinturões verdes para construção. Seria esse o caminho certo?
C.H.: Claro que algumas áreas verdes e prédios devem ser preservados, e a densificação interna deve ser bem planejada. Mas muitos desses cinturões verdes por exemplo em torno de Oxford e Londres não têm relevância ecológica. Trata-se de campos cultivados, e muitas pessoas precisam morar além desses cinturões e fazer longos deslocamentos, o que não é nada ecológico.
swissinfo.ch: E na Suíça? Seria necessária uma revisão da política de planejamento urbano que seja mais favorável à construção?
C.H.: A Suíça acertou em muitos aspectos. Eu digo isso como alguém que pesquisou as políticas imobiliárias da Inglaterra, dos EUA e de outros países.
Mas, com o endurecimento da legislação em 2013, instalou-se uma crise de acessibilidade financeira de longo termo. Por ora, há poucos casos graves graças ao mercado de aluguel, que ainda funciona. Não há pessoas vivendo abertamente nas ruas.
Se chegarmos a tanto, a questão será saber se a democracia direta reagirá contra essa situação. Há muitos indícios de que entre 2030 e 2035 surgirão iniciativas populares para tornar a moradia mais acessível.
Mas reverter a legislação urbanística será difícil. Aposto que os problemas vão se agravar nos próximos 10 a 20 anos.
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Adaptação: DvSperling

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